sábado, 31 de janeiro de 2015

Políticas de austeridade: Portugal volta aos níveis de pobreza e de exclusão social de dez anos atrás

Reportagem veiculada no Público, de Portugal. 

A alarmante condição de Portugal hoje foi causada por uma política recessiva de cortes de investimentos públicos determinadas por Mr. Market.

Qualquer semelhança com os rumos que estão sendo presentemente dados pelo Ministro da Fazenda Joaquim Levy a nossa economia não é mera coincidência.
 

 
 
 
 
31 de janeiro de 2015




Portugal voltou aos níveis de pobreza e de exclusão social de dez anos atrás



Por Pedro Crisóstomo



Portugal voltou aos níveis de pobreza e exclusão social de há dez anos. Agora, como em 2003 ou 2004, uma em cada cinco pessoas é pobre. Dois milhões de portugueses. É este o retrato cru que se retira do inquérito às condições de vida e rendimento, publicado nesta sexta-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Alguns números dizem respeito a 2013, outros já são de 2014. Mas as tendências vão no mesmo sentido. A desigualdade na distribuição de rendimentos agrava-se. A taxa de privação material cresce. Há mais pessoas em risco de exclusão social. Mais crianças pobres. E quem é pobre está mais longe de deixar de o ser.

Depois de aumentar em 2012 para 18,7% da população, a taxa de risco de pobreza voltou a agravar-se em 2013, passando para 19,5%. E se no início da crise já havia sinais de que as desigualdades e a exclusão estavam a aumentar, hoje, à luz de alguns anos, é “inequívoco” que se inverteu o ciclo de redução da pobreza, diz o investigador Carlos Farinha Rodrigues, especialista em desigualdades, exclusão social e políticas públicas.

Para o economista e professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), Portugal recuou “uma década em termos sociais” e já reverteu os ganhos de diminuição da pobreza que se registou até 2009.

Em 2013, o agravamento da pobreza aconteceu em todos os grupos etários, atingiu com maior impacto as mulheres e foi particularmente significativo entre as crianças. O risco de pobreza é de 20% para as mulheres e de 18,9% para os homens. No caso dos menores de 18 anos, a taxa abrange já 25,6% da população, face aos 24,4% de 2012. Numa família monoparental, em que um adulto vive com pelo menos uma criança, o risco de pobreza é de 38,4%. Este foi o tipo de agregado em que a situação piorou mais, face a 2012.

A taxa de pobreza – o conceito estatístico oficial a nível europeu é “taxa de risco de pobreza” – refere-se à proporção da população cujo rendimento está abaixo da linha de pobreza (definida como 60% do rendimento mediano).
 
 
 
 
Como num período de crise os rendimentos tendem a baixar e, com isso, a linha de pobreza também, “as pessoas que antes eram pobres, agora, por via da quebra da linha de pobreza, ‘deixam de ser’, embora as suas condições não tenham melhorado ou até possam ter piorado”, enquadra o investigador do ISEG.

Para neutralizar este efeito, o INE tem uma estatística complementar, calculando a linha de pobreza ancorada ao ano de 2009 e fazendo a sua atualização com base na variação dos preços. E aqui o resultado é ainda mais extremado: se em 2009 a taxa de pobreza era de 17,9%, quatro anos depois chega aos 25,9%.

“Quando olhamos para aquilo que aconteceu até 2009, vemos que grande parte da redução da pobreza se deveu às políticas sociais, em particular às que foram dirigidas à pobreza e à exclusão social – o Complemento Solidário para Idosos (CSI), o Rendimento Social de Inserção (RSI), as pensões sociais”, diz Farinha Rodrigues, acrescentando que a “neutralização dessas políticas” nos últimos três anos explicam, com a subida galopante do desemprego, o “aumento das fragilidades sociais”.

Outro indicador que o INE releva é o da intensidade da pobreza, que permite conhecer a percentagem de recursos que faltam para as pessoas pobres deixarem de o ser. Esta percentagem aumentou de forma acentuada em 2013, passando para 30,3%, o que compara com os 27,4% no ano anterior e com 23,2% apenas três anos antes (em 2010). “Não só estamos a agravar fortemente a taxa de pobreza como estamos a [deixar que] os pobres tenham piores condições”, sintetiza o economista.
 
 
 
 
Privação material sobe

Mais de um quarto da população vive em privação material. Quando se refere a este universo, o INE está a identificar a proporção da população que não tem acesso a, pelo menos, três de nove itens relacionados com bens e necessidades econômicas. Neste caso, os dados que o instituto apresenta já se referem a 2014. Ao todo, 25,7% da população vive em privação material. E 10,6% vive “em situação de privação material severa”, registando pelo menos quatro das nove dificuldades.

Entre esses itens estão, por exemplo, situações em que uma pessoa não consegue ter uma refeição de carne ou de peixe (ou vegetariana) pelo menos de dois em dois dias, quando um indivíduo não consegue pagar imediatamente uma despesa inesperada “próxima do valor mensal da linha de pobreza” ou quando há um atraso no pagamento de rendas, prestações de crédito ou despesas correntes, por dificuldades econômicas.

Entre quem está em idade ativa, a taxa é de 19,1%, valor que também se agravou face a 2012, altura em que a taxa já tinha subido para 18,4%. E o mesmo aconteceu entre a população idosa, na qual 15,1% das pessoas está em risco de pobreza, e entre os reformados, com uma taxa de 12,9%.

Entre as pessoas que têm trabalho, uma em cada dez é considerada como estando em risco de pobreza. A taxa, que tinha recuado de 2010 para 2011, subiu no ano seguinte para 10,5% e voltou a aumentar em 2013, passando para 10,7%. “Ter emprego não é uma vacina contra a pobreza”, diz Carlos Farinha Rodrigues. Mais elevado é o risco para as pessoas em situação de desemprego, universo onde a taxa subiu para 40,5% (face a 40,3% em 2012 e 36,0% em 2010).

A “forte desigualdade na distribuição dos rendimentos” manteve-se em 2013, conclui ainda o INE. Esse foi o ano em que os portugueses sentiram no bolso o agravamento do IRS, com a diminuição dos escalões e as alterações nas taxas. O Coeficiente de Gini, que numa escala de zero a cem sintetiza a assimetria dessa distribuição de rendimentos, mostra um agravamento deste indicador em 2013.

Quando o valor está mais próximo do zero, há uma maior aproximação entre os rendimentos das pessoas. Quanto mais próximo de cem estiver, mais o rendimento se concentra num menor número de indivíduos. Em 2013, o rendimento dos 10% da população com mais recursos era 11,1 vezes superior ao rendimento dos 10% da população com menos recursos. Em 2012, esta diferença estava nos 10,7, tendo vindo a agravar-se de ano para ano (10 em 2011 e 9,4 em 2010).

Permita-me rir





Tijolaço, 31 de janeiro de 2015




Petrobras “explica” balanço burro, irresponsável e irreal. É de chorar!



Por Fernando Brito
 
 
 
 
A Petrobras apresentou ontem “esclarecimentos” sobre as avaliações contábeis do prejuízo trazido pelas roubalheiras da turma de Paulo Roberto Costa.

Seriam motivo para a demissão sumária de sua direção, se a mídia não fosse transformar isso num gesto para “abafar” o registro de prejuízos – que certamente existiram – e que foi “contabilizado” de maneira tão absurda que produziram que não dizem rigorosamente nada, exceto confusão e desprestígio da companhia.

A contabilidade, qualquer que sejam os métodos utilizados, serve para refletir, com bom grau de realismo, a situação econômica de uma empresa, uma instituição, na íntegra ou em uma de suas unidades orçamentárias. E como a realidade, afinal de contas, é uma só, procedimentos contábeis devem produzir, portanto, resultados semelhantes, próximos a ela. No entanto, a Petrobras anunciou que aplicou “duas metodologias”.

Uma, a que estimou a alegada propina de 3% informada por Paulo Roberto Costa, estimou que, em todos os oito anos de sua passagem pela direção da empresa, o roubo teria sido de R$ 4,06 bilhões, considerando todos os contratos firmados com 23 empresas mencionadas nos depoimentos.

