sexta-feira, 22 de julho de 2011

A história de um valente

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A história de um valente


Luciano Morais e Roberto Numeriano

A reedição do livro "Memórias", autobiografia de Gregório Bezerra, pela Boitempo Editorial (648 págs., R$ 74,00), comemora um símbolo de resistência e convicção política e ideológica, valores cada vez mais ausentes no meio político brasileiro. No livro, o revolucionário comunista narra toda sua trajetória de vida e militância, momentos vividos durante os principais acontecimentos da vida política e social do Brasil no século XX.

Gregório começa a autobiografia "Memórias" narrando a seca e a escassez de alimentos que maltratava constantemente os nordestinos, e que o atingiu duramente em sua infância no município de Panelas, "Fui, assim, uma criança gerada com fome no ventre materno. Sim, porque minha mãe passava fome, e eu só podia nutrir-me de suas entranhas enfraquecidas pela fome".

Quando aos sete anos ficou órfão de pai e mãe, transformou-se em trabalhador rural assalariado. Condição que só foi interrompida quando, aos dez anos, foi trazido por uma família latifundiária para o Recife com a promessa de criá-lo e alfabetizá-lo, promessa que não foi cumprida. Ao invés da escola prometida, o pequeno "Grilo", como era chamado na infância, tornou-se um escravo mirim: acordava às 4h da manhã, varria, lavava banheiros, encerava pisos e cuidava de animais. Não aceitou este estado de coisas e fugiu. Morou nas ruas do Recife pegando fretes na Estação Central, vendendo jornais e dormindo embaixo da ponte Buarque de Macedo. Trabalhou na construção civil e aos dezessete anos foi preso e condenado há quatro anos por agitação grevista, já influenciado pelos recentes acontecimentos protagonizados pelo proletariado russo.

Os trabalhos no porto do Recife foi sua atividade após a liberdade. E neste período resolveu dedicar-se à carreira militar, entrando no Exercito Brasileiro, onde se destacou nas atividades físicas e na prática de esportes individuais e coletivos. Ao ser humilhado por um colega de farda, ele decide alfabetizar-se. Isso, aos 27 anos. Alfabetizou-se por conta própria, dedicou-se e foi aprovado para Sargento, consagrando-se Sargento-Instrutor em Educação Física.

Sua ascensão militar coincide com a aproximação com o Partido Comunista Brasileiro, o PCB, ainda em 1929. Mas foi por causa da organização da Aliança Nacional Libertadora - ANL, onde foi o principal nome do levante de 1935, liderado pelo Partido Comunista, que Gregório Bezerra foi declarado inimigo nº 1 das oligarquias pernambucanas e das forças armadas. Foi preso e ficou incomunicável por dois anos, integrando-se depois aos demais presos políticos da Casa de Detenção do Recife (atual Casa da Cultura). Ali, criou uma sólida e influente base do Partido até sua transferência para o Presídio na ilha de Fernando de Noronha, onde encontrou com vários camaradas insurretos, oriundos do Rio de Janeiro e de outros estados.

Com o final da Segunda Guerra Mundial e o início do movimento pela democratização do país, são postos em liberdade todos os presos políticos e concedida a legalidade ao PCB. Neste Período de reformas políticas, o Partido Comunista surge no cenário nacional como uma força significativa, pelo prestígio da URSS ao fim da guerra. Pela adesão de vários intelectuais e artistas ao Partido, pelo reconhecimento da classe operária e pelo carisma e admiração em torno de Luiz Carlos Prestes e Gregório Bezerra. Em seguida, a participação nas eleições à Constituinte de 1946 garante ao PCB uma grande representação parlamentar em nível federal, elegendo 15 deputados. Gregório é eleito Deputado Federal com a maior votação em Pernambuco.

A participação de Gregório Bezerra e dos comunistas na Assembléia Nacional Constituinte e no Congresso Nacional durou pouco. Apenas o suficiente para aprovar uma avançada Constituição à época e o necessário para mostrar o quão frágeis eram os conceitos de liberdade e democracia para as oligarquias nacionais, quando os trabalhadores reivindicam seus direitos e questionam a exploração.

Cassados os mandatos dos comunistas, Gregório é vítima de uma grande farsa: ainda residindo no Rio de Janeiro, é acusado pelo incêndio criminoso no 15º Regimento de Infantaria na Paraíba. Foi preso e levado à João Pessoa, onde é hostilizado pelos militares influenciados com aquela armação. Após um longo período incomunicável no 15º RI, foi transferido para o Recife e jamais poderia imaginar que os fogos que explodiam por toda a cidade era parte da mobilização do PCB para saldar sua chegada.

