sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Não reclame diante da crise, divirta-se






Folha.com, 30/12/16




Não reclame diante da crise, divirta-se



Por Vladimir Safatle*



Na década de 1990, um grupo de cineastas dinamarqueses intitulado Dogma foi responsável por alguns dos melhores filmes da época. Eles se propunham a fazer filmes de baixo orçamento, com câmera na mão, parcos recursos de edição e grande sensibilidade para a crítica social.

Um dos mais impressionantes dessa leva se chamava ‘Festen’ (‘Festa de Família’, em sua versão brasileira), de Thomas Vinterberg. Tratava-se da história de uma festa em homenagem ao 60º aniversário do patriarca de uma família.

Organizada em um castelo, a festa conta com grande número de convivas e atividades. Mas, logo no primeiro discurso, um dos filhos acusa o pai de ter abusado sexualmente dele e de sua irmã, que se suicidara recentemente. Durante todo o filme, as revelações se seguirão. No entanto, há algo de absolutamente extraordinário: apesar das acusações e do mal-estar, a festa nunca para.

Dessa forma, Vinterberg forneceu uma das melhores figurações do que é uma sociedade autoritária. Pois uma sociedade autoritária não é simplesmente aquela submetida à brutalidade da autoridade patriarcal e de sua exceção soberana que a coloca, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Há ainda um elemento talvez até mesmo mais aterrador. Uma sociedade autoritária é aquela na qual a festa nunca para. 

De fato, não importa a violência que aconteça, as injustiças que se acumulam, as demandas que brutalmente serão silenciadas, a festa nunca pode parar, as brincadeiras deverão continuar, as atividades deverão ser celebradas, mesmo que elas já tenham perdido o sentido.

De certa forma, essa era uma das ideias políticas mais importantes do grupo de filósofos conhecido como Escola de Frankfurt. Ela consistia em lembrar que nossas sociedades pretensamente liberais mostravam uma forma muito peculiar de autoritarismo, algo diferente do clássico modelo "lei e ordem", no qual a repressão e o silêncio eram a lei.

Na verdade, nossas sociedades haviam constituído um modelo que misturava deliberadamente violência policial e frivolidade midiática, cenas de agressão estatal contra grupos vulneráveis e notícias sobre como "Foto de J-Lo e Drake juntos aumenta rumor de romance", informações sobre como o governo de São Paulo diminuiu o número de horas/aula de história juntas à descoberta impressionante de que "Jennifer Lawrence não quer mais tirar fotos com fãs".

Nas dinâmicas atuais de controle, política e economia libidinal andam juntas em uma mistura animada por violência estatal e indústria cultural.

De fato, independentemente do que está a acontecer, o recado principal é: a festa não pode parar.
A tristeza e indignação devem ser compensadas com a certeza de que "a vida continua e deve continuar", de que, apesar das dificuldades, não devemos deixar de celebrar.

Por isso, melhor seria lembrar como o riso nem sempre está do lado da crítica. Há momentos em que o riso está do lado do poder, em que a festa está do lado da ordem. 

As pessoas são controladas por meio de suas formas de diversão, que moldam seus modos de sensação e seus circuitos de afetos. 

Quem organiza a maneira com que você se diverte controla os fundamentos do poder. Assim, o autoritarismo pode se impor não através da censura e da proibição, técnicas bastante primárias. Ele acaba por se impor através de algo muito mais sofisticado: a irrelevância da verdade, a proliferação da frivolidade, a anestesia de quem não consegue mais sentir urgência alguma. 

Nesse sentido, a verdadeira imposição disciplinar não é o antigo "Não reclame diante da crise, trabalhe". Não, você pode apelar a outra técnica, muito mais afeita aos engenheiros de relações públicas e às agências de publicidade, a saber: "Não reclame diante da crise, divirta-se". 

De preferência, faça como os EUA, tenha um presidente que acabou de sair de um programa de TV e de patrocinar concursos de Miss Universo enquanto decretava falência quatro vezes para socializar suas perdas, ou, se não der, tenha um prefeito animador de festas do jet set. No mais, feliz ano novo.


*Professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Duas escolas nota 10






CartaCapital, 29/12/16



A receita simples da cidade que melhor educa no País



Por Luisa Frey



A cada nome anunciado no pátio da escola, novas palmas, gritos e assobios. O que à primeira vista poderia parecer a comemoração pelo resultado de uma competição esportiva era na verdade a premiação da 19ª Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica. Quinze medalhas foram entregues a alunos da Escola Municipal Maria Luiza Fornasier Franzin, em Águas de São Pedro, no estado de São Paulo, a cidade com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de educação do Brasil.

"Em três anos, conseguimos mais de 30 medalhas", conta a professora de Geografia Tatiana Heidorn. Com uma colega, ela preparou todos os alunos da escola, do quinto ao nono ano, para a olimpíada, com aulas interativas e multidisciplinares. "Acredito que esse tipo de projeto nos diferencie de outras escolas."