A outra, que chamaram de metodologia de “valor justo” é o que a IASB (International Accounting Standards Board, a entidade mundial da Contabilidade) chama de “impairment”: o valor de venda de um ativo ou de uma unidade geradora de caixa numa transação sem favorecimentos. E por essa conta, a baixa seria de R$ 88 bilhões.

Como um método resulta em 22 vezes o valor do outro, claro que um deles – e mais provavelmente, ambos – estão erradosE, se estão errados, não prestam para coisa alguma, senão para estabelecer confusão e desinformação.

Vamos ao primeiro: Se as empreiteiras pagavam 3% a Costa, de onde vinham estes 3%. Do lucro legítimo que tinham com o projeto (lembrem-se que são projetos milionários), ou de sobrepreço colocado nos orçamentos e também nos aditivos. No primeiro caso, se não houve sobrepreço, o prejuízo para a empresa é zero.

No segundo, a origem do problema está em toda a área de orçamento da empresa, que produziu estimativas de contratação acima do valor necessário ou, em algum ponto da cadeia de construção de orçamentos, alguém “ajeitou” a maior os valores. Neste caso, seria preciso auditar cada processo que instrui os contratos, verificar os critérios de precificação à época em que foram firmados e os responsáveis (em geral vários funcionários) pela fixação de cada preço unitário (p. ex.: custo do m³ de terraplenagem, concreto, equipamentos, etc). Ou se entrou, depois de estabelecidos os valores, uma “mão de gato” para aumentá-los, administrativamente ou, no caso de cartel, com apresentação apenas de propostas em valor superior ao admitido, para forçar novas rodadas, com elevação do teto aceitável.

E a tese do “impairment”, o valor justo? Ela esbarra na própria definição do método: o de estabelecer o valor de venda.

Qual é o “valor de mercado” de uma refinaria? Quanto vale uma torre de fracionamento? Ou uma unidade de gases?  Neste valor, certamente, está embutida a sua capacidade de gerar lucro, o que – é evidente – varia com as condições do mercado do petróleo, do qual nem é preciso falar como está hoje.

Na nota “explicativa”, a Petrobras lista nove variáveis que interferem na formação deste preço, mesmo nem sequer mencionando a dificuldade de precificar instalações incomuns, que não podem ter seu valor de mercado calculado como o do metro de cambraia, que você vai na Rua da Alfândega e vê a quanto está sendo vendido. Das nove variáveis , oito são as seguintes, que nada têm a ver com corrupção:

i. mudanças nas variáveis econômicas e financeiras tais como taxa de câmbio, taxa de desconto, indicadores de risco e custo de capital;
ii. mudanças nas projeções de preços e margens dos insumos;
iii. mudanças nas projeções de preços, margens e demanda dos produtos comercializados;
iv. mudanças nos preços de equipamentos, insumos, salários e outros custos correlatos;
v. deficiências no planejamento do projeto (engenharia e suprimento);
vi. contratações realizadas antes da conclusão do projeto básico;
vii. cláusulas contratuais inadequadas às alterações de escopo: aditivos de prazo e valor;
viii. atrasos e ineficiência na execução da obra, inclusive por fatores ambientais;

Só a nona (“cartelização de fornecedores: corrupção e sobrepreço”) guarda relação com o que, em tese, se pretendia apurar.

Portanto, o método é totalmente inepto para o que se dizia pretender, embora a contabilidade por “impairment” não seja uma estupidez. Ao contrário, é adequado para muitas coisas, mas não para isso, pelas razões que se listou.

Quem quiser saber mais sobre este método contábil vai encontrar boa leitura no trabalho dos professores Sérgio de Iudícibus e  Eliseu Martins
Embora ardorosamente defensores do método, eles reconhecem que “o grau de subjetividade dos cálculos de fluxos descontados, quando não existir mercado ativo (para os bens avaliados), beira quase a não aceitabilidade, sob o ponto de vista de um mínimo de objetividade e consistência”.

Não vou mais cansar o leitor e a leitora com explicações. Fique claro que não se questiona o rigor técnico dos profissionais que fizeram as contas, eles certamente têm competência para isso. O que se questiona é o que a direção da empresa quis ao produzir algo confuso e, como ela própria reconheceu, imprestável. E pior, sem considerar o tamanho do desastre “midiático”.

A Folha, comentando  a reação da Presidenta Dilma Rousseff ao saber da trapalhada que aprontou o comando da empresa, que provocou muito mais perdas com esta estultice que os roubos de Paulo Roberto Costa, teria dito “permita-me rir”, tão inacreditável era. Porque é, de fato, de chorar que isso tenha sido tratado assim.

Parece obra de inimigo da Petrobras, porque empresa alguma, no mundo, se exporia a isso, apresentando um número pior, muitíssimo pior, do que o já nojento prejuízo com as maracutaias.

A Sabesp e as consequências de uma administração voltada ao mercado






Carta Maior, 31/01/2015



Brasil: Estado mais importante do país sofre crise hídrica



Por Gabriel Brito e Paulo Silva Junior



Para muitos, o racionamento de água em São Paulo já é uma realidade líquida e certa. Resta saber até quando políticos ganharão tempo para escondê-la ou se a população agirá, a ponto de, quem sabe, se repetirem as chamadas ‘guerras da água’, já vistas em locais onde os serviços hídricos e sanitários foram privatizados. De toda forma, o assunto não é passageiro e exige toda uma reflexão a respeito dos atuais modelos de vida e economia.
 
“Em primeiro lugar, é preciso reeducar a população a reduzir o consumo. As empresas também, pois quando se fala em redução de consumo parece que só a população consome. Mas, no Brasil, 70% da água é consumida pela agricultura, 22%, pela indústria e 8%, pelas residências. E quando se fala em redução de consumo, só se fala dos 8%, mas não dos 92%”, afirmou Marzeni Pereira, tecnólogo em saneamento da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), em entrevista ao Correio da Cidadania.
 
Na conversa, Marzeni elenca uma série de razões históricas, desde as locais até as mais abrangentes, que levaram São Paulo à atual crise hídrica, cujas consequências ainda não foram quantificadas. Trata-se de mais um fracasso do modelo de gestão privativista, de mãos dadas com um projeto desenvolvimentista que tem gerado mudanças ambientais em todos os grandes biomas do país.
 
“A Sabesp é a empresa mais preparada do Brasil para gerir o sistema de saneamento. Tem o melhor corpo técnico, a melhor estrutura etc. O problema principal é justamente a administração voltada para o mercado e ao lucro. Além disso, a empresa, sem dúvida, vem sofrendo sucateamento. Em 2004, tinha 18 mil trabalhadores e a sua base de atuação era menor. Hoje, a empresa tem menos de 14 mil. A terceirização (subcontratação) é um dos principais problemas, por exemplo, na perda de água”, explicou, em relação ao contexto paulista.
 
Por outro lado, Marzeni não deixou de fora toda a relação com um modelo já há décadas hegemónico. “No ano passado, em torno somente de soja, carne, milho e café, o Brasil exportou cerca de 200 mil milhões de m³ de água. Significa abastecer São Paulo por quase 100 anos. A humidade atmosférica, mantida através dos chamados ‘rios voadores’, que vêm do Norte do Brasil e precisam da continuidade da vegetação, foi reduzida. A atuação do agronegócio, quem mais desmata, teve influência em São Paulo. E houve também o desmatamento de todo o centro-oeste do estado”, resumiu.
 
A entrevista completa com Marzeni Pereira, realizada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
 

Correio da Cidadania: Qual o resumo que faz, num breve histórico, das origens e razões da crise da água no estado de São Paulo? 
 
Marzeni Pereira: Podemos dizer que o histórico da crise de água em São Paulo tem bastante tempo. Em 2003, por exemplo, o sistema Cantareira[1] chegou próximo de zero, com menos de 5% da sua capacidade de armazenamento e todo o sistema de saneamento quase entrou em colapso. Houve um princípio de racionamento, com a Operação Pajé (na qual se bombardeavam nuvens e se pulverizava a sua água).
 
