quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Falta um 11º mandamento na lista bíblica de Dallagnol




Jornal GGN,
​31/12/2015​




Falta um 11º mandamento na lista bíblica de Dallagnol



Por Luis Nassif



Há duas maneiras de ler a Lava Jato: pelas manchetes e pelas entrelinhas.

Já que as manchetes são óbvias, vamos a uma releitura através das entrelinhas do que saiu publicado nos últimos dias.

O repórter policial da Folha, Frederico Vasconcellos, divulgou trechos de um trabalho de Sérgio Moro de 2004, sobre a Operação Mãos Limpas, da Itália. Já havia sido divulgado e analisado no Blog há tempos. Como é repórter policial, restringiu-se aos abusos para-legais analisados por Moro na Mãos Limpas, e vistas por ele como imprescindíveis para a Lava Jato. Tipo, em linguagem policial: tem que manter o suspeito na prisão o máximo de tempo possível afim de que ele abra o bico.

Mais sofisticado, o colunista Mário Sérgio Conti aborda outros ângulos do trabalho, exaustivamente discutidos no Blog. Um deles, o uso desabusado da imprensa, através do vazamento de notícias visando comandar a pauta.

Aborda também os aspectos geopolíticos da cooperação internacional - a rede internacional de autoridades de vários países, montada inicialmente para o combate à narcotráfico e ao terrorismo e, depois, estendida para outras atividades ilícitas, sob controle estrito das autoridades norte-americanas.

Aqui, mostramos claramente que a cooperação internacional tornou-se uma peça da geopolítica norte-americana, visando impedir concorrência desleal de empresas de outros países contra as americanas.

Conti faz uma baita ginástica para a conclusão óbvia: na cooperação internacional, os Estados Unidos entram com motivação econômica. O óbulo: "Para os toscos,  é um garrote vil do imperialismo norte-americano". Para ele, que é sofisticado, "a corrupção beneficia as burguesias locais, mormente (sic) de países periféricos, em detrimento da classe dominante do Império". E justifica como um gesto de auto-defesa dos EUA – aquele país cujas ferramentas de espionagem não pouparam sequer presidentes de nações amigas.

Pelo conteúdo, o artigo foi montado em cima de entrevistas com membros da Lava Jato, que admitem o jogo. Segundo eles, "admite-se que a motivação americana (e não apenas ela) tem boa dose de mercantilismo". Mas, no frigir dos ovos, acreditam que seja benigna, pois "ajuda o Brasil a resolver seus problemas".

A maneira como as corporações norte-americanas instrumentalizam suas instituições torna o Brasil um peixe fácil. É para ajudar o Brasil a resolver seus problemas que a Lava Jato tratou de criminalizar financiamentos à exportação de serviços, que o MPF tenta a todo custo envolver o BNDES e espalhar suspeitas sobre ações diplomáticas na África.

Nem se culpe apenas juiz, procuradores e delegados. Eles apenas se valem de forma oportunista da fragilidade institucional brasileira, da visão rala de interesse nacional, de uma presidente politicamente inerte e de um Ministro da Justiça abúlico para ocupar espaços. Houvesse Ministro da Justiça e PGR, há tempos teriam sido coibidos os vazamentos ilegais, que quase custaram a eleição da presidente.

A manipulação da mídia ficou clara em um episódio ocorrido ontem. Nos depoimentos, qualquer menção a Lula é vazado no mesmo dia.

Ontem, o repórter Rubens Valente, da Folha - que não pertence ao circuito mídia-Lava Jato - levantou o depoimento de um delator apontando propinas a Aécio Neves. É de junho passado. Passou seis meses inédito.

No período da tarde, a Lava Jato tratava de vazar correndo outro depoimento, indicando pagamento de propinas ao presidente do Senado Renan Calheiros, a um senador da Rede, Randolfo Rodrigues.

Todo dia o procurador Deltan Dallagnol aparece em sua campanha pelos 10 pontos a serem alterados na lei para combate à corrupção.

Se fosse uma campanha efetivamente isenta, o 11º ponto seria a obrigação do Procurador Geral da República e do Supremo Tribunal Federal (STF) de abrir os dados em relação a todo pedido de vista ou todo inquérito engavetado. E de se criar formas que impeçam o uso político do vazamento seletivo de inquéritos.

No STF, o ex-Ministro Ayres Britto engavetou por dez anos, sem nenhuma explicação, o inquérito sobre o mensalão mineiro. Tinha que apresentar em uma sessão, foi tomar um café no intervalo, e na volta simplesmente deixou de falar sobre o inquérito.

Do mesmo modo, desde 2010 dorme na gaveta do PGR um inquérito contra Aécio Neves, acusado de ter conta no paraíso fiscal de Liechtenstein em nome de uma offshore. Como o próprio Procurador Geral observou, na denúncia contra Eduardo Cunha, o uso de offshores visa esconder a verdadeira identidade dos titulares da conta. E se visa esconder, é porque o dinheiro é de procedência duvidosa.

De fato, o país precisa ser passado a limpo. E a Lava Jato tem feito um trabalho completo de desvendar as maracutaias de um lado. Mas esconde e blinda os malfeitos do outro lado.

Se ataca só um lado - a ponto de deixar por um fio o mandato de uma presidente inerte - e poupa o outro, é evidente que instrumentaliza o combate à corrupção em favor de interesses corporativos e políticos.

Essa hipocrisia não pode perdurar muito, ainda mais em um ambiente de redes sociais.

Mestre Espedito Seleiro: O filho do criador da sandália de Lampião




Folha.com,
​31/12/15


Filho do criador da sandália de Lampião vira ícone do mundo fashion​

FERNANDA DA ESCÓSSIA DE NOVA OLINDA (CE) PARA A BBC BRASIL


                      Foto: Fernanda da Escossia
​Espedito Seleiro, filho do criador da sandália de Lampião


"O cabra chegou para meu pai e disse que queria uma sandália diferente, de solado quadrado, sem marca da curva da sola do pé. Mostrou um modelo desenhado. Meu pai disse que fazia. Dias depois o cabra veio buscar a encomenda e perguntou a meu pai se ele sabia para quem era a sandália. 'Não é para você?', meu pai perguntou. 'Não, é para o Capitão Virgulino'. 'Pois leve a sandália e nem precisa pagar'".

É assim que Espedito Velozo de Carvalho, o Mestre Espedito Seleiro, 77 anos, resume como surgiu a sandália mais famosa de tantas de seu ateliê em Nova Olinda, cidade do interior do Ceará, a 500 km de Fortaleza.

A sandália de solado quadrado era mesmo para o Capitão Virgulino Ferreira, o Lampião, chefe do bando de cangaceiros que impunha medo, respeito e fascínio no interior do Nordeste nos anos 1930.
O solado quadrado, sem indicar qual era a frente da sandália, tinha um propósito: despistar as volantes, como eram chamadas as equipes policiais que caçavam os cangaceiros pelo sertão. "O solado quadrado deixava uma pegada quadrada, de modo que a volante não conseguia saber para que lado Lampião tinha ido, se estava indo ou voltando", explica Espedito Seleiro.

O filho do criador da sandália de Lampião se transformou, nos últimos anos, em uma assinatura valorizada no mundo da moda, do cinema e do design. Espedito (assim mesmo com S) Seleiro fez peças para marcas como Farm, Cavallera e Cantão.

Em 2006, participou da São Paulo Fashion Week. Sua obra foi tema da exposição "Da Sela à Passarela", que passou por São Paulo e Rio de Janeiro. É criação de Espedito Seleiro o gibão colorido de couro usado pelo personagem do ator Marcos Palmeira no filme O Homem que Desafiou o Diabo (2007).