Águas de São Pedro pontua 0,825 no quesito educação do IDH. Medido pela ONU, o índice vai de 0 a 1 e leva em conta escolaridade da população adulta e o fluxo escolar da população jovem, ou seja a taxa de evasão. Em termos gerais, levando em conta também renda e longevidade, a cidade fica atrás apenas de São Caetano do Sul, também em São Paulo.

A cidade é pequena, tem apenas 3,2 mil habitantes, e, com seus 3,6 quilômetros quadrados, é o segundo menor município do Brasil em área. Todo mundo se conhece. Quando um aluno falta, alguém da escola vai à casa dele para saber por que – e isso faz com que a taxa de evasão seja praticamente zero.

Famosa por suas águas medicinais, Águas de São Pedro vive do turismo. A tranquilidade e a qualidade da educação vêm atraindo novos moradores. Somente do ano passado para este, 81 novos alunos se matricularam na rede municipal. Ela engloba uma creche e duas unidades de ensino fundamental, que são as únicas opções na cidade. No total, são 605 alunos.

No prédio que abriga 203 alunos do quinto ao nono ano do ensino fundamental, inaugurado em 2000 e ainda em perfeito estado, também funciona a Secretaria Municipal de Educação. Nos últimos anos, o município destinou cerca de 27% do orçamento à área – mais do que o mínimo de 25% previstos na Constituição. A escola de Ensino Médio da cidade é administrada pelo governo estadual.


Paradoxo social

Márcia Marques Cruz, mãe de uma aluna do sexto ano, se mudou de São Paulo para Águas de São Pedro em busca de qualidade de vida. Ela chegou à cidade em 2009, antes de o IDH municipal, referente a 2010, ser divulgado.

Depois de bancar uma escola particular na capital, Cruz decidiu colocar a filha mais nova na escola pública. E não se arrepende. "Nem todas as escolas particulares têm tudo o que tem aqui: robótica, culinária, judô, natação, tênis, psicólogo, fonoaudiólogo. Se uma escola em São Paulo proporciona isso, é extracurricular, e é preciso pagar", diz a administradora de empresas.

Como a rede pública é a única opção em Águas de São Pedro, crianças de todas as faixas de renda estudam juntas. "Aqui tem do filho do jardineiro ao filho do empresário. Isso não se vê em outras escolas", diz Cruz.

"Normalmente filho de empresário vai para escola particular, aqui em Águas é tudo misturado. As crianças crescem todas juntas, não têm preconceito", completa Lucélia Francisco, mãe de aluno e funcionária da cozinha da escola.

João Pontes, coordenador pedagógico da unidade, diz que há ali alunos de todas as classes sociais, da A à E. "Trabalhar com composição heterogênea é a grande riqueza e o grande desafio ao mesmo tempo", afirma ele, nascido em Águas de São Pedro e ex-aluno da escola.

Além do IDH, a cidade também se destacou nos últimos anos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que leva em consideração a taxa de aprovação escolar e o desempenho na Prova Brasil. A nota da quarta série ou quinto ano subiu de 4,8 em 2005 para 7,0 em 2005. No último ano do ensino fundamental, passou de 4,3 em 2005 para 5,6 em 2015. A nota 6 corresponde ao sistema educacional de países desenvolvidos.


Comunidade envolvida

O envolvimento dos pais é fundamental, e conseguir isso é mais difícil entre as famílias de baixa renda, diz Pontes. Regularmente há atividades para as famílias aos sábados, e hoje já há um grupo de cerca de 50 pais que participam ativamente da vida escolar.

Cruz faz parte dele. Como voluntária, ela deu aula de culinária durante dois anos – atividade hoje sob responsabilidade de estudantes de gastronomia do Senac. Ela é uma espécie de fiscal da escola, controlando periodicamente a qualidade da merenda e dos materiais.

"Quanto mais pais participam, melhor. Acho que a dificuldade de escolas públicas serem de primeira linha é a falta de interesse dos pais", diz.

Pontes concorda: "A escola pública em condições normais está muito enfraquecida, é preciso trazer olhares de fora: pais, parcerias com empresas, universidades, terceiro setor – assim se consegue oferecer na escola pública coisas que não se conseguiria só com a verba disponível."


Tecnologia e controle de evasão

Além do Senac, a Fundação Telefônica é uma importante parceira, tendo doado 400 tablets e notebooks como parte do projeto Escolas Inovadoras. A tecnologia também está presente nas aulas de robótica, que fazem parte da grade curricular para os alunos do sétimo ano e são elegíveis para os do oitavo e nono ano.

Divididos em grupos de quatro, os alunos têm a tarefa de montar um protótipo diferente a cada aula, com peças de Lego especiais. Desta vez, o desafio era fazer uma catapulta funcionar. Concentrados, eles programam o robô no computador, e comemoram quando uma bolinha é arremessada com sucesso.