Nesse período, foi elaborado um plano para que o saneamento de São Paulo dependesse menos do Cantareira, ao ser assinada uma outorga com vistas a reduzir a dependência do reservatório – o que mais abastece a capital e a região metropolitana. De lá para cá, a ideia era reduzir perdas, aumentar a reutilização e encontrar novas formas de abastecimento, por outros mananciais. Isso não aconteceu.
 
Em 2004 e 2005, houve uma recuperação da reservação de água; em 2009, houve um pico, com quase 100% das represas cheias. Em 2009, houve um período de enchentes, como a do Jardim Pantanal (zona leste); e em 2011, houve a enchente de Franco da Rocha, por conta da abertura da represa Paiva Castro. Mas, de toda forma, não houve redução da participação do sistema Cantareira. As perdas caíram, mas não o suficiente para suprir a procura, que cresceu. Não houve, portanto, contrapartida suficiente na disponibilidade de água. Esse é o principal problema.
 
Outro ponto é que tivemos, recentemente, em 2013 e 2014, uma estiagem bastante forte, apesar de curta, comparando com outras regiões do Brasil, com 5 ou 10 anos de estiagem. Aqui são menos de dois anos, de modo que não era para estarmos na atual situação.
 
Neste ano, também houve outro problema: com eleições e Copa do Mundo, havia a necessidade de o governo manter a sua imagem em alta. Por isso, não se tomaram medidas para reduzir o consumo de água a partir de janeiro e fevereiro de 2014.

 
Qual o papel da Sabesp, com o seu modelo de gestão, nesse processo? 
 
A Sabesp é a empresa mais preparada do Brasil para gerir o sistema de saneamento. Tem o melhor corpo técnico, a melhor estrutura etc. O problema principal é justamente a administração voltada ao mercado e ao lucro. Outra coisa é a dependência das influências diretas do governador e dos acionistas privados.
 
Além disso, a empresa, sem dúvida, vem sofrendo sucateamento e redução da sua capacidade de trabalho. Em 2004, a Sabesp tinha 18 mil trabalhadores e sua base de atuação era menor. Hoje, a empresa tem menos de 14 mil, uma redução de cerca de 20% do quadro. Isso influencia, certamente.
 
Outra coisa é que, a partir do momento em que se reduz o número de trabalhadores diretos, há a necessidade de subcontratar serviços. Esse é um dos principais problemas, por exemplo, na perda de água. Porque o serviço é mal feito, o cara faz num dia e no outro dia já vaza de novo... Significa que o serviço tem de ser feito várias vezes, e aí temos mais perdas.
 
É uma lógica adotada nos últimos 20 anos: a empresa depender de outras empresas privadas. Hoje, as empresas privadas têm muita influência no dia-a-dia da Sabesp. Portanto, é claro que o modelo de gestão tem tudo a ver com a crise.
 

Como dimensiona a crise da água no país como um todo, em si e relativamente a São Paulo? Em que medida a destruição dos biomas do Cerrado e amazônico explicam a grave situação que vivemos?

A estiagem em São Paulo, com certeza, tem relação com o desmatamento da Amazónia e do Cerrado. Obviamente, sempre que há desmatamento se reduz a evaporação de água pela evapotranspiração das árvores. O Cerrado brasileiro sofreu muito com a devastação promovida pelo agronegócio.
 
Para se ter ideia, no ano passado, em torno somente de quatro produtos (soja, carne, milho e café), o Brasil exportou cerca de 200 bilhões de metros cúbicos de água. Não produziu, apenas exportou, ‘água virtual’, como se diz. Tal número significa abastecer São Paulo por quase 100 anos, apenas com a quantidade de água gasta por esses quatro produtos.
 
Outro problema é que houve redução da quantidade de água superficial. À medida que há uma degradação, tanto pela remoção da vegetação como pela irrigação intensiva de larga escala, reduzem-se os afluentes dos grandes rios, como os amazônicos e o São Francisco, que já está sofrendo muito com a redução da água.
 
A humidade atmosférica, mantida através dos chamados “rios voadores”, que vêm do Norte do Brasil e precisam da continuidade da vegetação, foi reduzida. A atuação do agronegócio, quem mais desmata no Brasil, teve influência em São Paulo.
 
Mas não é só isso. Houve também o desmatamento de todo o centro-oeste do estado de São Paulo. Praticamente toda a vegetação de tal região foi removida, para plantios de cana, eucalipto, laranja etc. A redução dessa vegetação também tem influência. A redução das matas ciliares dos rios que abastecem as represas é outro fator, pois provoca o assoreamento e um secamento mais rápido.

 
O que pensa dos primeiros protestos que começam a ser organizados, ou que ocorrem até espontaneamente, em torno à água, a exemplo do que tem ocorrido em cidades como Itu? Acredita que possam crescer a ponto de se tornarem massivos, e até mesmo reproduzirem as chamadas “guerras da água” que ocorreram em vários países?

Itu é um caso bastante emblemático. Lá, a gestão da água é de uma empresa privada, que vendeu água até acabar. E há o risco de a empresa abandonar a cidade quando a água acabar de vez e começar o prejuízo. Afinal, ela está lá atrás de lucro, não para fazer serviço filantrópico. Esse é o grande risco de o setor privado atuar no saneamento. Temos de combatê-lo.
 
Quanto aos protestos, são iniciativas interessantes da população. Ela tem de fazer parte da vida política do país, não pode ficar omissa em casa. É importante ter pauta de reivindicações, um programa a ser apresentado no momento. As manifestações ainda estão tímidas, mas acredito que a tendência é de ganharem força.
 
Mesmo porque a previsão para 2015 é de faltar mais água. Se não chover muito neste verão, a coisa será pior. Portanto, há tendência de aumento de protestos no ano que vem. Como cidadão, já estou a participar, como nos dias 1 e 5. São manifestações importantes e precisam continuar.

 
Nesse sentido, como acredita que será o ano de 2015 em São Paulo, especialmente no que toca a vida do cidadão médio? O racionamento, que de fato já ocorre, vai ser intensificado?

Na realidade, ainda não existe racionamento. O que é racionamento? É a definição de quanto cada pessoa, ou família, pode usar. Seria, por exemplo, definir uma cota de 150 litros por dia. Isso é racionamento. Existe outro modelo, o rodízio, que é quando se joga água de uma região para outra. Num dia, um local fica sem água e outro a recebe. Portanto, há diferença entre um e outro tipo de política.
 
Eu penso que o racionamento tem de ser adotado, especialmente quando a situação se acirrar. Se não, alguns terão água e outros não, como acontece no rodízio. Quem tem caixa d’água ou um reservatório grande em casa não fica sem água. Quem não tem, fica sem. Imagine uma pessoa que sai de casa às 8 da manhã e volta às 10 da noite. Se não tiver caixa d’água, não toma banho. O rodízio é injusto para quem não tem condição de comprar caixa d´água grande.
 
Em relação ao ano que vem, observamos que a recuperação do reservatório da Cantareira, nos últimos 10 anos, tem sido, em média, de 23%. Se, por exemplo, está em 10% em outubro, quando chegar a março deverá estar com 30% ou 40%. E essa marca não tem sido ultrapassada, com exceção de 2004 e 2008.
 
O problema é que neste ano estamos com 17% negativos. O volume operacional acabou em 15 maio; de lá para cá, está a ser usado o volume morto. Se o reservatório recuperar 20% do volume, no final do período de chuvas não teremos mais de 5% de volume operacional. Se não houver chuva em abril, quando normalmente ela é escassa, esses 5% durariam uns 30 dias, o que nos faria voltar a usar o volume morto em maio. Há um risco de usarmos o volume morto do Cantareira bem antes do período em que começámos a usar em 2014.

 
Finalmente, o que pensa que poderiam ser soluções tanto a curto, dada a gravidade da situação, como a médio e longo prazos?

A principal solução é chover. Se chover, tudo se resolve. Torcemos para isso; de fato, caso contrário, a população vai sofrer. Se não chover, temos de tomar algumas medidas (na verdade, mesmo que chova, teremos que tomá-las).
 