No dia seguinte, em frente ao quartel da Companhia de Guardas da 7ª Região Militar se concentrou uma verdadeira multidão para visitá-lo. Prevenido pelo comandante responsável por sua guarda que só poderia visitá-lo, os parentes, Gregório disse: Mas todos os que estão aí fora, tenente, são da minha família. Ele retrucou: Impossível, Gregório. Tem gente aí fora de todos os tipos: tem gente bem vestida, branca, mas também tem pretinhos descalços e esfarrapados. Então ele arremata: “Pois bem, mande entrar primeiro os pretinhos esfarrapados, que são os meus parentes mais próximos (...)” O comandante sorriu, e disse: “É por isso que tu estás aqui, Gregório...

Após um longo período de dura clandestinidade organizando sindicatos rurais em Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais e Paraná, ressurge para atuar na articulação da Frente do Recife, elegendo primeiro o udenista Cid Sampaio e depois Miguel Arraes. A atuação mais expressiva do homem feito de ferro e flor é registrada neste período. Gozava de grande prestígio na zona da Mata Sul, reunindo centenas de delegados sindicais filiados ao Partido Comunista.

Em 30 de março de 1964, retorna ao Recife para oferecer resistência ao golpe em andamento e solicitar armas para munir os trabalhadores. Encontrou o Palácio do Campo das Princesas ocupado pelos militares. Tal episódio mereceu um comentário posterior: em 1935 tínhamos as armas e não tínhamos os homens, e agora temos os homens e faltam-nos as armas.

Foi capturado no dia 2 de abril pelo 20º Batalhão de Caçadores nas proximidades do município de Cortez enquanto tentava desmobilizar os camponeses desarmados. Levado ao Quartel de Moto mecanização de Casa Forte, sob os “cuidados” do sanguinário coronel Villoc que, com golpes de cano de ferro, pontapés na boca, tórax e testículos, e o ódio de anos fora descarregado. “Já estava totalmente ensopado de sangue e com todos os dentes quebrados. Sentaram-me numa cadeira com três homens me segurando por trás enquanto Villoc arrancava meus cabelos com um alicate. Depois, obrigaram-me a pisar numa poça de ácido de bateria. Em pouco tempo, estava com a sola dos pés em carne viva.”

O espetáculo de horrores promovido pelo sádico Villoc precisava de platéia. Então, saíram às ruas. A sola dos pés estava repleta de pedregulhos encravados, uma corda no pescoço amarrada ao jipe que carregava o verdugo gritando “Linchem este bandido! É um monstro!” E assim percorremos as principais ruas do bairro de Casa Forte sob uma dor alucinante. Foi um desfile doloroso. Ninguém o aplaudiu. Ninguém o atendeu. “Mas eu queria viver.” A atitude das pessoas deu forças para resistir física e moralmente. Gregório Bezerra foi salvo pelo clamor do povo.

No início de setembro de 1969, o mundo foi surpreendido pela notícia do seqüestro do Embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. Em troca do Embaixador, os esquerdistas exigiram a libertação de 15 líderes revolucionários. Gregório era o primeiro da lista. Na URSS, ele tentou, com o luxuoso auxílio dos médicos soviéticos, recuperar a saúde debilitada, até poder retornar novamente ao Brasil.

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Morreu no dia 23 de outubro de 1983, na cidade de São Paulo.

Seu corpo foi trazido para Pernambuco e velado na Assembléia Legislativa. O cortejo fúnebre atraiu milhares de militantes e curiosos. No caminho, um trabalhador do serviço de limpeza da Prefeitura do Recife saudou pela última vez o líder comunista de espírito inquebrantável. Paulo Cavalcanti recriou bem o ambiente desta última homenagem a este lutador no livro O Caso eu conto como o caso foi: “Uma toalha vermelha foi hasteada na sacada de um apartamento residencial, e outra faixa reproduzia os versos da música cantada por Elis Regina: choram Marias e Clarices no solo do Brasil”

(*) Luciano Morais e Roberto Numeriano são membros da Direção Estadual do PCB - Pernambuco.