A professora de robótica é Heidorn, a mesma que prepara os alunos para a Olimpíada de Astronomia nas aulas de Geografia. Quando questionada sobre o que nessa escola tão particular – numa cidade tão pequena – pode servir de exemplo para outras, ela responde:

"Você começa a ver mudanças a partir do momento em que a equipe escolar é unida, em que se consegue trazer os pais para a escola, e todo mundo junto pensa na melhor forma de ensinar."



http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-escola-de-onde-os-alunos-nao-querem-sair




CartaCapital, 29/12/16



A escola de onde os alunos não querem sair



Por Roberta Jansen




Do alto do pátio da Escola Municipal André Urani dá para ver, olhando para baixo, o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar e a Lagoa, ícones da cidade rica. Para cima, surge a comunidade da Rocinha – a maior do país, com quase 70 mil habitantes, símbolo da desigualdade.

"Tem até um muro ali, tá vendo?", aponta o aluno João Paulo do Nascimento, de 14 anos. "Ele simbolicamente divide a cidade em duas."

"E nós estamos bem no meio, entre elas", acrescenta o também estudante João Victor Luiz, de 15 anos.

A metáfora da cidade partida não poderia ser mais apropriada, sobretudo partindo das observações e conclusões dos dois meninos.

A escola, onde estudam 240 adolescentes da Rocinha e comunidades vizinhas, é um Ginásio Experimental de Tecnologias Educacionais (Gente) – uma parceria da Prefeitura com a iniciativa privada, cujo objetivo é testar metodologias de ensino inovadoras. 

Aqui, não existe quadro negro, nem carteiras individuais. Desaparecem as turmas tradicionais, surgem os times, que reúnem, em um grande salão, alunos do sétimo, oitavo e nono anos. A internet não é proibida, pelo contrário, ela é parte central do aprendizado.

Munidos de computadores e livros, os estudantes se sentam em mesas hexagonais, uns de frente para os outros, e estudam juntos. Na verdade, eles seguem planos de estudo personalizados, disponíveis em seus laptops, mas contam com a ajuda dos colegas e de suas próprias pesquisas online. Tudo isso sob a monitoria de professores de diferentes disciplinas.

"Um médico do século 19 que chegasse hoje a um hospital não conseguiria fazer absolutamente nada, porque tudo mudou", compara o diretor-presidente da Fundação Telefônica-Vivo, uma das empresas parceiras da escola. "Mas um professor não, é basicamente a mesma coisa. Ou seja, temos escolas do século 19 para alunos do século 21. As escolas inovadoras são muito poucas."


Laboratórios como estímulo

Nos chamados laboratórios, mais parecidos com as salas de aula tradicionais, os jovens recebem um reforço de conteúdo nas disciplinas em que apresentam mais dificuldades. São sete horas dentro da escola – duas a mais do que as escolas brasileiras oferecem em média – e ninguém parece ter pressa de ir para casa.

"Só mais meia hora", pedem os alunos da professora de Português Luana Rezende, que transformou o ensino da língua em um divertido jogo. "Por favor!" A turma só se convenceu a descer para almoçar depois que Luana prometeu retomar o jogo exatamente do mesmo ponto, na semana seguinte. "Eu estou muito cansada, gente", justifica ela, orgulhosa, o sorriso de orelha a orelha.

No total, são 16 professores trabalhando em tempo integral na escola. Nos projetos especiais, os alunos trabalham com várias disciplinas ao mesmo tempo. Foi assim ao longo da última semana de outubro, por exemplo, quando eles estudaram o Halloween, tanto nas aulas de inglês quanto de história, e, por fim, fizeram uma festa.

Foi assim também que eles estudaram o nazismo, construindo uma maquete de Auschwitz, no laboratório de ciência, e escrevendo cartas, nas aulas de história, como se fossem prisioneiros do campo de concentração em 1944. "Temos cartas de judeus, claro, mas também de comunistas, de ciganos, de todos que estiveram presos no campo", explica João Paulo.


Silêncio e concentração

A escola experimental atende alunos do sétimo ao nono anos apenas. Eles vêm de escolas tradicionais na própria comunidade e, depois, seguem estudando em lugares convencionais.

"No começo, é difícil", conta a diretora da André Urani, Marcela Oliveira. "Eles chegam aqui esperando receber ordens, querem que a gente resolva os problemas. Por outro lado, quando percebem que têm autonomia, deixam de fazer os trabalhos, começam a burlar as regras. Depois, com a orientação dos mentores, eles vão se adaptando."

A adaptação é surpreendente. Em toda a escola, reina um silêncio inesperado para um local repleto de adolescentes. Mesmo na hora do recreio, o burburinho é mínimo.

"Eles são adolescentes, continuam sendo, mas têm autonomia, não precisam mostrar toda a sua indignação", explica Marcela. "Daí o silêncio que você está vendo."

Os alunos se entristecem ao falar de sua saída eminente da escola.

"Estamos tentando convencê-los a fazer uma sala de aula extra para que possamos continuar aqui", diz João Victor.

"Não queremos ir embora de jeito nenhum", garante João Paulo.

Resignados, no entanto, eles fazem planos de voltar em dez anos.

"Eu vou ser professor de História", conta João Paulo.

"E eu de matemática", arremata João Victor.

Projeto de potência ou "vendedor" de honestidade?







Jornal GGN, 29/12/16




Brasil, projeto de potência?