Em primeiro lugar, é preciso reeducar a população a reduzir o consumo. As empresas também, pois quando se fala em redução de consumo parece que só a população consome. Mas, no Brasil, 70% da água é consumida pela agricultura, 22%, pela indústria e 8%, pelas residências. E quando se fala em redução de consumo, só se fala dos 8%, mas não dos 92%.
 
A região metropolitana de São Paulo não tem muito peso da agricultura, mas tem da indústria. É preciso reduzir o consumo residencial e industrial. É preciso também uma forte redução de perdas. Precisa de uma orientação sem meio-termo para a população. Não pode ser como hoje, o governo e a Sabesp têm de falar mais claramente à população de como a situação é grave, além de esclarecer se precisamos de fazer rodízio, racionamento ou as duas coisas juntas.
 
Há a necessidade de definir as atividades humanas básicas que terão suprimento de água garantido, como hospitais, escolas, creches. Quanto à população de baixo rendimento, com menos condição de comprar caixas d’água, seria necessário o governo distribuir tais caixas, distribuir filtros de hipoclorito, porque muita gente vai usar água de mina se precisar, o que traz risco de contaminação. Em caso de falta de água generalizada e uso de carros-pipa, tem de se saber como aqueles que não têm caixa poderão armazená-la.
 
Outro ponto é em relação ao emprego. Se de facto se concretizar a previsão, ou seja, se ocorrer falta de água generalizada em 2015, muitas empresas vão fechar, ao menos temporariamente, ou mudar-se. Se não tiver política de estabilidade no emprego, pode ser uma catástrofe.
 
Também se deve incentivar uso de água de chuva e reutilização. Pouco se fala em coletar água de chuva. Se a população fizesse isso, e reduzisse pelo menos 10% do consumo, teríamos cerca de 5 metros cúbicos por segundo de economia de água. Isso equivale ao novo sistema que a Sabesp constrói agora, o São Lourenço, que custará 2 mil milhões de reais.
 
Finalmente, é necessário estatizar o saneamento – não a Sabesp, mas o próprio saneamento. Não tem sentido um serviço tão importante quanto esse na mão de quem quer lucro. Mas a estatização não pode ficar na mão do governo, com empresários a controlar por dentro. É preciso controle dos trabalhadores. Além de uma comissão e investigação populares, que apurem responsabilidades. É preciso coletar e tratar mais esgoto, usando tal água em atividades, principalmente, industriais, pois há uma série de usos possíveis com a água de esgoto.

Recuperar mananciais é outro ponto importante. Se isso não for feito, as consequências futuras podem ser mais graves. O Rodoanel[2] passou pelos mananciais, o que mostra como não se deu importância a eles. Pessoas que moram em áreas de mananciais precisam sair de lá, através de negociações sérias, com plano habitacional. Com casa garantida, claro, ao invés de serem retiradas como lixo.
 
Há uma série de ações possíveis no médio e curto prazo. Mas têm de ser feitas em diálogos com a população, se não os interesses pelo lucro vão falar mais alto.

 
* Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas. Publicado originalmente no Correio da Cidadania
 
 
[1] Sistema Cantareira é o maior dos sistemas destinados à captação e tratamento de água para a Grande São Paulo e um dos maiores do mundo, sendo utilizado para abastecer 8,8 milhões de clientes da Sabesp. O sistema é composto por seis barragens interligadas por um complexo sistema de túneis, canais, além de uma estação de bombeamento de alta tecnologia para ultrapassar a barreira física da Serra da Cantareira. (da Wikipédia)

[2] Autoestrada de aproximadamente 180 quilómetros, duas pistas e seis faixas de rodagem que está a ser construída em torno do centro da Região Metropolitana de São Paulo, com a finalidade de aliviar o intenso tráfego de caminhões oriundos do interior do estado e das diversas regiões do país.

Crise?! Não, colapso hídrico!








Blog do Pedlowski, 31 de janeiro de 2015




Crise Hídrica? Que crise? Não existe nenhuma crise hídrica!


Por Dener Giovanini




Ao contrário do que governos, imprensa e até organizações ambientalistas afirmam, não existe nenhuma crise hídrica no Brasil. Classificar o que está acontecendo com os recursos hídricos nos maiores Estados do país como “crise” é reduzir e limitar a real compreensão dos fatos.

Crises são acontecimentos abruptos e momentâneos. Um momento difícil na existência, quando enfrentamos – na maioria das vezes – situações quase sempre alheias a nossa vontade.

Podemos ter uma “crise renal” quando o nosso corpo sofre um ataque bacteriano ou quando as nossas funções nefrológicas falham subitamente. Podemos ter uma “crise no casamento” quando os cônjuges descobrem segredos ocultos ou quando se desentendem por alguma razão. Podemos ter uma “crise ministerial” quando algum ministro fala pelos cotovelos ou quando o seu chefe imediato o desautoriza em público. Podemos ter uma “crise financeira” quando perdemos o emprego ou quando enfrentamos uma doença na família. Podemos ter uma “crise política” quando os representantes do povo são pegos com a boca na botija ou quando o governo, não tendo mais como explicar desmandos, resolve censurar os críticos. Crises, como dito, são manifestações que nos pegam de surpresa, no pulo.

Outra característica de uma crise é a sua temporalidade. Crises sempre acabam. Para o mal ou para o bem, em algum momento cessam. Crise que não cessa não é crise. Crise contínua não é crise, é doença crônica. Na relação conjugal, ou acaba a crise ou acaba o casamento.

Nenhuma dessas características acima se aplica ao quadro de escassez de água em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais ou Espírito Santo. A água não acabou do nada, de repente. E muito menos será uma situação passageira. O quadro que se instalou nesses Estados, particularmente em São Paulo, é irreversível. Pelo menos para o paulistano que nasceu na data de hoje. Ele, por mais longeva vida que tenha, não viverá como viveram seus antepassados.

A falta de água não é uma “crise”, porque ela não é fruto de um acontecimento imprevisível. Não se trata de um capricho de São Pedro que, de uma hora para outra, resolveu castigar a Região Sudeste. Há mais de 10 anos os governos tinham informações técnicas confiáveis que as torneiras iriam secar a médio prazo.

A falta de água não é uma “crise” porque ela não será passageira. Os fatores que levaram ao esvaziamento das represas não cessarão subitamente. Recuperar as Matas Ciliares que protegem os rios do assoreamento, reflorestar grandes áreas para manter a perenidade das nascentes, cessar o desmatamento da Mata Atlântica e da Amazônia, substituir uma prática agrícola predatória e, principalmente, adotar um novo modelo de desenvolvimento, não são medidas fáceis de serem adotadas e muito menos elas se encontram presentes na agenda dos atuais governantes. Quem acreditar nisso estará sendo, no mínimo, ingênuo. No caso dos políticos que tentam se justificar – chamando de crise o que permanente será – é pura leviandade mesmo.

Por maiores que sejam os dilúvios que possam cair sobre as regiões que hoje enfrentam a escassez de água, a situação não irá mudar. E não mudará porque não existem sinais de que mudaremos as nossas práticas cotidianas. Os reservatórios até poderão encher, mas as razões que os levaram a secar continuarão e eles novamente voltarão a ser o que são hoje: terra seca. O nosso “balde natural” furou. E o rombo é muito maior do que a boca da torneira que o enche.

O que acontece hoje em São Paulo e que se espelha em outras regiões do país, também não é um fenômeno natural. Aliás, eventos da natureza são absolutamente previsíveis. Até terremotos e tsunamis são cada vez mais antecipados pela ciência. Erupções Vulcânicas são identificadas meses antes de ocorrerem. Não existem “crises sísmicas” ou “crises vulcânicas”. Assim como não existem “crises hídricas”.

Em se tratando de natureza, tudo é extremamente previsível, direto e muito simples: apesar de ser existencialmente complexo em sua essência, o ciclo da vida no planeta reage imperiosamente contra quem tenta interrompê-lo. A natureza nunca privilegiou os fracos ou os “desajustados”. Para continuar existindo, o ciclo da vida se renova constantemente a fim de eliminar as ameaças.

