quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O genocídio de jovens negros no Brasil de hoje


http://cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/Se-nao-ha-seguranca-para-todos-nao-havera-seguranca-para-ninguem/2/34630



Carta Maior, 30/09/2015


Se não há segurança para todos, não haverá segurança para ninguém



Por Emir Sader​



O primeiro valor para todas as pessoas é o direito à vida. Se esse direito não está assegurado, de nada vale o resto.

No Brasil de hoje vivemos as maiores transformações sociais da nossa história, em que as condições básicas de vida para toda a população estão asseguradas. No entanto, as condições de segurança para toda a sociedade - especialmente o direito à vida - hoje são negadas a um numero cada vez maior de pessoas, particularmente jovens e de origem negra.

O genocídio de jovens negros é o maior escândalo do Brasil de hoje. As famílias desses jovens melhorou inegavelmente de vida na última década, mas se elevou em quase 200% o genocídio de jovens negros, nesses mesmos anos.

Como correlato desse genocídio, o Brasil possui a polícia mais violenta do mundo. Esses fenômenos são possíveis, porque foi fabricada na opinião publica a criminalização das crianças e jovens negros. De crianças e jovens das famílias pobres de nossa sociedade, que deveriam merecer nossa atenção, nosso cuidado, nosso apoio, passaram a ser sinais de risco, de perigo para a segurança dos outros.

Enquanto essas crianças e jovens são vítimas de mais de 1/3 dos crimes cometidos no Brasil – na sua grande maioria pela polícia -, eles são responsáveis por menos de 2% dos crimes cometidos. No entanto se fabricou diabolicamente na cabeça das pessoas a imagem de que essas crianças e jovens são responsáveis pelo aumento dos problemas de segurança na nossa sociedade e não vítimas da insegurança, o que se presta à cruel discriminação contra eles.

Construiram-se assim os clichês que permitem a chacina dos jovens negros, com autorização e delegação da opinião pública à polícia para o seu extermínio. Um mecanismo hediondo que faz com que tenhamos a polícia que mais mata no mundo.

E isso não se tornou um escândalo na sociedade, porque a situação das crianças e jovens negros esta invisibilizada na nossa sociedade, escondida pela mídia. Essas crianças e jovens não são das famílias de classe média e da burguesia. Os que morrem, os que estão amontoados nas prisões, não são seus filhos, que não correm o risco de passar por essas situações. Não apenas não importa a esses setores fundamentais atualmente para compor a opinião publica o destino dessas crianças e jovens negros como, ao considera-los risco para eles, delegam, calam, não olham e, de alguma forma, aprovam, implícita ou explicitamente o seu genocídio.

No entanto, mesmo do ponto de vista da sua própria segurança, essas pessoas nunca terão garantia total da sua segurança enquanto houver na nossa sociedade pessoas que não tenham assegurada sua vida. Não adianta colocar grades nas suas casas e nos seus prédios, fechar ruas, contratar polícias privadas para seus bairros e até mesmo seguranças pessoais. Não adianta ainda mais câmaras de vigilância, de nada serve autorizar e incentivar a policia para assassinar essas crianças e jovens.

Se não houver segurança para todos, garantia de vida, de integridade física, direito de ir e vir, direito de viver, acabaremos em uma sociedade de guerra de todos contra todos, do olho por olho, dente por dente uma sociedade do ódio e da intolerância, da violência desenfreada, como já há em alguns lugares do mundo e inevitavelmente vai acabar chegando aqui também.

Além de que não podemos tolerar, financiar, delegar a uma policia que mata nossas crianças e jovens impunemente. Não pode agir em nosso nome. Basta que visibilizemos essa situação, para que ela se torne insuportável para os que mantém ainda um mínimo de humanidade. Por isso a mídia esconde, criminaliza essas crianças e jovens, condição prévia indispensável para que sejam exterminados. Só porque são desumanizados, projetados na cabeça das pessoas como gente capaz de cometer crimes hediondos, é que em seguida podem ser vítimas dos genocídios cotidianos.

Três ou quatro ou mesmo dez dessas crianças e adolescentes negros são mortos diariamente pela polícia. Estamos de que lado? Dessas crianças e jovens negros ou da polícia?

Na verdade não deveríamos ter que escolher lado, embora devemos estar do lado das crianças e jovens negros. Deveríamos desativar esses mecanismos cruéis, pelos quais terminamos sendo os autores intelectuais desse genocídio, que a polícia comete em nosso nome, paga com os nossos impostos, usando o uniforme do Estado brasileiro, agindo supostamente para nos defender do perigo.

Desativar esses mecanismos macabros supõe reconquistar a opinião pública para uma visão de paz e de convivência entre as pessoas. 

Devemos fazer um grande mutirão nacional contra a violência, contra a ação brutal da polícia contra os jovens negros no Brasil de hoje.

Sem isso, nunca teremos uma sociedade minimamente humana, solidária, democrática, um Brasil de todos e para todos.  