Por André Araújo




Um dos maiores países do mundo que se pretende no grupo da Rússia, da China e da Índia, o Brasil parece um bêbado perdido no meio da avenida.

Não tem postura e atitude de quem quer exercer uma projeção de poder internacional à altura de seu tamanho geográfico, demográfico e econômico, o fato de ser o maior país da América Latina, o maior país de cultura ibérica, o maior país latino do mundo, portanto maior herdeiro da tradição cultural e política de Roma. É também o maior país de raízes africanas do mundo, o país que mais recebeu imigrantes italianos, imigrantes japoneses, imigrantes sírio-libaneses. O Brasil é um País único entre os grandes ocidentais.

O Brasil adquiriu status de potência emergente na Segunda Guerra, quando foi um dos oito Aliados combatentes no teatro europeu, sendo-lhe oferecida a condição de potência ocupante da Áustria, que recusou. Perdeu aí grande posição de poder internacional que foi readquirida em boa parte no regime militar de 1964 com sua projeção de interesses no Iraque e na África.

O Brasil teve nesse período grande penetração no mundo árabe, maior cliente do petróleo iraquiano, grande fornecedor de material bélico para a região. Também ganhou enorme projeção em Angola e Moçambique pelo rápido reconhecimento de seus governos independentes, o Governo militar passou a patrocinar a penetração de suas empreiteiras nos países do terceiro mundo, chegando a Odebrecht a ter 10% do PIB de Angola.

Anteriormente a construtora Mendes Junior tinha forte presença no Iraque e Mauritânia. Nessa época estive várias vezes no Iraque e vi o enorme prestígio do Brasil na região, Murilo Mendes sentado ao lado de Saddam Hussein nos banquetes e o Brasil representado por um general de quatro estrelas da ativa, o General Samuel Alves Correa. O Banco do Brasil em parceria com o Raffidain Bank, banco oficial do Iraque, criaram o Banco Brasileiro Iraquiano para financiar o comércio bilateral, que chegava a US$ 4 bilhões por ano.

Com os Governos Collor e FHC toda essa projeção se perdeu, deliberadamente, ao Brasil aceitar de forma vexaminosa assinar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, TNP cuja recusa pelo Brasil era até então histórica. Nos governos que se seguiram à Constituição de 88, especialmente Collor e FHC criou-se a ideia que ser moderno era ser americanizado, deveríamos nos "globalizar", chique era ser "neoliberal". Perdeu-se nesse contexto a ideia de um Estado nacional brasileiro, era melhor o Brasil ser moderno e antenado com os EUA, o Plano Real foi a consagração dessa ideia de "americanização" que tinha a cara dos "economistas do Real" com mentalidade dolarizada, cursos de economia nos EUA. Foi chocado aí o ovo da serpente que hoje nos leva a ser monitorados pelo Departamento de Justiça, uma situação humilhante a que jamais o Brasil se submeteu anteriormente em nenhuma época de sua existência como nação.

No quadro dos BRICS o Brasil é o único que não pode ter programa nuclear autônomo e se submete voluntariamente à fiscalização da AIEA, braço dos EUA. Como parte dessa postura acabou a Política Externa Independente e o Brasil rebaixou-se a um satélite dos EUA, cujo reflexo hoje está na jurisdição do Departamento de Justiça sobre empresas brasileiras, sob a desculpa de controlar a corrupção.

A política externa do Governo FHC balizada pelo chanceler Celso Lafer reduziu o papel do Brasil no Oriente Médio. Nos Governos militares o Brasil optou por uma aliança tácita com os países árabes e em função dessa inserção tornou-se um importante fornecedor de material bélico de tecnologia intermediária, como os carros armados e os lançadores de mísseis Astros.

Essa atuação do Brasil desagradou profundamente os EUA, especialmente pelos fornecimentos da Engesa e da Avibras, que chegaram a exportar mais de um bilhão de dólares por ano para a região. O Governo FHC de imediato liquidou com essa plataforma de produção de material bélico, a Engesa foi à falência e a Avibras quase fechou.

Ao mesmo tempo a Petrobras foi colocada sob a direção de financistas como Henri Reichstul e Francisco Gros que liquidaram com as encomendas de sondas e navios no Brasil, passando todas as encomendas para os estaleiros Aker, na Noruega, controlado pelo banco Margan Stanley, representado no Brasil por Francisco Gros. Com isso liquidou-se a indústria naval brasileira.

Outro mega erro do Governo FHC foi a venda de um terço das ações da Petrobras nos EUA, listando a ação na Bolsa de Nova York, o que significou uma autorização de fiscalização da Petrobras pelo Governo americano, algo incompatível com a função estratégica da estatal.

Por essa razão a PEMEX mexicana, a SONATRACH algeriana, a SONANGOL angolana, a SAUDI ARAMCO saudita, a ROSSNEFT russa, a STATOIL norueguesa não têm ações em bolsas americanas. Ninguém quer o Governo americano metendo o bedelho em suas empresas.