Se não é uma crise, o que são então aquelas imagens de represas e açudes vazios? Simples a resposta: um colapso. Um “Colapso Hídrico”!
Um colapso significa falência, esfacelamento e esgotamento.
O colapso, ao contrário de uma crise, não é passageiro.
O colapso, ao contrário de uma crise, é perfeitamente previsível.

O “Colapso Hídrico” se instalou porque esgotamos o atual modelo de desenvolvimento, que privilegia a distribuição de lucros em detrimento dos investimentos em pesquisa e conservação ambiental. O “Colapso Hídrico” está acontecendo porque esfacelamos todas as oportunidades de adotarmos políticas públicas que priorizassem a modernização dos nossos recursos tecnológicos, para que diminuísse a pressão sobre os recursos naturais. O “Colapso Hídrico” continuará porque o nosso sistema político está totalmente falido e não é mais capaz de planejar a médio e longo prazo.

O Brasil está começando a vivenciar o seu primeiro colapso ambiental. Outros virão. E as consequências são imprevisíveis. 

Um país que reduz 95% da Mata Atlântica, que incentiva a emissão de gases poluentes, através de políticas fiscais que estimulam o uso do transporte individual, que ignora a sistemática redução dos Biomas, que mantém uma produção agrícola ultrapassada, que produz leis como o Código Florestal e, principalmente, que elege políticos que não tem nenhum compromisso, a não ser com a perpetuação do poder para sustentar suas máquinas partidárias, está fadado a colapsar.

A primeira – e a mais importante – medida que devemos adotar agora é assumir a realidade como ela é. Devemos ser francos e admitir que o que estamos vivendo não é uma crise e sim um colapso. O fim de um ciclo econômico que falhou.

Não compreender – e aceitar – a diferença entre uma crise e um colapso é o mesmo que tratar gripe e câncer com chazinho caseiro. A gripe até pode passar, o câncer não. Ele sempre evolui. E para pior.

As Polianas de plantão – principalmente aquelas que têm um grau maior de responsabilidade sobre o que está acontecendo – vão taxar esse texto de extremamente pessimista. Vão continuar espalhando sua visão romântica sobre o mundo, enquanto as gotas nas torneiras continuarão sumindo.

Mas a verdade é que o sonho acabou. Ou mudamos ou sumimos. Simples assim.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Lava Jato: Que os interesses nacionais sejam respeitados

 

https://petroleiroanistiado.wordpress.com/2015/01/30/petrobras-sair-da-crise-com-forcas-revitalizadas/




Petroleiro Anistiado, 30/01/2015



Sair da crise com forças revitalizadas


Haroldo Lima




Foi muito positivo a Petrobras ter encerrado o ano de 2014 com dois feitos retumbantes: no dia 16 de dezembro, na província do pré-sal, chegou a extrair 700 mil bep, um recorde e, cinco dias depois, em 21 de dezembro, outro recorde, o da produção diária de 2,3 milhões de bep. A grande estatal mostrava, pela ação de seus 80 mil petroleiros, que não se deixou alquebrar pela sanha das quadrilhas que a saqueavam.
O desmonte do esquema corrupto que operava na Petrobras deve ser completo, identificando responsáveis e punindo, de forma exemplar, os que agiam dentro da Petrobras e fora dela, nas 23 empresas apontadas como vinculadas ao esquema. Segundo um dos delatores, o esquema desbaratado funcionava há quinze anos, por isso que tem de ser vasculhado em profundidade.
No ambiente embaçado que nessas horas se forma, correntes procuram aproveitar a oportunidade para agitar bandeiras enfraquecedoras da Petrobras, como o fim da partilha da produção no pré-sal e, “se couber”, a própria privatização da companhia. São posições que nada têm a ver com a crise atual e tocam em pontos que devem permanecer inalterados na estatal.
Contudo, quadrilhas se estruturaram na Petrobras e seguramente criaram hábitos, costumes e conceitos a serviço do saque, que funcionaram, “dentro das normas”, anos a fio, sem despertar suspeita. É provável que tenha sido criada uma “legalidade da fraude”, nas entranhas da empresa. A governança revelou-se permeável à corrupção e por isso deve ser submetida à mais rigorosa devassa. A Petrobras, as estatais brasileiras e todo o esquema oficial que contrata o setor privado podem sair dessa crise devidamente revitalizados e mais preparados para cumprir suas atribuições. Os recordes apontados acima mostram que a Petrobras, livrando-se das quadrilhas de falsários, pode dar monumental volta por cima.
O processo de investigar crimes, punir culpados e impermeabilizar estruturas vulneráveis ao furto correspondem ao interesse nacional, pois que a Nação precisa de empresas fortes e saudáveis, públicas e privadas, para se desenvolver.
No momento, organismos jurídicos e políticos discutem procedimentos aplicáveis à situação. Dependendo do que for feito, resultados diferentes ocorreriam. Isto nos permite examinar cenários díspares que podem advir de caminhos legais em debate.
Um cenário é o das 23 grandes empresas brasileiras, citadas na fase investigatória, serem declaradas “inidôneas” e, por força de legislação existente, ficarem impossibilitadas de firmar contratos com o poder público. Aí, de uma só tacada, todas, ou quase todas as grandes empresas brasileiras de construção pesada ficariam fora das grandes obras a serem feitas no Brasil, praticamente todas contratadas pelo poder público. Em consequência, essas grandes obras brasileiras seriam “entregues” às empresas estrangeiras do ramo, enquanto as brasileiras, mesmo com o prestígio internacional que têm, caminhariam para o cadafalso. A desindustrialização precoce da economia brasileira cresceria e com ela sua desnacionalização.
Nesse cenário, a batalha contra a corrupção na Petrobras, mesmo que exitosa, teria dado um fruto desastroso – o fim da indústria nacional de construção pesada, ou sua transformação em um grupo de importância residual.
Apesar de frequentemente essas grandes empreiteiras abusarem do poder que têm no Brasil, sua liquidação seria um prejuízo para o país. Nisso ficamos de pleno acordo com a posição expressa da presidenta Dilma. Seria uma “ingênua” forma de combate à corrupção, que não levaria em conta as repercussões para a NaçãoVeríamos, constrangidos, o entusiasmo das empresas estrangeiras assumindo sozinhas nossos maiores projetos. Passaríamos a impressão de termos concluído que, pelo menos na construção pesada, os empresários brasileiros são corruptos, e os estrangeiros, vestais impolutos.
O outro cenário partiria da convicção de que país algum se desenvolveu sem contar com indústrias nacionais sólidas e reafirmaria a disposição de não abrir mão do desenvolvimento como objetivo maior da nossa política. Repudiaria, como balela, a ideia de que a Petrobras foi envolvida em corrupção por ser estatal, como se, há pouco, fraudes monumentais não tivessem posto abaixo a gigante americana de energia, a Enron, que não era estatal, e que faliu em meio a escândalos, numerosos e graves, que levaram de roldão outras tantas companhias. Defenderia, finalmente, que a punição em pauta deve ser rigorosa com diretores e funcionários corruptos, da estatal e das empresas privadas onde agiam, mas não poderia sacrificar as forças produtivas empresariais, seu acúmulo, sua tecnologia e sua força de trabalho.
A devastação a que se chegaria no primeiro cenário, lembra-nos as palavras do oficial norte-americano William Haley, após a destruição da aldeia My Lai no Vietnam: “foi necessário destruí-la para salvá-la”. A situação a que se chegaria no segundo cenário recorda-nos o adágio chinês que diz ser “necessário tratar a doença para salvar o doente”.
O esquema corrupto que vai sendo desmascarado mostrou tentáculos, ainda a serem comprovados, com diretores de empresas, funcionários graduados, políticos. Delegados, promotores e juízes têm dado as cartas até aqui. Quando interesses nacionais começam a ser tocados, é hora de entrar em ação outras esferas de Poder, para encontrar as fórmulas que garantam.