Fernanda da Escossia


Seleiro apareceu no programa da global Regina Casé, cliente de suas sandálias. Recebeu em 2011 a Ordem do Mérito, concedida pelo Ministério da Cultura a personalidades do setor. Seu trabalho cheio de referências do sertão, com couro colorido e enfeitado, atraiu os designers Humberto e Fernando Campana, que fizeram em 2015 uma parceria com Seleiro para uma linha de móveis intitulada Coleção Cangaço, juntando madeira, palhinha e couro, e os móveis são a novidade em seu trabalho.

"É bom variar, fazer coisas novas", filosofa o artesão.


TALENTO E APRENDIZADO

Ainda menino, Espedito aprendeu com o pai, Raimundo Seleiro, que aprendeu com o pai dele, Gonçalves Seleiro, filho de Antônio Seleiro, a arte de tratar e transformar o couro de boi e de cabra em peças usadas pelos vaqueiros, como selas, cintos e chicotes.

Para vaqueiro, mesmo, ele nunca teve talento: no primeiro dia em que montou no cavalo para laçar um boi levou uma queda tão feia que desistiu da profissão.

Quando ele ainda era criança, sua família fugiu da seca e trocou o sertão dos Inhamuns, área mais árida do Ceará, pelo quase sempre verde Cariri, na região sul do Estado, divisa com Pernambuco. Aos 16 anos, em busca de uma vida melhor, Espedito foi embora para o Paraná. Ficou três anos, sempre trabalhando com couro, e voltou para o Cariri.

Um dia, cansado de tantas peças parecidas - sandálias de couro são uma tradição no interior do Ceará, vendidas em cada esquina e cada mercado popular-, viu que precisava inovar. Usando produtos naturais, como a tintura da casca do angico, árvore comum na região, tingiu o couro.

Fernanda da Escossia

Fez sandálias vermelhas, azuis, amarelas e roxas, cheias de desenhos. Levou para um conhecido no mercado vender. No outro dia vieram pedir mais, e as sandálias coloridas abriram caminho para que ele se diferenciasse dos demais artesãos.

O criador das sandálias coloridas ganhou a admiração da então secretária de Cultura do Ceará Violeta Arraes - de uma família tradicional do Cariri e irmã de Miguel Arraes, cearense que fez carreira política em Pernambuco, Estado que governou três vezes.

O diretor de TV e cinema Guel Arraes, filho de Miguel Arraes, também se tornou cliente das sandálias de couro de Seleiro, e a fama do artesão foi se espalhando.

Um dia, o educador Alemberg Quindins, criador da Fundação Casa Grande, premiada organização de Nova Olinda que capacita crianças e jovens para as artes, pediu a Seleiro que fizesse uma sandália igual à de Lampião para uma exposição sobre o Cariri.

Seleiro tinha guardado os desenhos do pai e reproduziu a sandália "cobertão", de solado quadrado. "Mudei o nome para sandália Lampião. E quando me pediram um modelo para mulher, fiz a sandália Maria Bonita, explica o artesão.


TRADIÇÃO E INOVAÇÃO

Do Cariri para o Brasil, aos poucos o E.S. de Espedito Seleiro, numa letra bem desenhada, foi marcando sandálias, bolsas e mochilas em couro que se espalharam no circuito fashion.

O trabalho atraiu também a atenção da pesquisadora Heloisa Bueno Rodrigues, que fez de Seleiro personagem principal de sua dissertação de mestrado defendida em outubro de 2015 no Programa de Cultura e Territorialidades da UFF (Universidade Federal Fluminense) e intitulada 'Espedito Seleiro: filho dos Inhamuns, mestre do Cariri e artista do Brasil'.

    Fernanda da Escossia
               Espedito treina jovens em seu ateliê

Num estudo sobre economia criativa e cultura, apresentado num seminário na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, a pesquisadora analisa como Seleiro se diferenciou dos demais artesãos ao inovar dentro da tradição popular, mantendo sua identidade. Ao mesmo tempo, explica que o trabalho de Seleiro não é só produto de sua sensibilidade individual de artista, mas resultado de um conjunto de conhecimentos, histórias e tradições.

"O Ceará é muito marcado pelo que historiadores como Capistrano de Abreu chamam de civilização do couro, um ciclo econômico baseado na criação de gado. A obra de Espedito Seleiro traduz essas tradições dos vaqueiros, dos cangaceiros, dos ciganos, desses homens que se espalharam pelo interior do Nordeste. E ele conseguiu manter sua originalidade dentro dessa tradição, conseguiu se diferenciar", afirma a pesquisadora.

Assim como aprendeu o ofício em família, Seleiro ensina o que sabe aos filhos, netos e sobrinhos, e juntos eles mantêm a cooperativa Associação Familiar Espedito Seleiro, que reúne 22 profissionais.
Mestre Seleiro é um professor exigente, que acorda de madrugada, cobra qualidade em cada passo do trabalho e manda recomeçar tudo se achar algo errado. "Eu ensino, eles fazem, eu vejo se ficou bom. Se estiver boa, assino a sandália. Se estiver ruim, desmancho e mando fazer de novo".

Em sua oficina, entre aprendizes e cortes de couro, Seleiro recebe quem chega e tem sempre tempo para um dedo de prosa. Ao lado da oficina criou o Museu do Couro, que conta a história de sua obra e também a saga dos vaqueiros no sertão.

Seleiro sabe que é imitado por muitos, mas não liga. Às vezes pensa em registrar sua marca, às vezes não. De olho nas novidades, investe em capas para celulares e tablets e selas de moto. Comprada na lojinha de Seleiro em Nova Olinda, a sandália Maria Bonita custa R$ 80.

Entre bolsas, mochilas, carteiras e sandálias, as peças trazem tons e desenhos inusitados. Lembram vestidos coloridos numa quadrilha, disputas de vaquejadas, cangaceiros em luta, leques ciganos, flores brotando - e todas as cores do sertão em dias de chuva depois dos meses de seca.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A tentativa de golpe nas manchetes de 2015





Carta Maior, 30/12/2015

   

​​
A tentativa de golpe nas manchetes de 2015


PorTatiana Carlotti


Em tempos de midiatização da vida pública e de domínio dos meios de comunicação, não apenas o conteúdo divulgado, mas, sobretudo, o modo de apresentação das notícias desempenha um papel crucial na formação da opinião do leitor. Neste 2015, ano em que a onda conservadora subiu a crista e ameaçou direitos e conquistas sociais, obtidas a duras penas, é imperativa uma análise da narrativa disseminada no país pelo oligopólio midiático.

Uma breve passagem pelas capas dos principais jornais brasileiros, ao longo deste ano, traz a imagem de um país em frangalhos, (des)governado pelo partido mais corrupto da história e sitiado por sindicatos, movimentos sociais e populares encrenqueiros - mesmo que entre os “encrenqueiros” estejam professores em luta por melhores salários ou adolescentes defendendo seu direito à escola.

Na contramão de outros países democráticos, no Brasil, as empresas de comunicação atuam sem qualquer regulamentação. Não é à toa que, cinquenta anos após a ditadura militar, tenhamos visto o ressuscitar da Marcha da Família e outras excrescências semelhantes. Afinal, a pauta do ano reverberou o tudo ou nada para a manutenção do terceiro turno eleitoral – forjado e sustentando pela mídia em conluio com a oposição partidária.
Em defesa de seus interesses, as empresas de comunicação do país talharam a turbulência política, criando mocinhos e bandidos de ocasião, sem qualquer profundidade analítica quanto aos reais entraves que emperram as instituições políticas e de representação no país. Seguindo a cartilha dos “dois pesos, duas medidas” – aos afins, a complacência; aos demais, o ataque –  utilizaram manchetes tendenciosas, editorializaram reportagens e minimizaram o contraditório, suportado, aqui e ali, em nome de um mínimo de credibilidade.