No Governo FHC o alinhamento com Washington foi total, perdendo o Brasil a projeção de poder que tivera em grande estilo nos Governos militares. Nos Governos do PT houve nova tentativa de inserção internacional do Brasil como potência emergente, agora completamente destroçada pela ação dos acordos de cooperação judiciária, que jamais foram pensados para alavancar intromissão do Governo dos EUA na política interna e externa brasileira.

Os acordos de cooperação são um Cavalo de Tróia cujo custo político não compensa em nada para o Brasil, acordos onde um lado é muito mais forte que outro nascem desbalanceados e favorecem um só lado, jamais deveriam ter sido assinados, não há nenhuma vantagem e todas as desvantagens para o Brasil nesses acordos.

Pior ainda, esses acordos permitem alianças espúrias entre forças disruptivas dentro de cada País, forças que trabalham contra os Estados e a favor de incremento de poder de corporações não eleitas. Os acordos são um tumor maligno que em algum momento vão produzir rupturas do tecido político e econômico de cada Estado em nome de causas.

Com a subordinação do Brasil ao Departamento de Justiça, a presença do País no bloco dos BRICS está sendo reavaliada. Para pertencer a esse bloco é incompatível uma situação de absoluta subordinação do Brasil e de suas empresas estratégicas ao Governo dos EUA.

Nenhum dos outros parceiros BRICS se prestaria a um papel tão diminuto de ser patrulhado por procuradores americanos e ter suas grandes empresas estratégicas MONITORADAS por inspetores americanos, caso da Embraer, Odebrecht e Petrobras.

Trata-se de um grande teatro de moralismo porque os EUA toleram corrupção da pesada quando é de seu interesse, empresas de material bélico de Israel comercializam com o mundo inteiro e não constam que essas empresas sejam escolas de pureza. Jamais se soube do Departamento de Justiça processar alguma empresa de Israel, também não consta que empresas chinesas, que não se lavam em água benta, sejam perseguidas pelo Departamento de Justiça, menos ainda as mafiosas empresas russas.

Na realidade, o vasto campo da lei internacional comporta tudo dependendo de quem opera as alavancas. O Brasil aceitou jurisdição americana não se sabe bem porque, sem qualquer reação ou autodefesa, sobre importantes empresas brasileiras. Na tentativa até hoje inexplicada de processar a Petrobras caberia ao Governo do Brasil uma fortíssima demarche em Washington através dos canais diplomáticos, com a presença em Washington do Ministro da Justiça do Brasil, do Ministro das Relações Exteriores, mostrando a importância da Petrobras para o Estado brasileiro, do descabimento de um processo desse tipo contra uma empresa estatal central da economia brasileira.

E mais ainda, a Petrobras é provavelmente a maior importadora de combustíveis dos EUA, quase toda gasolina brasileira vem dos EUA, uma conta de quase US$ 20 bilhões por ano, além da compra de enorme quantidade de brocas da Halliburton, de serviços geodésicos da Schlumberger. Os americanos ENTENDEM perfeitamente e respeitam essa linguagem do dinheiro, a Petrobras é de interesse para os EUA como cliente, mas nunca ninguém do Governo brasileiro jogou isso na mesa, nunca se jogou na mesa a importância estratégica do Brasil para os EUA. O Brasil se comporta como uma Guatemala, humilde, pequenininho, submisso, e quer ser potência? Quer cadeira no Conselho de Segurança? Com essa postura de pobrezinho, chicoteado pelo Departamento de Justiça?

Acordos de cooperação jamais poderiam se aplicar a delitos de corrupção porque esses crimes tem direta ligação com a política interna e sua manipulação e combate interferem com o jogo político, não podem estar submetidos à arbitragem estrangeira.

Uma característica geral dos países-potência é a DEFESA DE SUAS EMPRESAS no exterior a ponto de empresas se tornarem símbolos internacionais de seus países, como a Exxon ser a cara dos EUA, a Siemens ser a cara da Alemanha, a FIAT ser o rosto da Itália, a Alstom ser a própria França, a Unilever ser a própria Inglaterra, a Nestlé ser a bandeira da Suíça.

Países importantes tem nas suas empresas como força de penetração e de presença no exterior, são braços da projeção de poder, são porta bandeiras de seus países. O que o Brasil fez com a Odebrecht? Liquidou com a empresa no exterior, uma empresa que já tinha forte presença em países importantes da África e América Latina.

Nenhum País com projeto de potência faz semelhante desatino. Ao contrário, o Brasil deveria apoiar a Odebrecht como ponta de lança da presença brasileira no exterior, isso é o que fazem todos os grandes países.

O impressionante é a mídia brasileira achar ótimo, os Madureiras, Mainardis e Carvalhosas da vida elogiarem a destruição dessas empresas. O Brasil está sob o chicote do Departamento de Justiça, acham maravilhoso, a direita americanizada também acha lindo e até enchem a boca, "agora vai, os americanos estão tomando conta dos nossos casos de corrupção, que ótimo", acham isso, pensam assim, se congratulam com isso. No dia 26 de dezembro, no Programa Três em Um, da Jovem Pan, Madureira repete: "Agora a coisa é com o FBI", achando ótimo isso, o Brasil policiado pelo FBI, é a gloria, estamos chegando ao nível de Porto Rico.