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Racial profiling ou perfilhamento racial: As contradições de uma política de segurança pública racista

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Racial-profiling-e-direitos-do-cidadao-as-contradicoes-de-uma-politica-de-seguranca-publica-racista/5/34623



Carta Maior, 29/09/2015

 

Racial profiling e direitos do cidadão: as contradições de uma política de segurança pública racista



Por Cleber Lázaro Julião Costae João Feres Júnior



Os últimos dias de inverno no Rio de Janeiro de 2015 foram marcados por notícias veiculadas nos principais meios de comunicação a respeito de arrastões acontecidos nas praias da zona Sul da cidade. Neste sentido, alguns canais midiáticos associaram o acontecimento a uma decisão prolatada pelo Judiciário a pedido da Defensoria Pública, proibindo a Polícia Militar de promover ações em ônibus públicos vindos de comunidades da cidade, apreendendo jovens que se dirigissem às praias.

A ação da polícia compreendia em apreender jovens provenientes de bairros como Jacarezinho, Manguinhos, entre outras comunidades pobres da cidade ou da Baixada Fluminense como forma de prevenção. A polícia classificou que jovens pretos e pardos, sem documentos, sem dinheiro, vindos de favelas e com menos de 18 anos deveriam se enquadrar na condição de criminosos em potencial e, assim, serem custodiadas pelo Estado.

Este ato ilegal, pois as Polícias Militar e Judiciária só podem prender alguém em delito flagrante ou com autorização judicial com fundamentação específica do tipo penal, foi defendido pelo secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro que afirmou a potencialidade de delito quando jovens saem para as praias sem documento e sem dinheiro, trajando apenas uma bermuda. Para ele

“Não se trata de racismo, mas sim de vulnerabilidade. Como é que um jovem sai de Nova Iguaçu, a 30 km de distância da praia, sem dinheiro para comer, para beber, para pagar passagem, só com uma bermuda? Como ele vai ficar o domingo todo embaixo de um sol de 40 graus?”

A justificativa do secretário de segurança pública merece uma provocação: a estratégia usada pela polícia do Rio de Janeiro é mais uma demonstração do uso do critério racial em sua atuação cotidiana? A resposta óbvia é sim. 

A eleição de critério racial para classificar delinquentes em potencial pela polícia tem sido demonstrada e denunciada em diversos estudos. As próprias estatísticas de órgãos de segurança no país têm mostrado o número desproporcional de jovens negros assassinados pela polícia ou em chacinas, muitos deles sob justificativas de auto de resistências, como o caso de Wallace de Almeida que tramitou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Fica evidente um direcionamento da polícia em dirigir ofensiva contra um segmento da população cujas características são jovens negros da periferia.
 
A expressão racial profiling ou perfilhamento racial tem sido usada para explicar qualquer ação policial que seja empreendida com base na raça, a etnia, cor da pele de um indivíduo em lugar de sustentar-se exclusivamente em seu comportamento, ou seja, na ação típica penal prevista em um determinado ordenamento jurídico. Isto significa que o Estado justifica ação policial contra certos grupos sustentando que eles podem cometer mais delitos do que outros. É o chamado delinquente em potencial.

O ordenamento jurídico brasileiro não prevê que o critério socioeconômico, tampouco racial seja eleito para indicar um suspeito. Na constituição do Código Penal, apenas o critério do comportamento descrito através dos tipos penais confere autorização estatal para enquadrar alguém como delinquente. Todos os tipos penais são compostos de um verbo de ação, como “matar alguém”, homicídio; “subtrair para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, furto. A proposição positivista liderada por intelectuais como Nina Rodrigues de que alguns grupos raciais eram potencialmente delinquentes por limitações intelectuais foi superada e sequer incluída naquele documento de 1940. Hoje, este tipo de pensamento é considerado como evidente argumento racista, passível de processamento penal à luz do que estabelece a Constituição e legislação específica.

O direito internacional entende que o racial profiling ou perfilhamento racial é uma manifestação eminentemente discriminatória. Assim, o sistema de direitos humanos rechaça completamente a discriminação baseada em raça, cor, e origem étnico nacional. Neste sentido é possível ver um amplo refutamento do critério do racial profiling na Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (sigla em inglês ICERD) em seu art.1. Outrossim, o próprio Comitê para Eliminação de Discriminação Racial (CERD) declara que o racial profiling ou perfilhamento racial constitui uma discriminação proibida pelo ICERD. O Brasil é país integrante dos estados partes que ratificaram a convenção, o que quer dizer que ela faz parte do nosso ordenamento jurídico brasileiro com status impositivo, exigindo que pessoas, entes públicas e privadas a cumpram.

A denúncia do uso do racial profiling ou perfilhamento racial pelo sistema de segurança do Brasil foi reconhecido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, inclusive ilustrando o caso de Wallace de Almeida como uma situação em que as condições de moradia e a raça determinaram a sua morte. Este caso é apenas uma das poucas situações em que a política de segurança pública perpetrada pelo Estado brasileiro ganhou os holofotes internacionais, mas sequer foi veiculado pelos meios de comunicação tradicional.
 

Embora seja considerado ilegal por relacionar um determinado grupo a potencial delito, o racial profiling ou perfilhamento racial é um instrumento usado como resposta às exigências de classes mais altas e, geralmente, conservadoras pela suposta ameaça que que o grupo categorizado como perigoso apresenta. Nos Estados Unidos, onde a condição racial é polarizada, a ação policial tem sido respaldada pelo judiciário em alguns estados da federação, com fundamento em dados estatísticos. Ocultam a questão do racismo e a intenção de segregar, coibindo o trânsito livre de negros e latinos por todas as regiões da cidade (Kennedy, 2013). Isto mostra que o racial profiling ou perfilhamento racial tem como um dos propósitos a segregação espacial, de modo que os não aceitos nos espaços públicos se mantenham em seus guetos.