Aos que ainda creem em isenção da mídia, recomendamos uma visita ao site Manchetômetro, uma excelente iniciativa do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMPE) que vem se consolidando como importante instrumento de averiguação das tendências da imprensa. O site atesta, por exemplo, a prevalência da pauta negativa contra o governo, a presidenta da República e o PT nas manchetes dos jornais.

Confiram nos gráficos abaixo, a dimensão da parcialidade em relação aos partidos políticos, ao governo e à situação, em três jornais de grande circulação no país - O Globo, O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo:



Em artigo publicado na Folha, sob o título Seletividades, o cientista político André Singer observa que “enquanto o PT aparece, diuturnamente, como o mais corrupto da história nacional”, transitando na área do “megaescândalo”; o PSDB, quando apanhado, “merece manchetes, chamadas e registros relativamente discretos”, ocupando a “dimensão da notícia comum”. E provoca: “se uma vinheta do tipo ‘e o metrô de São Paulo?’ aparecesse todo dia na imprensa, em poucas semanas teríamos importantes novidades”.

No reino das más notícias

Ao longo do ano, as manchetes dos principais jornais do país bateram nas mesmas teclas: o caos econômico, a corrupção “histórica” do PT e a fragilidade do governo Dilma. Também tentaram construir uma narrativa “institucional” lançando acusações ditas por terceiros como verdades absolutas, e apostaram nas “pedaladas fiscais” como justificativa para o impeachment. Ainda que não produza impacto isoladamente, na somatória dos dias, das semanas, dos meses e do ano – e, obviamente, de treze anos de governos Lula e Dilma -, o acúmulo da pauta catastrofista nos dá uma boa explicação sobre a explosão de ódio nas ruas.
Em seu artigo, A contribuição milionária da imprensa para ampliar a crise econômica, publicado no Diário do Centro do Mundo, o jornalista Paulo Nogueira cita a expressão do cientista social norte-americano, Roberto Merton, self fulfilling prophecy (profecia autorrealizável). “Você tanto fala numa coisa com bases falsas que ela acaba se tornando realidade. O Brasil vive um momento de profecia autorrealizável. Tanto a mídia, por motivações políticas, gritou que o Brasil vivia um inferno econômico que as coisas, efetivamente, se complicaram. Não há economia que resista a maciços ataques de catastrofismo”, avalia.

Seguindo essa lógica, reparem no bombardeio de más notícias na Folha, um mês antes das manifestações: “Brasil vira problema para firmas estrangeiras” (15.02.2015); “Dilma atrasa repasses para cursos técnicos” (19.02.2015); “Dilma sobe tributo em 150% e empresas preveem demissões” (20.02.2015); “Crise e corrupção tiram selo de bom pagador da Petrobras” (25.02.2015); “Dados negativos ampliam ceticismo sobre ajuste fiscal” (26.02.2015).

Vejam, também, o ataque à Petrobras perpetrado pelas manchetes de O Globo, ao longo de, praticamente, uma semana inteira em abril: “Petrobras recebe socorro de R$ 9 bi e vende plataformas” (18.04.2015); “Petrobras escondeu US$ 8 bi da fiscalização” (19.04.2015); “Petrobras paga por equipamento inútil” (20.04.2015); “Levy: balanço marcará reconstrução da Petrobras” (21.04.2015); “Estatal admite corrupção de R$ 6 bi e prejuízo de R$ 21 bi” (23.04.2015); “Petrobras admite até vender fatias do pré-sal” (24.04.2015).

O sociólogo João Feres Jr., coordenador do LEMEP que faz o levantamento do Manchetômetro, chama a atenção para os artifícios da linguagem usados pela imprensa. Ele cita, por exemplo, a reprodução com destaque dos clichês nas falas “lamentáveis” de Aécio Neves; as "manobras regimentais" de Eduardo Cunha no lugar de "obstrução da justiça" (quando ainda eram cúmplices - PSDB e ele). “Quaisquer eventos que contabilizem pequenas vitórias da oposição que se tornam grandes derrotas do governo", destaca.

Em 3 de janeiro, entre todas as frases ditas por Gilberto Carvalho, ex-secretário geral da Presidência, em sua entrevista na Folha, a selecionada para estampar a manchete do jornal foi: “Não somos ladrões, diz principal aliado de Lula”. Em que pese os tropeços da legenda, a tentativa de fazer do PT o partido mais corrupto da história é um acinte à inteligência do leitor. Soma-se a esse tipo de escolha, o imenso destaque dado às afirmações de delatores e doleiros na cobertura da Lava Jato, transformando acusações em verdades absolutas, antes de qualquer julgamento, nas manchetes dos jornais como, por exemplo, em O Globo no dia 6 de fevereiro: “PT recebeu US$ 200 milhões diz delator; Câmara cria CPI”.

A perniciosa polarização social

Muito já se disse – e com razão - sobre a disparidade da cobertura da mídia dos atos pró e contra o governo Dilma. Em 15.03.2015, véspera do primeiro ato da direita, o Estadão publicava: “Ato contra Dilma coincide com pessimismo econômico” e estampava após a manifestação: “Protesto contra Dilma é maior manifestação desde as ´Diretas Já´”. Com direito à foto panorâmica e imagem de crianças junto à Polícia Militar – a mesma que agrediria adolescentes de colégios estaduais no último bimestre do anoo destaque de página inteira do jornal para o ato contra Dilma se contrasta com a cobertura dada à Marcha pela Democracia e contra o golpe.

Em 14.03.2015, uma foto central ilustrava a manchete daquele ato: “CUT, UNE e MST fazem atos pró-Dilma em 23 Estados”. Nomeados os movimentos – diga-se de passagem, movimentos que o Estadão critica o quanto pode em suas páginasa manchete contrapunha a ideia de um ato organizado com a de um ato “espontâneo” e “apartidário”, mesmo com todo o peso da imprensa na divulgação da agenda do evento em prol do impeachment que contou, inclusive, com cobertura em tempo real na TV.

A construção da polarização também se fez notar na cobertura dos conflitos de rua. Em 12.06.2015, o Estadão publicou a foto de um desses confrontos. Na legenda: “Militantes do PT e da CUT trocaram insultos com grupos que pedem o impeachment da presidenta nas proximidades do hotel que abriga o 5° Congresso Nacional do PT”. Nenhum questionamento sobre o que os “apartidários” foram fazer nas “proximidades” do local onde o PT realizava o seu congresso.

Na mesma toada, a legenda de uma foto, divulgada pela Folha em 15.04.2015, afirmava: “simpatizante do PT (à dir.) discute com mulher em rua do centro de São Paulo, pessoas contrárias à gestão Dilma rasgaram material que era distribuído por petistas com críticas ao governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP)”. Apesar da foto trazer duas mulheres discutindo, a ação da discussão foi atribuída à petista, mesmo se sabendo que foram os “apartidários” que rasgaram o material.
Feres sustenta que a mídia tem capacidade de mobilização, mas essa capacidade não é constante para todas as classes sociais.Ela tem mais capacidade de mobilizar a classe média, público potencial das passeatas anti-PT do que as classes populares. Estas não compraram o produto “impeachment”, não são passivas em relação às coisas que recebem da grande mídia.”

Ele avalia, também, a falta de apoio da mídia na última passeata da direita, atribuindo isso ao não apoio a Eduardo Cunha. “Tomando somente os editoriais dos três jornalões desde junho deste ano, da base do Manchetômetro, vemos claramente que os jornais tendem a se posicionar contrariamente a esse personagem, ainda que nutram esperanças de um impeachment sem Cunha no comando.” Vale destacar que ao cobrir a última manifestação da direita, neste dezembro, o Estadão já anunciou a agenda do próximo ato: “Protesto tem adesão menor e oposição se mobiliza para março” (14.12.2015).