Os grandes países desenvolvidos ganharam sua riqueza escravizando povos, subornando sobas locais, aliciando elites, como os ingleses fizeram com os rajás e marajás indianos, espionando, intrigando, pirateando. Inglaterra, EUA, França, Alemanha, já fizeram de tudo e agora, ricos, viraram a madre superiora do convento, somos honestos e exigimos honestidade dos novos penetras, como o Brasil, esquecendo que os agora santarrões já foram bem piores que os corruptos da Petrobras.

Suas petroleiras já fizeram de tudo a seu tempo e agora policiam a Petrobras para que esta seja honesta como foram as Standards Oil, a Royal Dutch Shell, a Texaco no seu longínquo passado em que negociavam com ditadores como Jose Vicente Gomez, "El Bagre", quando descobriram petróleo na Venezuela. Hoje tapam o nariz para a Petrobras mas já estimularam a Guerra do Chaco, entre Bolívia e Paraguai, por causa de petróleo. Guerras por petróleo ocorreram por todo o mundo, com a sete irmãs do petróleo sendo defendidas por seus Governos, como a BP que derrubou Mossadegh no Irã, em 1953, por causa das concessões da então Anglo Persian, depois BP.

Um país importante, entre os dez maiores do mundo por qualquer critério, como é o Brasil, não pode estar subordinado a departamentos de justiça de outros países, nem países menores se sujeitam a tal vexame. Como é possível o Governo do Brasil aceitar ser processado como delinquente comum por organismos de outros governos?

Um país potência tem que ter postura e atitude de um País com projeção de poder. Falta ao Brasil essa consciência, algo que foi perdido na Constituição de 88 que, na ânsia de defender direitos individuais, se esqueceu de defender o Estado brasileiro.

Todo valor da corrupção somado é uma infinita fração do valor estratégico que a economia brasileira perde por sua saída de grandes mercados na África e da América Latina, onde seremos o único pais sério vendendo honestidade enquanto empreiteiras asiáticas vendem obras, serviços e engenharia. Perdemos os mercados mas vamos ganhar prêmios da Transparência Internacional em Washington, com direito a homenagens a brasileiros.

Jacques Vergès e a autodestruição da imparcialidade do juiz

Jacques Vergès e Djamila Bouhired​


 https://www.youtube.com/watch?v=UOzLdna96Vw





Jornal GGN, 29/12/16




Jacques Vergès e a autodestruição da imparcialidade do juiz



Por Fábio de Oliveira Ribeiro





Hoje terminei de ler o livro ‘O caso Lula’, coordenadores Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valin, editora Astrea, São Paulo, 2017. O livro não me decepcionou muito. Todavia, minhas expectativas foram confirmadas. Os autores da obra não conseguiram captar toda a profundidade do fenômeno cultural de 2016 e insistiram numa abordagem tecnicista da tragédia que está sendo construída em torno do ex-presidente brasileiro:

"Comprei um exemplar de ‘O caso Lula’ e já li quase todos os textos. Os que não li procurei folhear, me detendo aqui e ali antes de escrever este comentário. Em geral os autores que colaboraram na produção do livro parecem acreditar no restabelecimento da normalidade judiciária. Todos, sem exceção, advogam o reencontro do processo judicial da Lava Jato com os princípios constitucionais do Direito Penal. Os efeitos deletérios do processo midiático da Lata Jato são criticados. Mas o fenômeno cultural de 2016 que abrange não somente a Lava Jato (super explorada) como também a Zelotes (operação esquecida pela mídia para que os barões da mídia consigam impor suas demandas legislativas) não foi objeto de reflexão."


Ao terminar a leitura do livro conclui que minhas primeiras observações sobre o mesmo não precisam qualquer reparo. Não obstante, retomo o assunto porque um texto do livro que merece maior atenção e divulgação. Refiro-me ao capítulo ‘A imparcialidade do juiz’, de autoria de Sílvio Ferreira da Rocha.

Além de detalhar os principais aspectos da questão à luz da Constituição Federal, da Lei Orgânica da Magistratura e da legislação brasileira em vigor, Sílvio Ferreira da Rocha fez uma longa, didática e significativa exposição dos princípios de Bangalore acerca da conduta judicial. Reproduzirei aqui alguns fragmentos para discutir o assunto à luz da tática da ruptura.

“Acerca da imparcialidade, estabelecem os princípios de Bangalore:

A imparcialidade é essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo de juiz. Aplica-se não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão.

Os comentários são enriquecedores.

Acerca da percepção da imparcialidade afirma, por exemplo:

a imparcialidade é a qualidade fundamental requerida de um juiz e o principal atributo do Judiciário. A imparcialidade deve existir tanto como uma questão de fato como uma questão de razoável percepção (g.n.).

Se a parcialidade é razoavelmente percebida, essa percepção provavelmente deixará um senso de pesar e de injustiça realizados destruindo, consequentemente, a confiança no sistema judicial.