Haroldo Lima – é consultor na área de petróleo e foi diretor-geral da Agência

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http://tijolaco.com.br/blog/?p=24440



Tijolaço, 29/01/2015


A esquerda não controla o processo político. Deve, por isso, cuidar do que põe em marcha


 
 
Por Fernando Brito


No governo Fernando Henrique – e em todos os governos conservadores, exceto o de Collor, que serviu para barrar a esquerda, iniciar a privatização e, em seguida, foi defenestrado – o controle da política se fez não por uma amordaçamento direto da mídia, mas pela política do próprio sistema de comunicação, assim como fazia o Procurador-Geral Geraldo Brindeiro, “engavetar”, logo depois que estouravam, os escândalos políticos.
Sivam, Pasta Rosa, negociatas na privatização, compra de votos para a reeleição e uma montoeira de outras “bombas atômicas” foram, em prazo mais ou menos curto, desarmadas e relegadas ao armário dos guardados, depois de uma, outra ou meia-dúzia de matérias, muitas delas boas reportagens, admita-se.
Mas num governo do campo popular  (e por isso um inimigo para a mídia e para boa parte da elite judicial e parajudicial – ou alguém duvida que estes segmentos, privilegiados em meio à nossa pobreza, tendam ao conservadorismo?) tudo é diferente.
Vêem-se eles, pois, numa encruzilhada: para agir de forma “republicana” e honrada, muitas vezes partem a expor suas próprias entranhas – e alguém já falou sobre política e a fabricação de salsichas – fornecem elas próprias a matéria prima para as explorações e campanhas midiáticas, que amplificam os atos criminosos (ou mesmo outros, simplesmente equivocados) de dirigentes públicos no “mar de lama” que fizeram contra Getúlio Vargas.
A honestidade da Presidenta Dilma Rousseff e de Graça Foster, da Petrobras, além de não ser objetivamente atingida por nada que se tenha apurado só podem ser ratificada por suas decisões, sobretudo a de afastar  da empresa, desde 2012, Paulo Roberto Costa, o ladrão confesso.
Mas incorrem em amadorismos políticos que só agravam a “onda” de que seus adversários políticos fazem, não apenas por objetivos políticos mas, também, contra a nossa maior empresa, alavanca do desenvolvimento brasileiro e marco de nossa soberania.
A produção de um relatório de diferenças contábeis na avaliação de ativos totalmente “troncho”, onde se misturam, além dos sobrepreços oriundos da roubalheira de Costa, fatos tão díspares quanto variações cambiais, de preço do petróleo, de ajustes de projetos, de especificações errôneas em projetos foi um destes.
Produziu-se um número gigantesco e  fantasioso: R$ 88 bilhões.
Um número que, sabe qualquer um que entenda um mínimo de contabilidade empresarial, não serve para nada, ainda mais com ativos que não têm “valor de mercado”. Não se compra e vende uma refinaria como quem vende um Golzinho, em bom estado, tinindo de novo….
Não reflete coisa alguma, nem do ponto de vista do valor contábil de um ativo nem de seu valor econômico para o país, porque este também é critério de mensuração numa empresa que tem compromisso com o desenvolvimento nacional: muitas vezes é melhor fazer algo aqui, mesmo por 5 ou  10% mais caro, do que importar: é o caso de navios, equipamentos de conteúdo nacional, instalações industriais, etc…
E ainda tem a questão de saber com que preço do petróleo e derivados se faz o cálculo: o da época, mais ou menos o mesmo de há alguns meses, ou o atual, metade disso? E se amanhã for o dobro?
Essa conta terá de ser feita a partir de cada negócio escuso: quanto custaria sem falcatruas e quanto custou, de fato.
Mas a direção da Petrobras, na ânsia de se mostrar confiável e honrada, produziu este número que, afinal, ela própria reconhece imprestável, como de fato é.
E entregou carne às hienas.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Voltaire e o Charlie Hebdo






Estadão.com, 29 de janeiro de 2015




Depois do ataque ao 'Charlie Hebdo', Voltaire se torna símbolo da intolerância


Por Jamiel Chade



FERNEY ­ VOLTAIRE ­ FRANÇA ­ - O ataque terrorista contra cartunistas da Charlie Hedbo, em Paris, no dia 7 de janeiro, rendeu repercussões inesperadas pelo mundo. Mas poucos sabiam o que isso representaria para o mercado editorial. Na Europa, em apenas duas semanas depois dos ataques, editoras e livrarias tinham vendido mais obras de Voltaire do que em um ano inteiro. "É como se Voltaire tivesse sido redescoberto", comentou ao Estado um dos principais especialistas na obra do francês, Andrew Brown.

Voltaire (1694 ­- 1778) publicou em 1763 seu Tratado Sobre a Tolerância, como uma reação ao caso do protestante Jean Calas. O escritor saiu em sua defesa, depois que ele foi condenado à morte. Um tribunal julgou que ele foi o autor do assassinato do próprio filho, num esforço desesperado para que ele não se convertesse ao catolicismo. Calas declarava sua inocência.

Na obra, Voltaire ataca as autoridades católicas francesas por sua intolerância e insistiu que a crença de uma pessoa não pode estar acima da lei de um país. O resultado foi uma obra sobre a tolerância religiosa, que ataca, sem pudores, extremistas, inclusive da parte do Estado. "Menos dogmas", apelava Voltaire. 
 
Agora, nas ruas francesas e em debates pela Europa, é o rosto de Voltaire que ressuscita. Coincidência ou não, foi na Boulevard Voltaire que líderes mundiais deram as mãos em uma marcha contra o terrorismo.

Para homenagear as vítimas, o Palácio de Versalhes pôs um retrato do escritor em sua entrada. Nas redes sociais, milhares de imagens do escritor sob o título "Je suis Charlie" foram compartilhadas, até mesmo pelo polêmico prefeito de Londres, Boris Johnson.

Em discursos e pela internet, uma suposta frase de Voltaire passou a ser repetida: "Não concordo com uma só palavra que você diga. Mas vou defender seu direito de dizê­-la até minha morte". Especialistas garantem que ele jamais disse isso.

Seja qual for a versão correta, a disseminação das referências a Voltaire foi logo sentida nas vendas de suas obras, que por anos vivem modesta estabilidade. Segundo Brown, as quatro edições do Tratado Sobre a Tolerância venderam 300 cópias na semana seguinte ao atentado na França. Mas, nos sete dias posteriores, chegaram a 10 mil exemplares. "Em 11 anos, foram vendidos cerca de 120 mil exemplares. Em uma semana, as vendas foram iguais a um ano."

No site da Amazon.fr, o livro passou a ser n.º 1 em religião, filosofia e outros gêneros. Algumas editoras da França vão imprimir novas versões do texto, diante do êxito e da procura até mesmo por escolas que passaram a incluir as obras nos programas de 2015.

A Société Voltaire, entidade que reúne especialistas sobre o escritor, os responsáveis por manter viva a obra do francês, também reforça seu papel na luta contra o extremismo. "Era também Voltaire que os terroristas queriam matar", anunciou o grupo, em um comunicado. "Hoje, Voltaire seria Charlie. Agora, mais do que nunca, Voltaire é o símbolo para todos aqueles que não aceitam assassinatos religiosos ou que um deus sirva para justificar massacres", reforçou a entidade. 

Brown, que dedicou sua carreira acadêmica ao estudo da obra do francês, reconhece que o mundo em que vivia Voltaire era diferente do nosso. "Mas ele já era contra tudo o que representa terrorismo ou extremismo religioso", explicou Brown. "Ele teria condenado tudo isso", garantiu o britânico, que dirige um centro de estudos na pequena cidade de Ferney­Voltaire, onde o escritor passou anos para evitar ser preso pelas autoridades em Paris. O especialista lamenta que escolas e a sociedade não tenham dado atenção às obras do francês nos últimos tempos. "Voltaire foi preso por ser impertinente ao regime. Não tolerava a hipocrisia e fez questão de lutar contra o extremismo religioso. Ele tem muito a nos ensinar"

Voltaire chegou a Genebra em 1755, fugindo do que ele acreditava ser uma ameaça real a sua vida por parte da nobreza francesa. Na cidade suíça, ele radicalizaria seu discurso contra a intolerância religiosa. Poucos anos depois e já com uma grande fortuna, ele compraria um castelo na região ao lado de Genebra, conhecida como Ferney. Ali, construiu fábricas para os relojoeiros suíços e casas populares. Logo após a morte do escritor, a cidade adicionou Voltaire a seu nome e a praça central ganhou uma estátua em sua homenagem

Na semana passada, um cortejo com 10 mil pessoas tomou as ruas da pequena cidade para mostrar solidariedade às vítimas do ataque terrorista. Mas nem todos concordam com o uso da imagem de Voltaire para marcar o ataque contra o Charlie Hebdo. A principal crítica se refere à peça que ele escreveu O Fanatismo ou Maomé, em 1736. O protagonista é um profeta impostor e cruel, o que acaba ganhando o apoio dos órgãos de censura da época, liderados por católicos. Os especialistas na obra de Voltaire o defendem, apontando que o ataque era contra "todas as religiões". A peça estrearia em 1741. Mas não teria vida longa. Quando bispo se deram conta que o ataque era contra a Igreja Católica, o espetáculo foi proibido. 