A orquestração do golpe

Na falta de um crime, a partir de junho, as chamadas “pedaladas fiscais” (não julgadas) receberam ênfase na pauta da imprensa. Elas foram o pretexto encontrado pelos partidos de oposição – com a cumplicidade da mídia – para legitimar o pedido de impeachment. Isso explica, em boa parte, a indignação contra o senador Adir Gurgacz (PDT-RO), após ele anunciar que não seguirá a determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), em sua relatoria das contas presidenciais. O Globo e a Folha reagiram, estampando em suas manchetes: “Relator contraria TCU e pede aprovação das contas de Dilma”; no Estadão, “Relator sugere aprovar contas de Dilma e contraria TCU”. Pela Constituição, o Senado é soberano, portanto, não é obrigado a seguir as recomendações do TCU.

Ao longo do ano, junto à pauta das pedaladas fiscais e das manchetes sugerindo “manobras” do governo contra o TCU, o que se viu nas capas dos principais jornais do país foram falas de terceiros contra a presidenta, por exemplo, “Para oposição, Dilma tenta inibir ações de tribunais” (OESP, 08.07.2015), ou “Empreiteiro afirma ter doado a Dilma por temer retaliação” (OESP, 09.05.2015). Além de comparações entre o atual governo e o do ex-presidente Fernando Collor: “Sob Dilma, PIB é o pior desde Collor” (FSP, 29.03.2015); “Rejeição a Dilma atinge nível de Collor pré-impeachment” (FSP, 21.06.2015).

Outro personagem atacado pelos jornais, sobretudo a partir de outubro, foi o ex-presidente Lula. No Estadão, quase metade das manchetes ou chamadas de capa em outubro tentaram relacioná-lo à corrupção. Na Folha, em 27.11.2015, uma pérola no trabalho com a imagens: ao invés de aparecer o senador Delcídio Amaral, preso pela Lava Jato, para ilustrar a manchete “Delcídio diz que agiu por ´questão humanitária´”, quem surge é o ex-presidente sozinho, em uma foto grande, com a legenda: “o ex-presidente Lula, que fez críticas ao senador Delcídio Amaral”.

 

Em contrapartida, o tratamento dispensado à dupla FHC e Aécio Neves deu o tom e a agenda do golpismo nas manchetes e chamadas dos jornais. Em junho, o Estadão publicou uma reportagem sobre os desafios do PSDB (07.06.2015). Em agosto, FHC disparou na Folha: “Renúncia de Dilma seria um gesto de grandeza” (18.08.2015) e, em O Globo, “FH surpreende, sugere renúncia e revolta o PT”. Em setembro, mais uma chamada no Estadão: “Não sabemos quem estará de pé em 3 meses” (05.09.2015). Em novembro, “Dilma está pagando pela herança maldita do Lula” (11.12.2015), afirmava o tucano, utilizando uma expressão atribuída ao seu governo -  “a herança maldita” - que, pelo visto, não ele conseguiu digerir até agora.

Crítica e denúncia dos abusos

O papel da internet contra os abusos cometidos pela imprensa, trazendo à tona o contraditório e reorientando, inclusive, algumas pautas se fez notar ao longo do ano. Um dos exemplos foi o episódio da Carta do vice-presidente Michel Temer à presidenta Dilma. Chacota nacional nas redes sociais, a onda de escárnio se chocou com a construção minuciosa da imagem do vice pela imprensa durante 2015. Um exemplo emblemático na Folha: em 07.08.2015, Temer ocupa o topo inteiro do jornal, diante de um fundo com os dizeres “Governabilidade e Confiança”. Abaixo, a imagem do panelaço contra o PT, com a presidenta em uma televisão ao fundo.

Como explica Feres, há uma batalha pelo espaço público no Brasil. “Antes, a grande mídia tinha o monopólio da representação da opinião pública. Esse monopólio só era perdido em tempos de eleição, quando os partidos ganham acesso direto ao eleitorado. Hoje, a internet oferece uma alternativa, mas ainda é muito tímida, pois também na internet as grandes empresas usam de seu poder econômico para atrair mais audiência”.

“Uma das saídas para salvar a esfera pública é a realização de uma crítica cotidiana das práticas jornalísticas, denunciando o uso desses estratagemas de linguagem, das assimetrias e distorções da cobertura, do agendamento torpe e dos enquadramentos reacionários que pululam no jornalismo que eles produzem. Fazendo essa crítica contundente ao mesmo tempo criamos novos canais de comunicação para o cidadão brasileiro”, orienta o sociólogo.

Além do Manchetômetro, o LEMEP acaba de lançar o Congresso em Notas, um boletim semanal com notícias sobre o Legislativo que, definitivamente, não serão encontradas na imprensa brasileira.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O derradeiro 'Golpe Moral' no golpismo ​





Carta Maior,
28/12/15​
                     

O derradeiro 'Golpe Moral' no golpismo ​


Por Francisco Fonseca - Professor de ciência política na FGV/Eaesp e PUC/SP



​2015 está terminando e, com ele, aparentemente o golpismo da direita contra a Democracia e o Estado de Bem-Estar Social brasileiro. Embora toda e qualquer análise peremptória sobre a crise política, social e institucional brasileira seja, em larga medida, precária, em razão da fluidez da conjuntura e de potenciais movimentos provindos da controversa “Operação Lava Jato”, do Congresso Nacional, do STF, do TSE e do jogo político como um todo, alguns fatos políticos são essenciais nesse complexo tabuleiro da vida política nacional. Procurei analisar essa precariedade analítica nos artigos “A fluidez da conjuntura política e os próximos lances” e “A virada de Dilma”, publicados neste site respectivamente em 21 outubro e 20 de dezembro deste ano.

Tais fatos políticos referem-se à batalha sobre a “moralidade do golpe” (entendida como legitimação moral), chamada pelos golpistas – das raposas políticas aos inocentes úteis – de impeachment. Nesse sentido, três grandes fatos, de uma inumerável cepa, devem ser ressaltados:


O primeiro refere-se à “peça” supostamente jurídica que “fundamentou” a abertura do processo de impeachment pelo Congresso Nacional produzida pelos advogados Bicudo e Reali que mais se parece um “faz-me-rir” à guisa dos processos kafkanianos. Ressentimentos pessoais e políticos, de um lado, e oportunismo político – devidamente sustentados pelo PSDB e pela oposição derrotada nas última eleições – se imiscuem à peça que tem de tudo, menos fundamentação jurídica. Não é por outro motivo que os principais magistrados brasileiros e suas associações representativas posicionaram vigorosamente contrários a tal processo. Tratou-se de um importantíssimo golpe moral lancetado pelo golpismo contra si.
​​
Um outro golpe moral, de importância ainda maior, refere-se ao fato de que a liderança pró destituição da presidente Dilma responde pelo nome de Eduardo Cunha, cuja permanência no Congresso Nacional –  sobretudo como presidente da Câmara –, e em liberdade, só podem ser compreendidas pelo papel prioritariamente político e secundariamente jurídico do Supremo Tribunal Federal. A velha imagem da “raposa cuidando do galinheiro” encaixa-se perfeitamente a Eduardo Cunha, o que contribuiu vigorosamente para deslegitimar o golpismo parlamentar, cuja articulação vinha da própria vice-presidência da República.  Ambos os fatos – o “faz-me-rir” jurídico aceito por um parlamentar cuja biografia confunde-se com ficha policial, no dizer do próprio Procurador Geral da República, Rodrigo Janot – confluem para o descrédito político/institucional do golpismo. Nesse sentido, em razão do impeachment ser encarnado por Cunha, embora não apenas por isso, as manifestações das classes médias minguaram fortemente.