No Brasil, essa realidade se repete. A praia é um dos poucos espaços públicos disponíveis para os pobres do Rio de Janeiro. O seu uso prescinde necessidade de dinheiro. Mas aos pobres do subúrbio, das favelas e da Baixada Fluminense foi estabelecida uma condição, o que é abertamente um ato discriminatório perpetrado pelo Estado, incentivado pela mídia e aplaudido por parte da população, que reside nesses bairros da zona Sul, esperançosa que sejam criados impeditivos e constrangimentos para que a invasão negra seja controlada, e ela tenha de volta a sua ilha de tranquilidade, branca e sem as ameaças que acredita vir das favelas e periferia, embora com as pessoas desses lugares ela conviva quando se prestam para trabalhar nos empregos domésticos, nos serviços de zeladoria e de limpeza

No país onde se reverencia a mistura entre os povos e se auto determina como uma democracia racial, os conflitos emergiram refutando esta ideia mitológica à medida que a população negra buscou espaço na sociedade em vários espaços. A primeira década do século XXI foi testemunha de um amplo debate sobre a legitimidade e constitucionalidade de ações afirmativas que implementassem cotas em universidades públicas do país, bem como em empregos públicos.

A possibilidade de dividir espaços historicamente exclusivos a uma elite branca, suscitou reações de vários graus, seja justificando a criação de privilégio para os negros, seja destilando objetivamente o sentimento de ódio. A solução trazida pelo Judiciário foi de associar a política pública que beneficia a população negra à condição socioeconômica, fazendo acreditar que a pobreza abarcaria todos os necessitados da política especial, como se fosse possível suplantar uma ação histórica da sociedade e do Estado que deliberadamente, sob as trevas da democracia racial, deixaram alijada a população negra do acesso à educação, saneamento básico, bons empregos e participação ativa no gerenciamento do país.

A situação dos jovens que se dirigem às praias da zona Sul carioca é mais um exemplo da forma como Estado dirige sua ação em momentos de integração entre negros e brancos, pobres e ricos. É sabidamente conhecido a história de falta de recursos e oportunidades em bairros periféricos e nas cidades da Baixada Fluminense e de São Gonçalo no estado do Rio de Janeiro. Áreas esquecidas pelo poder público, que se omitiu, relegando a própria sorte os moradores dessas regiões cuja condição racial é afro ascendência. Por outro lado, regiões da zona Sul são criteriosamente bem cuidadas, além de disporem da mais importante praça de lazer pública que deveria ser acessível a todos, com dinheiro ou não. Porém, no momento da interação, os “visitantes” são considerados potenciais criminosos e impedidos de participar. 

Justificar que jovens sem dinheiro são potenciais criminosos e, por isso, retê-los é uma evidente violação do direito de ir vir desses cidadãos, bem como uma ação discriminatória em razão de sua cor e sua origem social. Quanto aos procedimentos tomados pela polícia antes da proibição é preciso saber o que foi feito com as crianças apreendidas. Da mesma forma nada foi dito com relação ao encaminhamento para as suas casas. Com relação aos delitos: a polícia utilizou seus departamentos de inteligência  nessas comunidades onde se entendem que há indivíduos suspeitos?  Pelas notícias e imagens veiculadas nesta última semana de inverno, parece que a única ação usada pela polícia foi a adoção do racial profiling ou perfilhamento racial como critério de segurança.

As ações proibidas pelo judiciário foram realizadas sem qualquer articulação com os órgãos de serviço social e das lideranças comunitárias dos bairros de onde essas crianças partiram. Até o momento de proibição, os órgãos de segurança pública não acusaram qualquer omissão a partir de uma convocação para formarem uma força tarefa visando organizar o grande fluxo de cidadãos em uma área pública. Optaram pelo racial profiling, por considerar caso de polícia, atuando de forma ilegal ao apreenderem jovens sob a justificativa de potenciais criminosos.

A adoção do racial profiling ou perfilhamento racial pelo sistema de segurança e punitivo do Brasil é uma realidade de muitos anos. A democracia racial sustentou-se em uma disposição em que aos negros foram dados os papeis subalternos, bem como com menos capacidade de exercício da cidadania plena. Este modelo perverso tem sido combatido à medida que a democracia real se consolida e com ela a sociedade civil que luta por mais igualdade e a quebra de padrões discriminatórios considerados normais contra a população negra. O racial profiling é um desses padrões institucionais que precisam ser repudiados pela sociedade e pela mídia de modo que o poder público possa construir mecanismos mais inteligentes, sensíveis às necessidades sociais como forma de inclusão e fortalecimento da busca por uma sociedade mais justa.​

Especuladores do medo


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/234728-especuladores-do-medo.shtml



Folha.com, 29/09/2015
 


Especuladores do medo


Por Marcelo Freixo



Investir no medo é lucrativo. O negócio não entra em crise porque é a própria crise. Como se costuma dizer no economês jornalístico, o mercado do pavor está sempre tenso, inseguro. Do jeito que tem que ser.

Nas liquidações do medo não circulam apenas produtos, câmeras de segurança, alarmes, cercas elétricas e pistolas. Também circulam discursos. A fé no medo move montanhas de dinheiro e de capital político. Os seus maiores efeitos são a eliminação da esperança e a transformação da justiça em vingança.