As memórias de Gregório Bezerra


Divulgação

Mais de trinta anos após a publicação das Memórias (1979), de Gregório Bezerra, o lendário ícone da resistência à ditadura militar é homenageado com o lançamento de sua autobiografia pela Boitempo Editorial, acrescida de fotografias e textos inéditos, e em um único volume. O livro conta com a contribuição decisiva de Jurandir Bezerra, filho de Gregório, que conservou a memória de seu pai; da historiadora Anita Prestes, filha de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, que assina a apresentação da nova edição; de Ferreira Gullar na quarta capa; e de Roberto Arrais no texto de orelha. Há também a inclusão de depoimentos de Oscar Niemeyer, Ziraldo, da adovogada Mércia Albuquerque e do governador de Pernambuco (e neto de Miguel Arrais) Eduardo Campos, entre muitos outros. Em Memórias, o líder comunista repassa sua impressionante trajetória de vida e resgata um período rico da história política brasileira. O depoimento abrange o período entre seu nascimento (1900) até a libertação da prisão em troca do embaixador americano sequestrado, em 1969, e termina com sua chegada à União Soviética, onde permaneceria até a Anistia, em 1979. No exílio começou a escrever sua autobiografia.

Nascido em Panelas, no Agreste pernambucano, a 180 km de Recife, Gregório era filho de camponeses pobres, que perdeu ainda na infância, e com cinco anos de idade já trabalhava com a enxada na lavoura de cana-de-açúcar. Analfabeto até os 25 anos de idade e militante desde as primeiras movimentações de trabalhadores influenciados pela Revolução Russa de 1917, Bezerra teve papel de destaque em importantes momentos políticos da esquerda brasileira, e por conta disso totalizou 23 anos de cárcere em diversos presídios e épocas. Foi deputado federal (o mais votado em 1946) pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), ferrenho combatente do regime militar, e por essa razão protagonizou uma das cenas mais brutais da recém-instalada ditadura pós-golpe de 1964: capturado, foi arrastado por seus algozes pelas ruas do Recife, com as imagens tendo sido veiculadas pela TV no então Repórter Esso. A selvageria causou tamanha comoção que os registros da tortura jamais foram encontrados nos arquivos do exército.

Apesar da dura realidade, Gregório jamais cultivou o ódio ou o rancor. Era por todos considerado um homem doce, generoso. Não foi um homem de letras, mas um grande observador e um brilhante contador de histórias. Assim é que suas páginas são narradas, sem afetações ou hipocrisia, passando pelo interior da mata e do agreste nos tempos de estiagem e seca, pelo Recife, o exílio na União Soviética, a militância no PCB. Dizia ele: “Não luto contra pessoas, luto contra o sistema que explora e esmaga a maioria do povo”.

Em 1983, o Brasil perdeu este que foi um de seus grandes defensores. Para sorte dos que estavam por vir, porém, ele deixou suas memórias recheadas de verdades e esperanças e que, acima de tudo, representam a história de muitos outros “Gregórios” que transformaram o seu destino na luta para transformar a realidade instituída.

Trechos do livro

“Foi o Natal mais farto e rico de alegria a que assisti durante os nove anos e dez meses de minha vida. Além disso, ganhei dois metros de algodãozinho para fazer duas camisas, porque só tinha uma e velha, que já estava virando farrapo. Aproveitei a cumplicidade de vovó e pedi-lhe que me fizesse uma camisa e uma calça, em vez de duas camisas. A velha topou as minhas antigas pretensões. Entretanto a costureira, que foi a minha tia Guilhermina, em vez de me fazer uma calça, fez uma ceroula grande, de amarrar acima do tornozelo. Deram-me para vestir. Achei bonita e até mais bonita do que uma calça, porque me fez lembrar do meu falecido avô, que, quando vivo, somente vestia ceroulas compridas amarradas no tornozelo. Calça só vestia quando ia à feira ou em visita aos domingos.

Afinal, todos aprovaram a ceroula, menos minha irmã Isabel. Ganhei a “batalha” de anos atrás, quando pleiteei uma calça no sítio Goiabeira. Era feliz, agora, e me sentia homem. O Natal e Ano-Novo serviram para minhas exibições de ceroulas compridas e camisa fora da calça.”

“Voltei à rua, tentando ver se alguns operários haviam chegado. Não havia ninguém. Fiz um ligeiro comício para os pequenos grupos que se aglomeravam nas sacadas dos prédios vizinhos, concitando-os a pegar em armas, sob o comando do camarada Luiz Carlos Prestes. Fui aplaudido das varandas por alguns estudantes que ali moravam. Mas o apoio, infelizmente, não passou dos aplausos. Um oficial tentou prender-me, pedindo-me que, pelo amor de Deus, eu me rendesse. Ao chegar a dez metros de mim, apontei-lhe o fuzil e o fiz recuar. Vinha chegando um sargento radiotelegrafista que, de longe, perguntou-me o que havia. Respondi-lhe que, se quisesse lutar pela Aliança Nacional Libertadora, tinha um lugar a sua disposição; se não, caísse fora enquanto era tempo.

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