O terceiro fato político não se encontra no âmbito político/institucional, mas social, em sentido lato. Trata-se da abordagem beligerante, truculenta, desrespeitosa e intelectualmente “analfabeta” de jovens ricos ao grande artista Chico Buarque. Embora esse tipo de fascismo cotidiano esteja presente em inúmeras situações desde o segundo turno das eleições presidenciais – nas ruas, em lugares públicos e privados, no mundo digital, na cobertura da mídia golpista, e sobretudo no ignóbil senso comum –, o aspecto distintivo diz respeito à moralidade da figura de Chico Buarque. Em outras palavras, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, conhecido tanto por sua genialidade como por sua coerência política e intelectual – que se pode concordar ou discordar, pouco importa –, barrou a suposta moralidade golpista. Afinal, aqueles jovens, verdadeiros “filhinhos de papai, do rentismo e da mídia”, expressaram todo o ódio (e ignorância) de classe de, se tanto, 10% dos brasileiros, isto é, dos mais ricos inconformados com a maior igualdade social no país. As respostas de Chico Buarque sobre o PSDB ser, segundo ele, um “partido bandido” e sobre a “desinformação de quem lê a Revista Veja”, entre outras respostas, são, por si só, desconstrução da legitimação moral do golpe. Mas a própria imagem do episódio já seria significativa do modus operandi dos proto fascistas filhinhos do privilégio e da ignorância. Após esse episódio ficou mais difícil ir às ruas defender o impeachment, assim como achincalhar figuras públicas, tendo em vista que se escancarou a precariedade da “peça” jurídica de Bicudo/Reale e a não moralidade de Cunha para liderar o impeachment da presidente: afinal, como pode alguém que se locupletou comprovadamente de recursos públicos destituir uma presidente acusada, sem provas, de algo muito menor? Nesse sentido, um dos “filhinhos” ter chamado Chico Buarque de “merda” coroa a insensatez fascista, afastando, pouco a pouco, grande parte dos inocentes úteis que, devido ao massacre midiático e ao ódio de classes das elites que, contudo, transbordou aos segmentos populares, veem no PT a causa de todos os males brasileiras. Ruiu, portanto, do ponto de vista social, em seu veio simbólico, o golpismo..

Pois bem, esses três fatos políticos possivelmente enterrarão, cada qual a seu modo, o golpismo, notadamente quanto à imoralidade política que representa: a tentativa de derrubada do poder de quem se elegeu legitimamente pelo voto, assim como – e ainda mais significativo – a derrogação da democracia política e social/trabalhista no país, cuja consolidação ainda está em processo.

Portanto, daqui para frente, salvo acontecimentos completamente imprevistos, o golpismo terá mais dificuldade de se articular e sobretudo de justificar moralmente – isto é, sua legitimidade moral – a derrubada da presidente Dilma. Trata-se de mais uma obra de nosso maior artista!

Ainda assim, resta um longo caminho: político/institucional (barrar o golpe e refazer pactos sociais de outras naturezas), econômico (voltar-se ao desenvolvimento com distribuição de renda) e sobretudo proveniente da pressão popular ao ocupar as ruas, encarar o debate e o embate público e propor concretamente reformas no sentido de aprofundar a democracia no país: reforma da mídia, combate ao rentismo, reordenação do agronegócio, entre tantos outros. Para tanto, o enfrentamento moral – referente à moralidade pública, típica da ação política, enfatize-se – é elemento-chave. Em outras palavras, conquistar “as mentes e os corações” para a causa da democracia política (o que inclui direitos civis) e social (que implica direitos voltados à igualdade, direitos trabalhistas e outros) é a grande batalha que reserva o ano de 2016!

A moralidade política é, dessa forma, aliada crucial na batalha das “mentes e dos corações”. Nesse sentido, 2015 termina bem comparativamente ao que se viu durante todo o ano. Contudo, não há espaço para tréguas, uma vez que a ânsia golpista permanece articulada, embora com muitas contradições.

Por fim, somente o encerramento do processo de impeachment, conjugado com um novo modelo de desenvolvimento (a queda de Joaquim Levy é, nesse sentido, alvissareira) a à articulação com movimentos sociais progressistas poderá fazer com que o Governo Dilma realmente comece! A partir daí pode-se pensar na reforma do sistema político – causa maior de nossa imoralidade pública ao abarcar quase todos os partidos –, mesmo que a médio prazo, a rigor iniciada pelo STF com a proibição do financiamento empresarial a campanhas, pois absolutamente crucial para o futuro da democracia brasileira.​

domingo, 27 de dezembro de 2015

Argentina: entre a crise de governabilidade e a ditadura mafiosa





Carta
​Maior, 27/12/15​





Argentina oscilando entre a crise de governabilidade e a ditadura mafiosa



PorJorge Beinstein

Já se destacou até o cansaço que, pela primeira vez em um século, no dia 10 de dezembro de 2015, a direita chegou ao governo sem ocultar seu rosto, sem fraude, sem golpe militar, através de eleições supostamente limpas, se trata de um grande novidade.

Mas é necessário esclarecer três coisas:

Em primeiro lugar, é evidente que não se tratou de “eleições limpas”, mas sim de um processo assimétrico, completamente distorcido por uma manipulação midiática sem precedentes na Argentina, ativada há vários anos e que finalmente derivou num operativo sofisticado e avassalador. Consumada a operação eleitoral, a presidenta que saía foi destituída poucas horas antes de entregar a faixa presidencial através de um golpe de Estado “judiciário”, demonstração de força do poder real que estabelecia, desse modo, um precedente importante, na verdade o primeiro passo do novo regime.

Isto nos leva a um segundo esclarecimento: o kirchnerismo não produziu transformações estruturais decisivas do sistema, introduziu reformas que incluíram vastos setores das classes baixas, saciou demandas populares insatisfeitas (como o julgamento de protagonistas da última ditadura militar), implantou uma política internacional que distanciou o país do submetimento integral aos Estados Unidos e outras medidas que se impuseram às estruturas e grupos de poder pré existentes. Mas não gerou uma avalanche plebeia capaz de neutralizar as bases sociais da direita, não quebrou os pilares do sistema (seus aparatos judiciais, midiáticos, financeiros, transnacionais, etc), não desarticulou a ofensiva reacionária. A alternativa transformadora radicalizada estava completamente fora do script progressista, a astúcia, o jogo hábil e seus bons resultados em curto e médio prazo maravilharam o kirchnerismo, o levou por um caminho sinuoso, acumulando contradições marchando rumo a uma derrota final. O governo que terminou nunca propôs uma transgressão dos limites do sistema, um salto por cima da institucionalidade elitista-mafiosa, das panelinhas judiciais influenciadas pelo partido midiático, pelos personagens destacados de uma lúmpen burguesia que aproveitou o restabelecimento da governabilidade pós 2001-2002 para curar suas feridas, recuperar forças e renovar seu apetite.

Como era previsível, as classes médias, grandes beneficiárias da prosperidade econômica dos anos do auge progressista, não tiveram uma reação de gratidão para com o kirchnerismo, e sim o contrário. Incentivadas pelo poder midiático, ela retomou os velhos preconceitos reacionários, sua ascensão social reproduziu formas culturais latentes provenientes do velho gorilismo, do desprezo à “negrada”, sintonizada com a onda regional e ocidental de aproximação dessas classes médias ao neofascismo. Não se tratou, portanto, de uma simples manipulação midiática, manejada por um aparato comunicacional bem organizado, mas sim do aproveitamento das irracionalidades ancoradas no mais profundo da alma do país burguês.