Os arrastões nas praias da zona sul do Rio são episódios graves de violência. Exatamente por isso, é lamentável ver autoridades públicas especulando com o pavor da população em discursos que defenderam a violação das leis.
 
O Rio é uma cidade cada vez mais partida pela desigualdade. O resultado disso não é só o desrespeito sistemático aos direitos dos mais pobres.

Essa segregação desumaniza e faz com que eles sejam tratados como estrangeiros indesejáveis nos territórios dos ditos civilizados.

Lamentavelmente, o governador Luiz Fernando Pezão reproduz essa concepção ao afirmar que jovens que estiverem sem camisa ou descalços nos ônibus sejam levados às delegacias. Diante da pressão por dizer algo que a maioria amedrontada da população quer ouvir, a autoridade máxima do Estado criminalizou a pobreza.

É evidente que os problemas sociais não justificam os delitos ou tornam menos graves os arrastões. Mas abordar a questão só do ponto de vista policial, como fez o prefeito Eduardo Paes, é desonesto.
 
Lazer e cultura são questões sociais e revelam a desigualdade. Segundo pesquisa do IBGE, em 2010, havia na Grande Tijuca e zona sul, áreas de classes média e alta, 366 equipamentos culturais para cerca de 1,3 milhão de pessoas. Na zona norte, região mais pobre, com 2,4 milhões de habitantes, havia apenas 78.

O secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, também não resistiu à especulação. Ele jogou com os nervos do mercado do pavor ao dizer que não pode agir porque o trabalho da PM foi engessado pela Justiça, que proibiu que pessoas sejam detidas sem flagrante ou mandado de prisão. Isso não é verdade. O Judiciário apenas determinou o cumprimento da lei. As revistas podem continuar.
 
Diante da possibilidade da ação de justiceiros, a declaração de Beltrame é desastrosa por insinuar que só resta à população fazer justiça com as próprias mãos.

Como escreveu Hanna Arendt, quando o medo vira moeda política, os "homens aprendem que são supérfluos através de um modo de vida em que o castigo nada tem a ver com o crime, em que a insensatez é diariamente renovada".

sábado, 26 de setembro de 2015

Em defesa da aviação nacional

 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/234369-em-defesa-da-aviacao-nacional.shtml



Folha.com, 26/09/2015

Em defesa da aviação nacional


Por José Adriano Castanho Ferreira
 
Existem vários projetos de lei no Congresso que tratam da participação do capital internacional nas empresas aéreas brasileiras, porém dois deles se destacam pelo absurdo de propor a abertura total e irrestrita, permitindo que as companhias sejam 100% controladas por estrangeiros, sem que haja nenhum estudo de impacto ou análise de risco.
 
São os Projetos de Lei do Senado nº 2/15 e o nº 330/15, ambos em pauta na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) daquela Casa.
Os maiores mercados do mundo mantêm controle sobre sua aviação. Nos Estados Unidos, por exemplo, o limite para participação de capital estrangeiro nas companhias locais é de 25%. Nos países da União Europeia, esse índice é de 49%. O Brasil, que hoje possui o quarto maior mercado mundial de aviação, tem limite de 20%.
 
Defender esse mercado é estratégico para o país, já que todas as previsões apontam para um crescimento ainda maior do setor –será o terceiro maior do planeta em 2017, segundo projeção da Associação Internacional de Transporte Aéreo.
 
Nada justifica entregarmos esse mercado a estrangeiros, correndo risco de um impacto direto nos empregos e de um escoamento bilionário de divisas para o exterior. O mercado 100% aberto ao capital estrangeiro tende ao monopólio, causado pela concorrência predatória entre as gigantes do exterior e as empresas domésticas, que acabam sendo compradas pelas mais fortes ou indo à falência.
 
O governo não possui controle sobre empresas dominadas por capital estrangeiro para forçar a operação por interesses sociais e para locais isolados ou de pouca demanda. Dessa forma, perde a economia local e perdem os usuários do transporte aéreo, com oferta de voos limitada por interesses econômicos.

Além disso, as estrangeiras passariam a ditar as tarifas, colocando a população à mercê de um mercado fora do controle nacional.
 
A experiência de países que adotaram esse modelo mostra impactos desastrosos. Como um exemplo claro é possível citar o caso da companhia Aerolíneas Argentinas, que teve 85% de seu capital adquirido pela espanhola Iberia.

Após uma diminuição drástica das rotas e sucateamento das aeronaves, a companhia foi reestatizada, em um processo que custou milhões de dólares ao governo argentino. Poucos países tiveram sucesso com esse modelo de abertura –
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nenhum com posicionamento geográfico privilegiado e com dimensões continentais como o nosso.
A pergunta que devemos fazer é esta: a quem poderia interessar a abertura total e irrestrita do capital no Brasil? Hoje, temos quatro empresas aéreas de grande porte no país e todas já possuem alguma participação de capital estrangeiro.

Vários outros projetos já tratam de alguma forma da abertura dos céus no Brasil, tanto no Legislativo como no Executivo e agências de regulação – acordos bilaterais, fusão de marcas, intercâmbio de aeronaves e liberdade de licenças e de matrículas. Nenhum desses projetos, porém, está sendo considerado na discussão dos projetos de lei que tratam da abertura do capital.
 
