quarta-feira, 27 de julho de 2011

Os bodes expiatórios

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São Paulo, quarta-feira, 27 de julho de 2011


O islamofóbico Breivik odeia... noruegueses
 
ARLENE E. CLEMESHA

Algumas horas antes de realizar os ataques que massacraram pelo menos 76 pessoas na Noruega, Anders Behring Breivik, 32, publicou um horripilante manifesto anti-islâmico de 1.500 páginas.
Intitulado "2083 - Uma Declaração de Independência da Europa", o documento transborda de ódio e denuncia a "islamização da Europa Ocidental". Mas os alvos do ataque cuidadosamente selecionados foram edifícios do governo trabalhista e um grupo de jovens noruegueses da mesma filiação partidária.
No dia 11 de junho, o terrorista Anders registrou em seu diário: "Rezei pela primeira vez em muito tempo. Expliquei a Deus que, a não ser que ele quisesse que a aliança marxista-islâmica e a tomada islâmica da Europa aniquilassem completamente a Cristandade Europeia nos próximos cem anos, Ele deveria assegurar a vitória dos guerreiros pela preservação da Cristandade Europeia".
O que seria a "aliança marxista-islâmica" senão a fantasia criada para tentar incitar medo na população em um contexto de crise, recessão e perda de empregos, principalmente entre a classe média?
Uma comparação histórica é tão reveladora quanto alarmante. Se substituirmos a expressão fantasiosa da "aliança marxista-islâmica" pela velha expressão igualmente imaginativa de "aliança marxista-judaica", teríamos a impressão de estar revivendo os anos 1930, quando o nazismo culpava os judeus de se aliarem ao marxismo para tentar dominar a Europa e o mundo.
Outro paralelo importante de se notar é que tanto o ódio anti-islâmico contemporâneo como o antijudaísmo nazista prescindem de um grande número de judeus ou de islâmicos para se manifestar.
De fato, na Alemanha, Hitler construiu todo seu discurso sobre o "perigo que os judeus representavam à raça ariana" na quase ausência de judeus, que somavam 0,75% da população daquele país. Os milhões de judeus que o nazismo encarcerou e aniquilou, junto com vários outros grupos minoritários, eram cidadãos dos países invadidos da Europa Oriental.
Da mesma forma, o Partido Progressista populista e de extrema-direita ao qual Breivik pertence critica enfaticamente a política de aceitação e de integração de imigrantes da Noruega. Mas as estatísticas do governo indicam que os oriundos de países islâmicos representam grupo mínimo, isto é, aproximadamente 0,87% da população do pequeno país nórdico. Cerca de 65% dos imigrantes na Noruega são europeus, a maioria poloneses.
Para se ter uma ideia, em janeiro de 2010 a população da Noruega somava 4,86 milhões de habitantes, dos quais 334 mil eram estrangeiros. Desses, 42.410 vinham de países islâmicos na Ásia e na África, além da Turquia. O relatório do governo afirma que "a porção de residentes oriundos de países asiáticos [incluindo a maioria dos países islâmicos] está decrescendo gradualmente há vários anos".
Quer dizer, o discurso racial, seja ele antissemita ou islamofóbico, possui uma relação mais estreita com o grupo que o professa do que com a sua vítima.
Chega, em alguns casos, a prescindir da vítima, sendo capaz de criá-la à sua conveniência como a imagem oposta de tudo aquilo que ele mesmo deseja ser, o espelho invertido da fantasia de si mesmo. É claramente no racista que devemos buscar a explicação do racismo.
A imagem que ele faz do suposto "perigo islâmico" cumpre função central ao transformar os imigrantes islâmicos em bodes expiatórios dos males europeus, com o desemprego encabeçando a longa lista.


ARLENE E. CLEMESHA é professora de história e cultura árabe na USP e diretora do Centro de Estudos Árabes da mesma universidade.

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