O escritor reconheceria anos mais tarde que, de fato, o ataque era contra os religiosos locais na França. Seus defensores também alertam que Voltaire mudou de atitude sobre o Islã ao longo de sua vida e, em 1770, disse que "outros povos podem pensar melhor que os habitantes da Europa", numa referência ao Oriente Médio

Polêmico, detestado pelo regime e obrigado a fugir para a Suíça, Voltaire veria o impacto de sua obra. Dois anos depois da publicação, o Tratado Sobre a Tolerância conseguiu reabilitar o prisioneiro Jean Calas. Mas, poucos anos depois, o jovem cavaleiro François­Jean Lefebvre de La Barre seria condenado à morte pelo Parlamento de Paris por "blasfêmia e sacrilégio" ao ofender uma procissão religiosa. Decapitado, seu corpo seria queimado e, ao seu lado, um exemplar o Dicionário Filosófico de Voltaire também desapareceria nas chamas.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Luzes, enfim

 






Folha.com, 27/01/2015



Luzes, enfim



Por Vladimir Safatle



Uma das propostas do partido grego Syriza, que venceu as eleições gregas neste domingo, consiste em religar a luz das casas que tiveram a eletricidade cortada por falta de pagamento. Só entre janeiro e setembro de 2013, 240 mil residências tiveram sua eletricidade cortada. Hoje, 1 milhão estão com a conta de luz atrasada, ou seja, 10% da população da Grécia.

Esta é uma bela metáfora do que pode significar a vitória do primeiro partido de esquerda radical na história a governar um país da Comunidade Europeia.

A dita racionalidade econômica aplicada na crise grega levou boa parte da população de volta à era das trevas, isto enquanto a banca internacional aplaudia as "reformas" implementadas pelo antigo governo conservador de Antonis Samaras com sua taxa de 25% de desemprego.

Pouco importa se as políticas de "austeridade" e de "responsabilidade fiscal" jogam a população no breu e na fome, desde que as obrigações das dívidas sejam todas corretamente pagas aos bancos internacionais - os mesmos que costumam extorquir seus países quando entram em rota de falência.

Syriza será a primeira expressão, na forma de um governo, de um radical sentimento de recusa a este capitalismo de espoliação e acumulação rentista.

É fruto de um movimento de indignação que apareceu a partir de 2009, que passou pela Primavera Árabe e pelo Occupy.

Trata-se de um partido que não tem nenhuma semelhança com os partidos tradicionais de esquerda. Não é por acaso que o Partido Comunista Grego os odeia.

Sua lógica não é dirigista, nem centralista. Ela é uma frente multipolar composta por múltiplos grupos, de ecologistas a trotskistas, maoístas, nacionalistas e sociais-democratas radicais.

Se há algo na história da esquerda próximo à vitória grega é a experiência chilena de Allende com sua frente de Unidade Popular.

Quarenta anos depois, a história de um socialismo democrático e transformador será jogada novamente. Dessa vez, será aos pés do monte Olimpo.

Representante de uma nova geração política, Syriza tem neste momento a tarefa de sobreviver e ser bem-sucedido contra as tentativas de impedir que o fantasma do descontentamento que assombra a Europa saia de sua forma meramente espectral e ganhe, enfim, corpo político. Um corpo que poderá contaminar outros países e modificar o cenário de inanidade atual.

A favor dos gregos, há o espírito do tempo e o desejo de todos os que cansaram da escuridão, do medo e da miséria, seja miséria econômica, seja miséria de ideias.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Na Grécia, um Joaquim Levy não leva mais o povo na conversa








Carta Maior, 26/01/2015



Na Grécia, Levy não leva



Por Saul Leblon
 
 
 
 
 
A suposição sobre a qual tudo se apoia é conhecida.

A saber:  o governo toma as medidas econômicas que os mercados e seus ventríloquos preconizam - algumas necessárias, como o reajuste dos combustíveis;  outras discutíveis - o encarecimento do crédito, por exemplo, em um quadro de desaquecimento da economia;  e não poucas indesejáveis - entre estas, sobressaem a alta dos juros, mudanças em salvaguardas trabalhistas e o desmonte da função indutora do BNDES e demais bancos públicos no desenvolvimento do país.

Missão cumprida, o que deve ocorrer ao longo deste ano, avisam os otimistas, os detentores do capital encerrariam a greve de investimentos em curso no Brasil. Novos projetos e planos de expansão engavetados nos últimos dois anos voltariam à agenda dos negócios recolocando a economia na  rota de um novo eldorado de expansão puxado pelo desejável investimento privado.

Mais que isso: a inflação retrocederia, as exportações alçariam voo de cruzeiro, o déficit em contas correntes (de preocupantes 4% em 2014) despencaria; o Brasil, enfim, voltaria a ser um pujante  canteiros de obras, a jorrar empregos e salários por todos os poros.

A leveza com que essas ideias frequentam os prólogos e epílogos dos colunismo de mercado é notável.

Nesse mundo idílico, a confiança dos investidores e a ‘reversão das expectativas pessimistas dos mercados’ só dependeria de o país adotar o ‘bom senso’ na gestão fiscal e a ‘racionalidade dos mercados’ na macroeconomia, predicados que, como se sabe não comparecem entre as qualidades atribuídas ao PT, aos ‘economistas da Unicamp’ e a ‘Dilma interventora’.

Por sorte, então, lançou-se mão do que há de melhor na praça.

Joaquim Levy, la crème de la crème da cepa de zeladores de confiança do dinheiro grosso, assumiu o leme do barco.

Sem cerimônia, ele acena com um cavalo de pau. Garante que assim desviará a sociedade da rota de colisão com o rochedo dos desequilíbrios macroeconômicos para reconduzi-la ao porto seguro dos fundamentos sadios e austeros.

Tudo o mais permanece constante na vida dos nacionais?

Como não se pensou nisso antes: trocar a mediação de fato de Lula - entre o governo e sociedade - pela austeridade de Levy?

Quanto tempo e dor de cabeça teriam nos poupado a troca da política conturbada e contraditória para a  formação de maiorias, pela matemática clara e afiada como um punhal da austeridade?

Eureka!?

Os gregos que o digam.

E o que eles disseram neste domingo nas urnas, de forma algo sonora e incontestável, é que a receita de arrocho vendida aqui como o atalho óbvio ao paraíso  na prática consiste em um mergulho ao inferno com passagem de só de ida.

A de volta há que ser comprada das mãos do diabo.

Ou tomada à força. Como eles acabam de fazer neste domingo, sob a fuzilaria de ameaças e chantagens de um apocalipse financeiro.

Inútil.

Os  votos majoritários dados à esquerda, o Syriza, numa eleição histórica, alteram a correlação de forças na Europa e colocam a agenda neoliberal na defensiva ante o encorajamento de possíveis novas rupturas. Na Espanha em maio, por exemplo, com o Podemos.

Com 149 cadeiras obtidas no Congresso, um resultado superior aos cálculos mais otimistas, a esquerda grega passa a depender de apenas mais duas adesões para ter a maioria legislativa, necessária para as reformas e renegociações ansiadas pela população.

A crise terminal vivida pela Grécia – um país literalmente insolvente e preso a uma camisa de força cambial (o euro) - nem de longe se equipara aos solavancos vividos pelo Brasil na atual transição de ciclo de crescimento.