A terceira observação é que o fenômeno não é tão novo. É verdade que o processo de manipulação eleitoral se insere no declínio do progressismo latino-americano, o que foi realizado de forma impecável por especialistas de primeiro nível, certamente monitorados pelo aparato de inteligência dos Estados Unidos, não deveríamos esquecer que antes da chegada do peronismo, em 1945, a sociedade argentina foi moldada durante cerca de um século de república oligárquica (que não foi abolida durante o período dos governos radicais, entre 1916 e 1930), deixando rastros culturais e institucionais bem profundos, atravessando as sucessivas transformações das elites dominantes, como uma espécie de referência mítica de uma época onde supostamente os de cima mandavam através de estruturas autoritárias estáveis.

Nesse sentido, é uma curiosa casualidade, carregada de simbolismo, o fato de que foi o presidente “cautelar instantâneo”, Federico Pinedo imposto pela máfia judicial, o encarregado de entregar o bastão presidencial a Macri. Federico Pinedo: neto de Federico Pinedo, uma das figuras mais representativas da restauração oligárquica dos Anos 1930, bisneto de Federico Pinedo Rubio, intendente de Buenos Aires no final do Século XIX e depois deputado nacional durante um prolongado período, representante do velho partido conservador. Seguir a trajetória dessa família permite observar a ascensão e a consolidação do país aristocrático colonial, construído desde mediados do Século XIX. O longínquo descendente daquela oligarquia foi o encarregado de entregar os atributos do mando presidencial a Mauricio Macri, que por sua parte é herdeiro de um clã familiar mafioso de raiz ítalo-fascista, instaurado por um “governo de gerentes”. Os avatares de um golpe de Estado instantâneo, estabelecendo um vínculo histórico entre a lúmpen burguesia atual e a velha casta oligárquica.


A crise

O contexto econômico internacional consiste numa crise deflacionária motorizada pelo desinflar das grandes potências econômicas. Os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão navegando entre o crescimento anêmico, o estancamento e a recessão, a China desacelerando seu crescimento e o Brasil em recessão determinam uma conjuntura marcada pelo esfriamento da demanda global, o que deprime os preços das matérias-primas e estanca ou diminui os mercados de produtos industriais. Em suma, um panorama mundial negativo para um país como a Argentina, que vive da exportação de matérias-primas e, em menor escala, de produtos industriais de médio e baixo nível tecnológico. Antes, para não cair na recessão por esses ciclos internacionais adversos – desde o ponto de vista teórico –, a economia Argentina precisava se apoiar cada vez mais na expansão e na proteção do seu mercado interno, seu tecido industrial, sua autonomia financeira. Porém, o governo de Macri inicia seu mandato fazendo exatamente o contrário: diminuindo o mercado interno através de uma redução drástica, em termos reais, de salários e aposentadorias, aumentando o endividamento externo, desprotegendo o grosso da estrutura industrial. É nessa direção que apontam suas primeiras decisões econômicas iniciais como a mega desvalorização do peso, a eliminação ou diminuição dos impostos às exportações, o aumento da taxa de juros, a liberalização das importações, e logo a eliminação de subsídios aos serviços públicos, com o conseguinte aumento de suas tarifas. Se trata de uma gigantesca transferência de renda em favor dos grupos econômicos mais concentrados (grandes exportadores agrários, empresas e especuladores financeiros possuidores de fundos em dólares, etc.), de um saque descomunal, que se prolongará no tempo ao ritmo dos aumentos dos preços, as depressões salariais, as desvalorizações e aumentos de tarifas. O desemprego cresce, assim como a pobreza e a indigência, a concentração de rendas avançará (já está avançando) rapidamente e o crescimento econômico nulo ou negativo será inevitável.

Segundo alguns especialistas, estaríamos embarcando num vórtice completamente irracional, marcado pelo declínio do grosso da indústria e da desintegração da sociedade, resultado da aplicação ortodoxa de receitas neoliberais “equivocadas”. Entretanto, o governo não se equivoca, atua segundo a dinâmica de uma lúmpen burguesia portadora de uma racionalidade instrumental, cujo fim não é outro senão o da acumulação rápida de riquezas, o saqueamento de tudo o que se cruzar pelo caminho. A racionalidade que brota da cabeça de certos economistas é a dos bandidos, dos donos do poder econômico, não é a do desenvolvimento econômico harmonioso e com resultados que beneficiem toda a sociedade.

Assim é como passamos de uma versão suave da política econômica anticíclica (desde o ponto de vista da tendência da economia global) a uma nova política pró-cíclica, que vem se incorporando com notável ferocidade à degeneração geral (financeira, institucional, ideológica, etc) do mundo capitalista.

O progressismo governou a Argentina entre 2003 e 2015 restabelecendo a governabilidade do sistema, tudo andou bem enquanto a besta lambia suas feridas, num contexto de relativa prosperidade, se recompondo do terremoto dos anos 2001-2002, mas desde 2008 as coisas foram mudando: o achatamento do crescimento econômico exacerbou sua vontade de abocanhar uma porção maior da torta, e nesse sentido, o dia 10 de dezembro de 2015 pode ser visto como o ponto de inflexão, como um salto qualitativo do poder draculesco das elites dominantes, inaugurando uma etapa de decadência da sociedade argentina. As forças entrópicas, devastadoras, conseguiram finalmente impor sua dinâmica.


Dois cenários

Nos encontramos diante dos primeiros passos de uma aventura autoritária de trajetória incerta. Não é fruto do acaso, e sim resultado de um prolongado processo de amadurecimento (degeneração) das elites dominantes da Argentina, transformadas em matilhas de predadores, em sintonia com o fenômeno global da financeirização e da decadência. Basta ver o próprio governo e seus apoiadores, um grupo no qual se sobressaem personagens acusados de crimes especulativos, como Alfonso Prat Gay, Carlos Melconian e Juan José Aranguren, ou “poderosos chefões” como Cristiano Rattazzi, Paolo Roca, Franco Macri (pai do presidente), ou de outros suspeitos de serem agentes da CIA, como a nova chanceler Susana Malcorra e Patricia Bullrich, para perceber que a tragédia local não é mais que um apêndice periférico de um capitalismo global embarcado numa louca corrida liderada por lobos de Wall Streeet, militares delirantes e políticos corruptos destruindo países inteiros, triturando instituições, saqueando recursos naturais e impondo um processo de destruição em escala planetária.

A lúmpen burguesia argentina, com sua articulação mafiosa na cúpula do poder (empresarial, judicial, midiático) e suas prolongações institucionais e abertamente ilegais, deixou de ser a força dominante nas sombras, que conspirava, condicionava, bloqueava e impunha, passando a assumir abertamente o governo. Isso pode ser atribuído a vários fatores, como a inexistência de um elenco de “políticos” com capacidade de decisão para implementar o mega-saque planejado, o que leva os próprios gerentes a tomar essa responsabilidade de forma direta – quer dizer, os “técnicos”, completamente alheios à conjuntura eleitoral.

O novo esquema é bastante eficaz na hora de adotar medidas contundentes contra a maioria da população, mas parece ser pouco útil na hora de amortecer o inevitável descontentamento popular (incluindo o de uma porção significativa de ingênuos eleitores de Macri). As panelinhas sindicais poderão gerar inação durante certo tempo, alguns políticos provinciais empurrarão para esse mesmo sentido, e também os meios massivos de comunicação buscarão distrair, confundir, justificar (já o estão fazendo), intensificando a campanha de idiotização, mas tudo isso é insuficiente para conter a magnitude do desastre em curso.

Por outra parte, o carácter lúmpen e instável do regime macrista, afetado por previsíveis disputas internas, golpes financeiros, turbulências exógenas de todos os tipos e próprias de um sistema global à deriva, e pressionado por uma base social cuja insatisfação crescerá até formar uma avalanche gigantesca, revelando a única alternativa possível de governabilidade mafiosa.