A aprovação de uma lei nesse sentido, somada a todos esses fatores, poderá resultar na instituição da cabotagem camuflada no país, similar ao que ocorre no sistema marítimo (marinha mercante), em que empresas estrangeiras ditam as regras de todo o transporte de grande porte realizado aqui.

O que o Brasil precisa é decidir se está disposto a entregar também a sua aviação. Precisa definir também se o fará por falta de competência ou por alguns interesses escusos.


JOSÉ ADRIANO CASTANHO FERREIRA, 40, comandante de linha aérea, é presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas
 
 


Blog do Santayana, 13/11/2014



O Congresso e a desnacionalização do mercado aeronáutico brasileiro


Por Mauro Santayana


(Jornal do Brasil) - Acordo “costurado” ontem, no Senado, permitiu a aprovação, em comissão especial, de medida provisória que prevê subsídios à aviação regional, da forma como pretendia a Azul Linhas Aéreas. 

Isso evitou que o projeto viesse a beneficiar indiretamente, fabricantes estrangeiros de grandes aviões, como a Boeing e a Airbus, e ajudou a indústria brasileira, por meio da Embraer, que, no entanto, adquire boa parte das peças de suas aeronaves no exterior.

A surpresa ficou por conta de uma alteração feita de última hora no texto, aprovando a compra de até 100% do capital de companhias de aviação brasileiras por estrangeiros, indo contra o que se pratica em boa parte do mundo.

Se nossas grandes empresas, como a Gol, forem totalmente desnacionalizadas, o que ocorrerá quando gerentes norte-americanos ou europeus começarem a destratar funcionários nacionais de companhias aéreas aqui adquiridas, ou fizerem o mesmo com  viajantes brasileiros em nossos aeroportos ? 


Ou se a ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil, ou as autoridades do Governo Federal tiverem suas regras contestadas, e forem processadas em tribunais de Atlanta ou Forth Worth, onde ficam situadas sedes de empresas estrangeiras, quando tentarem fazer valer sua autoridade, ou tomarem alguma decisão que contrarie, eventualmente, interesses de grupos como a Delta e a American Airlines ?  

Isso, sem falar de outros riscos, ligados à segurança nacional,  como a entrada clandestina de pessoal ou de equipamento não autorizado de outras nações em nosso território, caso a maioria das ações - e o comando de nossas companhias de aviação - venha a ficar em mãos estrangeiras, como se pretende, sem a exigência, ao menos, de uma maioria de capital nacional.

Mas o pior de tudo é a cabotinice, a cessão apressada de vantagens, com o mais absoluto desprezo pelos critérios de isonomia e reciprocidade.

Nem na Europa, nem nos Estados Unidos, empresas estrangeiras de aviação - incluídas as brasileiras - podem voar no mercado doméstico, e está vedado ao capital estrangeiro o controle de companhias locais de aviação. Na União Européia, empresas de fora desse grupo de países não podem adquirir mais de 49.9% das ações. E nos EUA, toda uma legislação protege o mercado com a intenção expressa de “garantir a proteção dos consumidores e dos empregos nos Estados Unidos.

Enquanto isso, no Brasil, queremos abrir, graciosamente, com uma canetada, aquele que já é o segundo maior mercado do mundo em número de aeroportos, e será, segundo a IATA - Associação Internacional de Transportes Aéreos, depois dos EUA e da China, o terceiro maior mercado doméstico do planeta, em 2017, daqui a apenas três anos, sem exigir absolutamente nada em troca.

O mercado brasileiro de aviação passou de 37,2 milhões de passageiros de avião em 2003, para mais de 100 milhões de passageiros em 2012, 88,7 milhões deles transportados em voos domésticos e 18,5 milhões nas rotas internacionais. O número alcançado em 2012 representou uma proporção de 55 passageiros transportados no modal aéreo para cada 100 habitantes no Brasil, enquanto que em 2003 essa mesma proporção era de 21 para 100.

É esse gigantesco negócio, com um enorme potencial de lucro e crescimento, que estamos entregando, de mão beijada, aos estrangeiros. Isso, caso não seja vetado o dispositivo apresentado ontem, pelo relator da MP 652, o senador Flexa Ribeiro, do PSDB do Pará, que revoga a parte do Código Brasileiro de Aeronáutica,  que exige que ao menos quatro quintos do capital votante das companhias aéreas instaladas no Brasil pertençam a cidadãos brasileiros.

Deus e a dança


sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Quem tem o direito de falar?


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/234248-quem-tem-o-direito-de-falar.shtml




Folha.com, 25/09/2015




Quem tem o direito de falar?




Por Vladimir Safatle




A política não é uma questão apenas de circulação de bens e riquezas. Ou seja, ela não se funda simplesmente em uma decisão a respeito de como as riquezas e os bens devem circular, como eles devem ser distribuídos.

Embora essa seja uma questão central que mobiliza todos nós, ela não é tudo, nem é razão suficiente de todos os fenômenos internos ao campo que nomeamos "política". Na verdade, a política é também uma questão de circulação de afetos, da maneira com que eles irão criar vínculos sociais, afetando os que fazem parte destes vínculos.
 
A maneira com que somos afetados define o que somos e o que não somos capazes de ver, o que somos e não somos capazes de sentir e perceber. Definido o que vejo, sinto e percebo, define-se o campo das minhas ações, a maneira com que julgarei, o que faz parte e o que está excluído do meu mundo.