A percepção de imparcialidade é medida pelos padrões de um observador razoável. A percepção de que o juiz não é imparcial pode surgir de diversos modos, por exemplo, da percepção de um conflito de interesses, do comportamento do juiz na corte, ou das associações e atividades do juiz fora dela.” (O caso Lula”, editora Astrea, São Paulo, 2017, p. 173)

Os princípios de Bangalore datam de abril de 2003. Mas eles estavam implícitos na tática da ruptura utilizada por Jacques Vergès durante o julgamento de Djamila Bouhired. Ela foi acusada de terrorismo na Argélia. Ao invés de tentar provar a inocência de sua cliente (o que seria impossível diante das circunstâncias do caso), Vergès optou por confrontar o Tribunal encarregado de julgá-la com uma verdade dolorosa: os franceses também haviam praticado terrorismo durante a ocupação nazista da França e a ocupação militar da Argélia por tropas franceses justificava perfeitamente o comportamento dos nacionalistas argelinos. A França não havia condenado seus próprios terroristas e não deveria condenar Djamila Bouhired porque ela feito a mesma coisa em circunstâncias políticas semelhantes. 

A coragem de Vergés diante da parcialidade evidente dos juízes encarregados de julgar sua cliente transformou o caso de Djamila Bouhired num símbolo internacional de resistência ao colonialismo francês na Argélia. Apesar de todo o esforço de seu advogado, Djamila foi condenada à morte por decapitação na guilhotina. Mas uma condenação pública e internacional ainda maior acabou sufocando a Justiça Francesa e comprometendo a imagem do Estado francês. Em razão disto, a execução de Djamila Bouhired foi adiada indefinidamente e ela eventualmente acabou sendo perdoada ao fim da Guerra da Argélia.

Ao confrontar os juízes de sua cliente, Vergès alegou no fundo que eles eram tão parciais para julgar os atos de Djamila quanto os oficiais nazistas encarregados de julgar e condenar os atos de terrorismo e sabotagem semelhantes praticados por nacionalistas na França ocupada. Portanto, a tática do defensor da militante argelina foi agir dentro do tribunal para desfazer a percepção de imparcialidade dos juízes de sua cliente. Nesse sentido, ele pode ser considerado um dos precursores dos princípios de Bangalore. Isto explica porque tenho insistido no uso da tática da ruptura no caso Lula.

Um pouco mais adiante, ainda discorrendo sobre os princípios de Bangalore, Sílvio Ferreira da Rocha afirma que:

“Se houver crítica da mídia ou crítica de membros interessados do público sobre uma decisão, segundo os comentários, o juiz deve evitar responder tais críticas por escrito ou fazer comentários casuais quando no exercício das funções. É inapropriado um juiz defender razões judiciais publicamente. Na hipótese de informação errada da mídia acerca de procedimentos da corte ou acerca de um julgamento, se o juiz considerar que o erro deve ser corrigido deve fazê-lo por servidor qualificado ou assessoria de imprensa, que poderá emitir uma nota de imprensa para indicar a posição factual ou tomar as providências para que uma correção seja feita.” (O caso Lula”, editora Astrea, São Paulo, 2017, p. 179)

As recomendações contidas nos princípios de Bangalore visam, sobretudo, impedir a autodestruição da percepção de imparcialidade pelo juiz ou pelo Tribunal em casos que se tornam objeto de atenção exagerada da mídia. Elas funcionam como um antídoto para a tática da ruptura utilizada por Jacques Vergés no caso de Djamila Bouhired. Os advogados de Lula parecem ter consciência disto, pois tem provocado reações públicas e processuais de Sérgio Moro.

Embriagado com a fama imensa e a visibilidade ostensiva que foram concedidas a ele pela imprensa, o juiz da Lava Jato já conseguiu se mostrar (e ser visto) como parcial para julgar Lula. Todavia, a Justiça brasileira não foi suficientemente cuidadosa com sua própria imagem. Sérgio Moro não foi afastado dos processos promovidos contra o ex-presidente. É evidente, portanto, que a Justiça brasileira prefere naufragar junto com Sergio Moro. O resultado deste naufrágio não será bom nem para os juízes, nem para o Brasil (cuja imagem internacional já está sendo destruída pelo golpe de 2016).

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A globalização morreu

http://www.rebelion.org/noticia.php?id=220936




Rebelion, 28/12/16



A globalização morreu


Por Álvaro García Linera



A falta de freios para um iminente mundo sem fronteiras, o falatório pela constante diminuição dos estados nacionais em nome da liberdade da empresa e a quase religiosa certeza de que a sociedade mundial acabaria por se unir como um único espaço econômico, financeiro e cultural integrado, acabam de vir abaixo diante do emudecido estupor das elites ‘globalófilas’ do planeta.

A renúncia da Grã-Bretanha em fazer parte da União Europeia  — o projeto mais importante de unificação dos últimos cem anos — e a vitória eleitoral de Trump — que levantou as bandeiras de uma volta ao protecionismo econômico, anunciou a renúncia a tratados de livre comércio e prometeu a construção de mesopotâmicas muralhas fronteiriças — aniquilaram a maior e mais bem sucedida ilusão liberal de nossos tempos. E que tudo isso venha dos dois países que há 35 anos, cobertos em suas couraças de guerra, anunciaram a chegada do livre comércio e a globalização como a inevitável redenção da humanidade, fala de um mundo que se inverteu ou, pior ainda, que esgotou as ilusões que o mantiveram acordado durante um século.