Se trata da formação de um sistema ditatorial com rosto civil e de configuração variável, que tem claros antecedentes internacionais recentes, é guiado pelo aparato de inteligência dos Estados Unidos e se apoia na chamada doutrina da guerra de quarta geração, cujo objetivo central é a transformação da sociedade, objeto do ataque, numa massa amorfa, degradada, acossada por erupções prolixas de violência caótica, impotente diante do roubo que está sofrendo. Iraque, Líbia e Síria aparecem como experiências extremas e longínquas, ao contrário de México e Guatemala, paradigmas latino-americanos que devem ser lembrados, embora a especificidade argentina incluirá certamente suas características originais ao novo caso. Temos que pensar numa combinação pragmática de distintas doses de repressão direta “clássica”, judicialização de opositores sindicais e políticos, bombardeio midiático (diversionista e/ou demonizador), repressão clandestina, incentivos às rivalidades sociais (quanto mais sanguinárias melhor), irrupção de grupos que aterrorizam a população (como os “maras” na América Central ou os batalhões de narcos no México), fraudes eleitorais, etc.

Entretanto, essa estratégia não pode se instalar plenamente de um dia para outro, requer tempo e uma certa passividade inicial das bases populares, e encontraria sérias dificuldades numa sociedade complexa como a argentina, com um amplo leque de classes baixas e médias portadoras de culturas, capacidade de organização, de histórias que a visão superficial dos gerentes financeiros e dos especialistas em controle social não conseguem ver como ameaças visíveis (ou parecem ser resistências ou nostalgias impotentes), mas que constituem latências, bombas de tempo de enorme poder, que podem explodir em qualquer momento. Este desafio de lidar com os de baixo pode convergir com o antigo temor que os de cima têm das hordas incontroláveis de pobres, conformando grandes interrogantes gelatinosos que generalizam as incertezas das elites, deteriorando sua psicologia.

A não viabilidade desse cenário sinistro, o possível rechaço a ele, deixaria espaço aberto para o desenvolvimento de um segundo cenário: o de uma crise de governabilidade muito mais devastadora que a de 2001. Nesse caso, a fantasia elitista da recomposição ditatorial mafiosa do poder político não havia sido outra coisa senão uma ilusão burguesa acompanhada do fim da governabilidade, do começo de um período de alta turbulência, de desintegração social de duração imprevisível. O progressismo tão desprezado pelas elites havia sido um paraíso capitalista destruído por seus principais beneficiários.

Como vemos, o inferno mafioso não é inevitável, embora não devamos subestimar a capacidade operativa dos seus executores locais e seu mega padrinho imperial, pois os Estados Unidos estão decididos a reconquistar o seu quintal latino-americano.

Para que lado penderá esta história? A resistência popular terá a resposta.


Tradução: Victor Farinelli


Blog do Miro, 25/12/15



Mídia esconde regressões na Argentina


Por Altamiro Borges



​A mídia brasileira, com seus dogmas neoliberais e seu complexo de vira-lata, comemorou a vitória de Mauricio Macri na vizinha Argentina. "Fim do kirchnerismo", soltou rojões. Mas ela poderá morder a língua mais cedo do que tarde. Em menos de um mês da sua posse, o queridinho dos EUA e das elites locais e latino-americanas já desponta como um ditador de quinta categoria, que poderá incendiar o país vizinho. Os trabalhadores argentinos, conhecidos por sua combatividade, já dão sinais de que não vão aceitar passivamente a truculência do empresário mafioso que agora ocupa a Casa Rosada.

Empossado em 10 de dezembro, Mauricio Macri já escancarou o seu jeito autoritário de governar. Por decreto, sem a aprovação do Senado, ele nomeou dois ministros na Suprema Corte - o equivalente ao STF no Brasil; por decreto, cassou os mandados dos dirigentes dos dois órgãos que aplicam a "Ley de Medios"; por decreto, proibiu os "piquetes" no país, os tradicionais bloqueios de estradas como forma de protesto social. Para o seu ministério, Macri nomeou agiotas e outros neoliberais de carteirinha. Como plano de governo, ele anunciou que pretende impor um duro plano de austeridade. Ele também voltou a falar em anistia para os generais e torturadores da sanguinária ditadura militar do país. 


15 mil em defesa da Ley de Medios

Os sinais de resistência já pipocam. A decisão de extinguir por decreto os mandados dos dirigentes da Autoridade Federal dos Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSCA) e da Autoridade Federal de Tecnologias da Informação e Comunicações (AFTIC) gerou revolta. Martín Sabbatella, coordenador da AFSCA, rejeitou deixar o cargo. A policia foi acionada para evacuar o prédio em Buenos Aires. O jornal Página-12, único impresso crítico do país, relata que o novo ministro das Comunicações, Oscar Aguad, tem como missão enterrar a "Ley de Medios", aprovada pelo parlamento e sacramentada pela Suprema Corte. Macri já foi apelidado de "presidente do Clarín", o império midiático da Argentina.  

Uma semana após a posse do "presidente do Clarín", cerca de 15 mil argentinos já realizaram um ato em Buenos Aires "contra o golpismo macrista" e em defesa da democratização das comunicações. Os manifestantes carregaram cartazes com os dizeres: "Na lei de meios não se toca", "Macri = censura" e "nem decretos, nem repressão". Eles também protestaram contra a intenção do governo de extinguir o programa televisivo "678" na TV Pública, uma das poucas vozes críticas da televisão argentina. "Nós lutamos contra Videla [Jorge Videla, o sanguinário ditador da argentina] e vamos continuar lutando pela democracia", afirmou Estela de Carloto, líder do movimento Avós e Mães da Praça de Maio.


Repressão violenta aos trabalhadores

No que se refere à proibição de piquetes, o primeiro confronto já ocorreu. Segundo a agência Reuters, "as forças de segurança argentinas enfrentaram trabalhadores que protestavam no acesso ao principal aeroporto do país nesta terça-feira (21), depois do novo governo de Mauricio Macri ter advertido que não toleraria bloqueio de rodovias, prática que costuma ser usada como forma de protesto".

"A TV argentina mostrou embates violentos entre funcionários da empresa avícola Cresta Roja e os soldados, que lançaram água e dispararam balas de borracha para dispersar os manifestantes. Vários trabalhadores ficaram feridos... Imagens de enfrentamentos entre forças de segurança e manifestantes haviam praticamente desaparecido nos últimos 12 anos, durante os governos de Néstor Kirchner e Cristina Kirchner, que haviam orientado policiais e soldados a não reprimir os protestos".


Golpe na Suprema Corte

a imposição de dois juízes da Suprema Corte gerou críticas até entre apoiadores do novo ditador. A Folha tucana, que festejou a derrota do kirchnerismo, relatou cautelosa: "Mauricio Macri já entrou em sua primeira polêmica ao nomear por decreto dois juízes da Suprema Corte. O dispositivo, embora previsto na Constituição, foi usado uma única vez, segundo disse à Folha o constitucionalista Daniel Sabsay, professor da Universidade de Buenos Aires. A iniciativa gerou rejeição no próprio bloco que apoiou a eleição de Macri, entre juristas e na opinião pública".

A indicação de Horacio Rosatti e Carlos Rosencrantz para a Suprema Corte deveria, por tradição, ser aprovada por dois terços do Senado. Mas o PRO, sigla de Mauricio Macri, não tem maioria na Casa, que é hegemonizada por peronistas e kirchneristas. "É uma medida autoritária inédita na democracia e deve ser anulada", protestou no Twitter o Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel. Apesar da postura autoritária, a mídia venal da Argentina - e também a do Brasil - evita criticar o novo ditador. "Agora que Cristina Kirchner se foi, não há mais crítica", afirma a professora Libertad Mariana Strazzeri, que condena a descarada "campanha midiática em favor de Macri". 