Percebam, por exemplo, como um dos maiores feitos políticos de 2015 foi a circulação de uma mera foto, a foto do menino sírio morto em um naufrágio no Mar Mediterrâneo.

Nesse sentido, foi muito interessante pesquisar as reações de certos europeus que invadiram sites de notícias de seu continente com posts e comentários. Uma quantidade impressionante deles reclamava daqueles jornais que decidiram publicar a foto. Por trás de sofismas primários, eles diziam basicamente a mesma coisa: "parem de nos mostrar o que não queremos ver", "isto irá quebrar a força de nosso discurso".

Pois eles sabiam que seu fascismo ordinário cresce à condição de administrar uma certa zona de invisibilidade. É necessário que certos afetos não circulem, que a humanização bruta produzida pela morte estúpida de um refugiado não nos afete. Todo fascismo ordinário é baseado em uma desafecção.
 
Toda verdadeira luta política é baseada em uma mudança nos circuitos hegemônicos de afetos. Prova disso foi o fato de tal foto produzir o que vários discursos até então não haviam conseguido: a suspensão temporária da política criminosa de indiferença em relação à sorte dos refugiados.

Mas essa quebra da invisibilidade também se dá de outras formas. De fato, sabemos como faz parte das dinâmicas do poder decidir qual sofrimento é visível e qual é invisível. Mas, para tanto, devemos antes decidir sobre quem fala e quem não fala, qual fala ouvirei e qual fala representará, para mim, apenas alguma forma de ressentimento.
 
Há várias maneiras de silêncio. A mais comum é simplesmente calar quem não tem direito à voz. Isso é o que nos lembram todos aqueles que se engajaram na luta por grupos sociais vulneráveis e objetos de violência contínua (negros, homossexuais, mulheres, travestis, palestinos, entre tantos outros).

Mas há ainda outra forma de silêncio. Ela consiste em limitar sua fala. Assim, um será a voz dos negros e pobres, já que o enunciador é negro e pobre. O outro será a voz das mulheres e lésbicas, já que o enunciador é mulher e lésbica. A princípio, isto pode parecer um ato de dar voz aos excluídos e subalternos, fazendo com que negros falem sobre os problemas dos negros, mulheres falem sobre os problemas das mulheres, e por aí vai.

No entanto, essa é apenas uma forma astuta de silêncio, e deveríamos estar mais atentos a tal estratégia de silenciamento identitário.  Ao final, ela quer nos levar a acreditar que negros devem apenas falar dos problemas dos negros, que mulheres devem apenas falar dos problemas das mulheres.

Pensar a política como circuito de afetos significa compreender que sujeitos políticos são criados quando conseguem mudar a forma como o espaço comum é afetado.
 
Posso dar visibilidade a sofrimentos que antes não circulavam, mas quando aceito limitar minha fala pela identidade que supostamente represento, não mudarei a forma de circulação de afetos, pois não conseguirei implicar quem não partilha minha identidade na narrativa do meu sofrimento. Minha produção de afecções continuará circulando em regime restrito, mesmo que agora codificada como região setorizada do espaço comum.
 
Ser um sujeito político é conseguir enunciar proposições que implicam todo mundo, que podem implicar qualquer um, ou seja, que se dirigem a esta dimensão do "qualquer um" que faz parte de cada um de nós. É quando nos colocamos na posição de qualquer um que temos mais força de desestabilização de circuitos hegemônicos de afetos.
 
O verdadeiro medo do poder é que você se coloque na posição de qualquer um.

Papa Francisco nos EUA






O paradoxo e a insensatez


http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=270690



Portal Vermelho, 25/09/2015


O paradoxo e a insensatez


Por José Luís Fiori



Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da República eleita por 54,5 milhões de brasileiros, há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático, e o que é pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral.

“Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande. Respondi assim: Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada, porque você está perguntando isto para mim, um cara que fez pós-doutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado, com vista para o Cristo Redentor. Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de segurança. Nesse condomínio social, eu moro na cobertura. Você tem que perguntar a quem precisa do Estado.” Luiz G. Schymura, “Não foi por decisão de Dilma que o gasto cresceu”, Valor, 7/8/2015

Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a “crise política”, para depois poder resolver a “crise econômica”; e uma vez “resolvida” a crise política, todos propõem a mesma coisa, em síntese: “menos Estado e menos política”.

Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século 18, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença econômica no “individualismo eficiente”, na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica.

É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo” entender que não existe vida econômica sem política e sem Estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo Estado.

Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validade universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo deficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que a economia é também uma estratégia de luta pelo poder do Estado, que pode estar mais voltado para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas.

Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?

O francês Pierre Rosanvallon (1), dá uma pista, ao fazer uma anátomopatologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático-liberal de redução radical da política à economia e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e por que este projeto de despolitização radical da economia e do Estado leva à necessidade implacável de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do Estado, se mantenha “neutro”, e promova a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados.

Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal”, que “adormecesse” as paixões e os interesses políticos, e se possível, os eliminasse.

No século 20, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal foi a da ditadura do Sr. Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano Paul Samuelson de “fascismo de mercado”. Pinochet foi – por excelência – a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade política dissidente, e entregou o governo de fato a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas.

No Brasil não faltam – neste momento – os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor e dispostos a levar até as últimas consequências o seu projeto de “redução radical do Estado”, e se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade de sua “aritmética econômica”.

Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartilham a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência, e no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil.

Porque não é necessário dizer que tanto os líderes golpistas quanto seus economistas de plantão olham para o mundo como se ele fosse uma “enorme cobertura”, segundo a tipologia sugerida na epígrafe, pelo Sr. Luiz Schymura. Um raro economista liberal, em entender a natureza contraditória dos mercados, e natureza democrática do atual deficit público brasileiro.


(1) P. Rosanvallon, Le liberalisme économique. Histoire de l'idée de marché, Editions Seuil, Paris, 1988

Livro: 'Lugar Nenhum - Militares e Civis na Ocultação dos Documentos da Ditadura'







Folha.com, 25/09/2015


Livro revela pacto entre militares e civis para ocultar arquivos da ditadura



OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

 
Um pacto de silêncio firmado entre os militares e os governos civis do período da redemocratização tem impedido, desde 1985, que venham à luz os arquivos da repressão - os milhares de papéis microfilmados que poderiam, entre outras informações relevantes, esclarecer o destino de opositores da ditadura tidos na época como "desaparecidos".

A costura invisível desse acordo é revelada, com argumentação consistente e documentação inédita, pelo jornalista e escritor Lucas Figueiredo em 'Lugar Nenhum - Militares e Civis na Ocultação dos Documentos da Ditadura', livro que inaugura a coleção "Arquivos da Repressão no Brasil", da Companhia das Letras.

Para o autor, o acerto entre as duas partes, baseado na falsa premissa de que os arquivos foram destruídos numa faxina rotineira e legal, "subverte a própria lógica da democracia, ao permitir que o poder militar negue subordinação ao poder civil".

"É um corte inédito na historiografia", disse Figueiredo, que mora há um ano na Suíça, onde terminou de escrever o livro. Realmente, embora a existência dos arquivos tenha sido frequentemente objeto de questionamentos, nunca um trabalho chegou tão perto de cravar a informação de que eles foram e continuam sendo escamoteados.​

Autor de "Ministério do Silêncio - a História do Serviço Secreto de Washington Luís a Lula" e de "Olho por Olho - Os Livros Secretos da Ditadura", Figueiredo já tinha familiaridade com o tema.

Sua autoridade deriva sobretudo do trabalho investigativo que teve início em 2012, quando coordenou um reduzido grupo de jornalistas, apelidado de "equipe ninja", que trabalhou para a Comissão Nacional da Verdade (CNV), mantendo as informações colhidas sob absoluto segredo.

"A partir do momento em que a CNV não utilizou no seu relatório final nenhuma informação da pesquisa sobre a ocultação dos arquivos da ditadura, me pareceu que era realmente necessário escrever esse livro", disse à Folha.
 
O material ocultado é vasto. Desde o início dos anos 1970, no auge da repressão à guerrilha, a comunidade de informação militar reunia uma quantidade industrial de pastas individuais. Só no Cenimar (Centro de Informações da Marinha), considerado o mais eficiente dos órgãos de repressão, havia mais de um milhão de páginas microfilmadas em 1973.

Figueiredo aponta evidências de que, apesar dos reiterados pedidos da Justiça e do Ministério Público, os presidentes civis nada fizeram para abrir os arquivos do Exército, Marinha e Aeronáutica.
 
A política de ocultação começou com José Sarney, o primeiro civil a ocupar a presidência da República, entre 1985 e 1990, depois de duas décadas de ditadura militar. "Carente de base política em um momento delicado da cena nacional, Sarney foi buscar na caserna a sua sustentação", escreve Figueiredo. "Não seria exagero dizer que o presidente era um refém político das Forças Armadas."
Os fatos elencados pelo autor demonstram que, no final dos anos 1980, os arquivos não só estavam intactos como foram utilizados para um livro produzido a pedido do general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército de Sarney. Duas décadas mais tarde, em entrevista a Figueiredo, o general diria sobre os arquivos: "Foram queimados coisa nenhuma".

Os presidentes seguintes mantiveram a "política de gavetas trancadas". Fernando Collor (1990-1992), embora tenha desmontado o SNI (Serviço Nacional de Informações), permitiu que o órgão que o sucedeu, o Departamento de Inteligência, continuasse sonegando os arquivos. Na gestão de Itamar Franco (1992-1994) também não houve avanços.

O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) começou bem, mas terminou mal. Em 1995, o Estado reconheceu ter responsabilidade pela morte de opositores do regime antes dados como desaparecidos. Mas, dias antes do fim de sua gestão, FHC baixou um decreto que prolongava o prazo durante o qual os arquivos continuariam protegidos e criava "a inédita figura do sigilo eterno, aplicável para documentos ultrassecretos". (Em 2012, o decreto seria revogado por Dilma Rousseff.)
 
Durante o governo Lula (2003-2010), o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, chegou a afirmar ter conhecimento da existência dos arquivos e defendeu que viessem a público. Mas ele foi voto vencido. Prevaleceu a posição do ministro da Defesa, José Viegas Filho, que contava com o apoio do próprio presidente.

Quanto a Dilma Rousseff, representava a grande esperança de que, quase três décadas após o fim da ditadura, os arquivos secretos dos militares fossem finalmente abertos, na avaliação de Figueiredo.