Mas a tragédia protagonizada nos últimos seis anos funciona como uma espécie de endoscopia das consequências sociais e institucionais de se entregar aos mercados o comando e o destino de uma nação.

Nesse aspecto o basta de domingo pode e deve ser lido com um olho na Europa e o outro no Brasil.

A percolação da tragédia na pirâmide social grega escancarou os custos humanos e econômicos de se preservar a lógica da ganância financeira como discutível moeda de troca para ‘resgatar a confiança dos mercados e dos investidores’.

A promessa, que durante seis anos escalpelou cada fio de cabelo do povo grego, ao mesmo  tempo em que se exigia que ele se reerguesse puxando o que restou com as próprias mãos, não foi entregue a tempo de se evitar a rejeição eleitoral do domingo.

O que se deu, ao contrário, foi uma odisseia às profundezas do arrocho mais dramático já enfrentado por um povo desde o início do século XX – superior à Grande Depressão norte-americana de 1929.

O ponto a reter é que a vida da população não apenas não melhorou, como se alardeava em defesa dos ‘sacrifícios’.

Ela foi capturada por um liquidificador desgovernado que interditou qualquer traço de segurança social, desidratou qualquer gota de certeza em relação ao amanhã e interditou a esperança no futuro.

Nos últimos seis anos, o PIB da Grécia  retrocedeu 25%; o desemprego saltou de 8,3% - no início do programa de austeridade - para 27% (é de 50% entre a juventude); a dívida mantem-se em assustadores 170%  do PIB (€ 322 bilhões).

Renegociar um  desconto de 50% é o chão firme defendido pelo vencedor das eleições deste domingo para, a partir daí, deslocar a Grécia do atoleiro para um retorno gradual à viabilidade econômica e social.

Trata-se, é preciso dizer, de uma ruptura.

Há seis anos  a prioridade de Atenas é adequar o país aos 'programas de ajuste' traduzidos em sucessivos cortes orçamentários.

No interior do metabolismo social deu-se o previsível.

Mas há detalhes que ainda desconcertam: o orçamento da educação, por exemplo, sofreu um corte de 60% nessa razia.

Em miúdos: a rede pública de ensino dispõe atualmente de quatro de cada dez euros que recebia em 2010.

Não há como preservar o essencial quando 60% do alicerce desaba.

Inclua-se no essencial a merenda.

Das periferias mais pobres surgiram nos últimos anos relatos de desfalecimentos em sala de aula.

Fraqueza.

Não só a infância foi convocada a pagar em libras de carne aos banqueiros da Alemanha e assemelhados.

Aposentados foram 'convidados' a viver com pensões entre 20% a 30% menores.

O salário mínimo foi cortado em 20%.

Todo o país foi estripado nessa proporção: entre 20% a 25% das vísceras.

Macrodados não conseguem traduzir o que se passa na agonia da vida de uma família quando o facão do arrocho corta a carne com esse talho e essa regularidade.

A camada de gelo mais fina trinca a olhos vistos. Mas é o lago todo que se revolve por baixo em correntes devastadoras.

Governada de forma irresponsável, diga-se, por sucessivos gabinetes antes da crise mundial, a Grécia foi a primeira economia da Zona Euro a ser excluída dos mercados financeiros quando a bolha do crédito fácil estourou.

A partir daí passou a depender dos programas de ‘ajuda’  para respirar.

A lambança precedente sugeria certa legitimidade a um ciclo de maior controle e sacrifícios.

Assim se fez.

Assim se desfez a ilusão na ‘racionalidade’ dos mercados para substituir a ‘sujeira’ da política.

A negociação com a sociedade foi substituída pelos ‘pronunciamentos’ e metas da troika, que durante seis anos fizeram gato e sapato da sociedade e da economia, com implicações iguais ou piores que as distorções que prometiam corrigir .

Vencida a paciência dos gregos, o que se tem depois de tudo é uma economia colapsada, um país desacreditado e uma população disposta a correr todos os riscos para se livrar do lacto purga interminável e devastador.

Essa talvez seja a maior lição das eleições deste domingo: trata-se do grito de alerta emitido por um povo que passou pelo inferno dos ajustes ‘racionais’.

E  justamente por isso decidiu devolver à negociação política a construção do passo seguinte de sua história.

O protagonista que recebe esse mandato não é um partido qualquer.

E nisso também  há algo a se extrair como lição à esquerda brasileira nos dias que correm.

O Syriza não é um partido, mas uma frente de organizações.

Surgiu em 2004 depois de um intenso processo de diálogo iniciado em 2001 entre múltiplas correntes progressistas, incluindo-se de socialistas  a eurocomunistas, passando por ecologistas, maoístas e trotskistas.

Hoje  é composto por doze organizações.

Sua solidez política e consistência programático levou-o a se tornar um polo de convergência de centenas de personalidades independentes, entre elas lideranças que se afastaram do PASOK (Partido Socialista) e do partido comunista grego.

A posição firme e ao mesmo tempo serena da coligação na luta contra o arrocho alargou  sua base de apoio nas ruas e entre a juventude, com adesões maciças entre os Indignados da Praça Syntagma.

A seguir, alguns números que mostram por que,  na Grécia, um Levy não leva mais o povo na conversa:

PIB – a recuperação prometida cedeu lugar a uma contração de 25% da economia entre 2009 e 2013. O desgoverno que era um pesadelo virou um inferno, sob o açoite do arrocho.

Emprego -  mais de um quarto da população ativa do país ficou sem emprego. Antes do ciclo de arrocho a taxa era da ordem de 8%. Entre os jovens, até 35 anos, saltou para 50%, sem perspectiva de se reverter com a manutenção das políticas de ajuste.

Investimento –  a prometida redenção pela retomada do investimento privado revelou-se uma fraude. Admite-se que os níveis pré-crise estavam inflados por conta de gastos públicos irreais  e endividamento privado. Mas o que sobreveio foi o desmoronamento completo desse motor. Asfixiado pela contração da demanda, da renda e do orçamento do Estado, o investimento caiu de 26% do PIB, em 2007, para cerca da metade agora, 13% - o valor mais baixo de toda a zona do euro.

População e vagas - como se vivesse uma guerra, a Grécia viu sua população diminuir nos últimos anos, assim como o seu estoque de empregos. Desde 2009, 150 mil pessoas deixaram o país (1,3% da população) e 850 mil vagas de trabalho foram destruídas (18% do total).

Inflação - A inflação que era de 4% em 2007 caiu para menos 2% nos últimos dois anos. Nada a  comemorar: a deflação reflete o arrocho salarial implacável, cujo objetivo é baratear o ‘custo Grécia’ para dar à economia algum poder de competição nas exportações à Europa. Com o colapso econômico de toda a zona do euro, marcada por recessão e deflação, o sacrifício grego, ademais, mostrou-se inútil.

Dívida - A Grécia protagonizou a maior reestruturação de dívida pública da história, em 2012. Mas o seu peso continua asfixiante em relação a um PIB que se contraiu 25%. A dívida continua a esgoelar a sociedade, situando-se acima de 170% do PIB. É impagável. E é justamente essa certeza que fez a população votar no Syriza que defende um corte de 50% no saldo. Antonio Samaras, o líder do derrotado Nova Democracia, ao contrário, considerava esse enforcador ‘sustentavel’.

Déficit público – Há aqui uma síntese das razões que levaram o eleitor grego a dizer ‘basta’ nas urnas deste domingo: apesar da queda de 25% do PIB nos últimos seis anos, a política de arrocho do Estado grego ainda conseguiu reduzir em mais 10% o gasto fiscal. Não só: simultaneamente, elevou  a receita de 40% para 45%  do PIB, desde 2009. Arrocho por todos os lados e tributação por todos os poros: foi assim que se conseguiu derrubar o déficit público, da ordem de 15% em 2009, para algo como 3% no ano passado.

O colunismo brasileiro abestalhado de tanta ortodoxia aplaudiria de pé.

Mas exatamente por isso terá dificuldades para explicar aos seus leitores por que os gregos rejeitaram, com tanta ênfase e risco, um êxito tão graúdo que aqui se vende como a redenção da lavoura.