"Macri faz xixi e a TN [canal do Grupo Clarín] diz que chove", dizia um cartaz na manifestação em defesa da Ley de Medios. A paciência dos argentinos, porém, tende a rapidamente se esgotar diante do truculento e antipopular Maurício Macri. A mídia hegemônica argentina - e brasileira - ainda vai ter muita dor de cabeça para explicar esta brutal regressão.

Os segredos da chanceler argentina Susana Malcorra​







​Miradas al Sur, 27 de dezembro de 2015



Os segredos da chanceler argentina Susana Malcorra​



Por Walter Goobar, em Miradas al Sur


​A influente revista estadunidense Foreign Policy, em sua última edição – do dia 17 de dezembro –, cita uma investigação interna das Nações Unidas para revelar a nefasta participação da atual chanceler argentina, Susana Malcorra, quando trabalhava como chefa de gabinete do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. O veredito de um painel de três juízes independentes nomeados por Ban Ki-moon – ao qual Miradas al Sur teve acesso –, responsabiliza Malcorra e outros funcionários de alta patente pelo ocultamento de um caso de abuso sexual a menores realizado por membros das Forças de Paz, os chamados “Capacetes Azuis”, e também pela perseguição sofrida pelo funcionário sueco Anders Kompass, que obteve a notícia junto às autoridades francesas, visando acabar com os abusos.

No dia 29 de abril de 2015, o mundo ficou sabendo sobre os sistemáticos casos de abusos sexuais contra menores por parte das Forças de Paz em Guiné, no Chade, em Guiné Equatorial e num acampamento de refugiados na República Centro-africana (RCA). Os testemunhos teriam sido recolhidos durante quase um ano pelo EACDH (Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos) e pela Unicef (Fundo da ONU para a Infância), e foram vazados para o diário britânico The Guardian. O artigo incluiu o testemunho de Anders Kompass, um especialista em Direitos Humanos sueco com mais de 40 anos de experiência, que foi suspenso e estava sendo investigado pela ONU após ter alertado o governo francês sobre os abusos.

Até agora, Anders Kompass tem guardado silêncio sobre o seu papel neste caso, mas na semana passada, um painel independente nomeado pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, estabeleceu a inocência do funcionário sueco, que só tentava acabar com os abusos contra menores, e concluiu que vários funcionários de alta patente – entre os quais foi mencionada a atual chanceler argentina, Susana Malcorra, que nesse momento trabalhava como chefa de gabinete de Ban Ki-moon – estavam mais preocupados em silenciar e perseguir o denunciante do escândalo, Anders Kompass, do que em proteger as crianças do perigo que se encontravam, ou sancionar os abusadores.

No dia 19 de maio de 2014, um garoto de 11 anos declarou que um soldado francês lhe prometeu comida em troca de sexo oral, foi estuprado e recebeu bolachas e algumas notas. A criança deu uma descrição detalhada do soldado e afirmou que poderia identificá-lo, e mesmo assim nenhuma medida foi tomada, sequer uma advertência aos soldados, não se realizou nenhum esforço para evitar os abusos, nenhum alerta foi expedido às dezenas de milhares de adultos que vivem no acampamento. O pessoal da Unicef reportou os casos de sexo oral forçado e de estupro anal de garotos entre 8 e 15 anos, e não se tomou nenhuma medida. No total, as entrevistas documentam o abuso sexual de 13 crianças por parte de 16 soldados da Força de Paz: 11 eram franceses, três do Chade, e dois de Guiné Equatorial. Em outros sete, os Capacetes Azuis atuaram como cúmplices. O informe acusa a 23 soldados no total.

Em meados de julho de 2014, a ONU ainda não havia tomado nenhuma medida contra os abusos. Nesse contexto, Anders Kompass informou as autoridades diplomáticas francesas, que solicitaram uma cópia do informe, com o fim de iniciar uma investigação. No dia 30 de julho, o funcionário sueco recebeu uma resposta do governo francês, informando que uma investigação estava em curso.

Três meses mais tarde, quando o secretário-geral apresentou seu informe anual sobre a resposta da ONU à exploração e os abusos sexuais em 2014, este não continha nenhuma menção sobre as denúncias de abuso sexual infantil na República Centro-africana.
 
Em vez de se preocupar pelos casos de abuso infantil, a chefa de gabinete de Ban Ki-moon queria silenciar o escândalo, e para isso preparou uma estratégia para obrigar Kompass a renunciar, junto com outros funcionários de alta patente da ONU.

A chefa de gabinete era Susana Malcorra, que organizou uma reunião na cidade de Turim entre o Alto Comissariado para os Refugiados, Zeid Ra’ad Al Hussein, a Alta Comissariada adjunta, Flavia Pansieri, o subsecretário-geral (USG), Carman Lapointe, e o diretor de Ética da ONU, Joan Dubinsky, para discutir o caso Kompass: se a negligência para combater os abusos sexuais por parte dos Capacetes Azuis se tornasse pública, a ONU enfrentaria perguntas para as quais não teria respostas razoáveis.

Após aquela reunião de Turim, o grupo integrado por Malcorra continuou tramando uma forma de silenciar Kompass. Duas semanas depois, no dia 9 de abril de 2015, Zeid solicitou formalmente uma investigação sobre Kompass, por seus “vazamentos” sobre a denúncia de abuso sexual na República Centro-africana.

As vítimas não foram mencionadas durante toda a investigação, nem nas declarações, e tampouco existem expressões de inquietude ou curiosidade sobre o bem-estar das mesmas. Ninguém falou nada sobre o apoio entregue às crianças vítimas. Essas omissões não foram observadas nem explicadas. O único foco de atenção foi a suposta notícia vazada por Anders Kompass.

Durante a semana de 13 de abril de 2015, um mês depois de se negar a renunciar, Kompass foi suspenso, mas sem perder seu salário, e escoltado para fora do seu escritório. Susana Malcorra, que ocupava um dos cargos mais poderosos no sistema da ONU, como chefa de gabinete do secretário-geral, declarou à imprensa que Kompass estava sendo investigado porque era culpado, devido à sua conduta incorreta. Sua declaração foi um caso flagrante de prejulgamento.

Kompass foi perseguido e hostilizado por altos funcionários da ONU até que um tribunal de apelação ordenou que a Organização das Nações Unidas tinha de suspender imediatamente a suspensão do funcionário humanitário sueco. O juiz Thomas Laker disse que a suspensão decretada pela ONU contra Kompass, que trabalhava como diretor de Operações em Terreno do EACDH, foi “prima facie ilegal” (ilegal à primeira vista).

Diante da dimensão que o escândalo tomou, no dia 3 de junho de 2015, o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon anunciou a formação de um painel independente, composto por três juízes, para realizar uma revisão externa para examinar os acontecimentos após o abuso sexual dos meninos na República Centro-africana.

O que ocorreu na República Centro-africana foi uma atrocidade, mas o fato de a ONU ficar em silêncio durante quase um ano depois do seu próprio descobrimento foi uma atrocidade muito maior, que significava o encobrimento do caso e a impunidade para os criminosos.

Quando se lê o lapidário veredito dos juízes, publicado na semana passada, chama a atenção o triste papel que Susana Malcorra teve nas tentativas de silenciar o escândalo da ONU, e é possível compreender perfeitamente que o oferecimento de um cargo por Mauricio Macri chegou a ela na hora exata. Caso contrário, é provável que, a esta altura, ela tivesse que apresentar sua renúncia do organismo, mas não precisamente para encabeçar a diplomacia argentina.


Tradução: Victor Farinelli​