Não é para menos. Trata-se da primeira vítima da tortura a ocupar o Executivo. "Presa em São Paulo em 1970, Dilma foi levada para a temível Oban (Operação Bandeirantes) e torturada durante 22 dias com choques elétricos, pau de arara, socos e palmatória", lembra Figueiredo. "Após ser condenada pela Justiça Militar, em um processo no qual fora chamada de 'Joana d'Arc da subversão', passou quase três anos na cadeia."
 
A exemplo de seus antecessores, porém, ela também não enquadrou os militares. "Ao formar seu ministério, Dilma manteve Nelson Jobim no comando da pasta da Defesa, um sinal inequívoco de que não havia grande disposição em obrigar as Forças Armadas a abrir os arquivos da ditadura ou a explicar de maneira convincente sua ausência", escreve Figueiredo.
"Afinal", continua, "no segundo mandato de Lula, Jobim tinha feito prevalecer dentro do governo, inclusive perante Dilma, na época ministra-chefe da Casa Civil, a versão dos militares para a suposta destruição generalizada, legal e corriqueira dos arquivos da repressão."
Para o autor, a confirmação de que a presidente manteria o pacto de silêncio entre civis e militares se deu sete meses após sua posse. "O episódio teve início com uma carta enviada pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos ao novo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em agosto de 2011", lembra o autor.

"Os familiares partiam de uma premissa inquestionável: se em 1993 as Forças Armadas tinham sido capazes de elaborar relatos individuais sobre vítimas da ditadura, citando fatos ocorridos vinte anos antes, pelo menos até aquela primeira data os militares mantiveram arquivos da repressão." Diante da constatação, pediram providências, ignoradas pelo governo.

Para Figueiredo, "a cumplicidade de militares e civis na ocultação dos arquivos secretos da ditadura é um entrave para a conclusão do processo de redemocratização".
 
Os acervos estão recheados de provas de violações dos direitos humanos. Se parte deles foi destruída, houve uma "megaoperação de eliminação de provas de crime". Se eles ainda existem, como é mais provável, "o caso passava a ser ocultação de provas".

Mas por que, afinal, os governos civis teriam aceitado passivamente a posição militar? Para Figueiredo, só há uma resposta possível: conveniência. "É a política da boa vizinhança."

 
Índios e empresários

A coleção "Arquivos da Repressão no Brasil" nasceu da colaboração entre jornalistas e historiadores estabelecida durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

Os jornalistas apuravam as informações que os militares não querem contar e os historiadores faziam os documentos falar, na observação de Heloisa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, que assessorou a CNV e coordena a coleção.

Os próximos livros, que devem sair no ano que vem, já estão definidos: "Os fuzis e as Flechas", de Rubens Valente, jornalista da Folha, sobre a situação dos índios sob a ditadura; e "Embaixadores, Gorilas e Mercenários", de Claudio Dantas Sequeira, sobre os braços da ditadura no exterior.

Mais adiante, a coleção deverá ter um livro sobre a participação dos empresários nos esquemas da repressão, tema que por enquanto só foi explorado por René Armand Dreifuss no clássico "1964 - A Conquista do Estado".

Em que pese esse trabalho pioneiro, trata-se de um tema a ser enfrentado. "Permanece o silêncio sobre o apoio da sociedade brasileira e, acima de tudo, sobre o papel dos empresários dispostos a participar na gênese da ditadura e na sustentação e financiamento de uma estrutura repressiva muito ampla que materializou sob a forma de política de Estado atos de tortura, assassinato, desaparecimento e sequestro", diz Heloisa Starling.

A historiadora, que levou a ideia para a Companhia das Letras enquanto escrevia "Brasil, Uma Biografia" em parceria com Lilia Schwarcz, também escreverá um dos volumes.

Ela abordará a maneira como, em vários momentos, os militares romperam a legalidade autoimposta. Defenderá também a tese de que a tortura já era política de Estado depois do golpe de 64, e não apenas depois do AI-5, em 1968, quando se intensificou.

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LEIA UM TRECHO

"[...] A destruição completa e escancaradamente ilícita dos documentos da repressão talvez tivesse sido entendida pelos militares como uma confissão de culpa. Seria o mesmo que reconhecer para o público externo e sobretudo para o interno que por mais de duas décadas as Forças Armadas agiram ao arrepio da lei. Mais honroso, portanto, seria preservar os arquivos (ou parte deles), tomando o cuidado de mantê-los longe do público, da imprensa, do Ministério Público e da Justiça. Dessa forma, seria possível continuar alegando que, na ditadura, as Forças Armadas apenas cumpriram a lei, combatendo o inimigo que ameaçava a ordem no país. E que, no pós-ditadura, não passam de revanchismo as tentativas de abrir os arquivos militares, seja com o intuito de esclarecer fatos nebulosos do regime, seja para colher subsídios que amparem a busca por justiça nos tribunais. Esse é o discurso de muitos oficiais que estiveram em postos-chaves tanto na época da repressão, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI/Codi de São Paulo, quanto na redemocratização, como o general Leônidas."
 
LUGAR NENHUM - MILITARES E CIVIS NA OCULTAÇÃO DOS DOCUMENTOS DA DITADURA
AUTOR Lucas Figueiredo
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (170 págs.)
 
LANÇAMENTO - 5 de outubro, na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, a partir das 19h. Debate com a participação de Lucas Figueiredo, Heloisa Starling e Laura Capriglione.