Acontece que a globalização como meta-relato, isto é, como horizonte político ideológico capaz de conduzir as esperanças coletivas para um único destino que permitisse realizar todas as expectativas possíveis de bem-estar, foi estatelada em mil pedaços. E hoje não existe em seu lugar nada mundial que articule essas expectativas comuns; o que se tem é um recolhimento atemorizado ao interior das fronteiras e o retorno a uma espécie de tribalismo político, alimentado pela ira xenofóbica, diante de um mundo que já não é o mundo de ninguém.


A medida geopolítica do capitalismo

Quem iniciou o estudo da dimensão geográfica do capitalismo foi Marx. Seu debate com o economista Friedrich List sobre o “capitalismo nacional” em 1847 e suas reflexões sobre o impacto do descobrimento das minas de ouro da Califórnia no comércio transpacífico com a Ásia, o posicionam como o primeiro e o mais solícito pesquisador dos processos de globalização do sistema capitalista. De fato, sua participação não consiste na compreensão do caráter globalizado do comércio que começa com a invasão europeia na América, mas na natureza planetariamente expansiva da própria produção capitalista.

As categorias de inclusão formal e inclusão real do processo de trabalho ao capital com as que Marx mostra o auto movimento infinito do modo de produção capitalista supõem a crescente inclusão da força de trabalho, do intelecto social e da terra à lógica da acumulação empresarial, ou seja, a subordinação das condições de existência de todo o planeta à valorização do capital. Decorre disso que, nos primeiros 350 anos de sua existência, a medida geopolítica do capitalismo tenha avançado das cidades-Estado à dimensão continental e tenha passado, nos últimos 150 anos, à medida geopolítica planetária.

A globalização econômica (material) é inerente ao capitalismo. Seu início pode datar de 500 anos atrás, a partir do qual será necessário preencher ainda mais de forma fragmentada e contraditória.

Se acompanhamos os esquemas de Giovanni Arrighi na sua proposta de ciclos sistêmicos de acumulação capitalista à frente de um Estado hegemônico: Gênova (séculos XV-XVI), Holanda (século XVIII), Inglaterra (século XIX) e Estados Unidos (século XX), cada um desses hegemônicos veio acompanhado de um novo adensamento da globalização (primeiro comercial, em seguida produtiva, tecnológica, cognitiva e, finalmente, do meio ambiente) e de uma expansão territorial das relações capitalistas. No entanto, o que sim constitui um acontecimento recente no interior desta globalização econômica é sua construção como projeto político-ideológico, esperança ou sentido comum, ou seja, como horizonte de época capaz de unificar as crenças políticas e expectativas morais de homens e mulheres pertencentes a todas as nações do mundo.


O “fim da história”

A globalização como relato ou ideologia de época tem mais de 35 anos. Foi iniciada pelos presidentes Ronald Reagan e Margaret Thatcher, liquidando o Estado de bem-estar, privatizando as empresas estatais, anulando a força sindical trabalhadora e substituindo o protecionismo do mercado interno pelo livre mercado, elementos que tinham caracterizado as relações econômicas desde a crise de 1929.

Certamente foi um retorno amplificado às regras do liberalismo econômico do século XIX, incluída a conexão no tempo real dos mercados, o crescimento do comércio em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) mundial e a importância dos mercados financeiros, que já estavam presentes nesse momento. No entanto, o que sim diferenciou esta fase do ciclo sistêmico da que prevaleceu no século XIX foi a ilusão coletiva da globalização, sua função ideológica legitimadora e sua exaltação como suposto destino natural e final da humanidade.
 
E aqueles que se filiaram emotivamente a essa crença de livre mercado como salvação final não foram simplesmente os governantes e partidos políticos conservadores, mas também os meios de comunicação, os centros universitários, comentaristas e líderes sociais. O fim da União Soviética e o processo do que Gramsci chamou transformismo ideológico de ex-socialistas transformados em furibundos neoliberais fechou o círculo da vitória definitiva do neoliberalismo globalizante.

Claro! Se diante dos olhos do mundo a URSS, que era considerada até então como referência alternativa ao capitalismo de livre empresa, abdica da contenda e se rende ante a fúria do livre mercado — e além disso os combatentes por um mundo diferente, publicamente e de joelhos, abjuram de suas anteriores convicções para proclamar a superioridade da globalização frente ao socialismo de Estado —, nos encontramos diante da constituição de uma narrativa perfeita do destino “natural” e irreversível do mundo: o triunfo planetário da livre empresa.

O enunciado do “fim da história” hegeliano, com o que Fukuyama caracterizou o “espírito” do mundo, tinha todos os ingredientes de uma ideologia de época, de uma profecia bíblica: sua formulação como projeto universal, seu enfrentamento contra outro projeto universal demonizado (o comunismo), a vitória heroica (final da Guerra Fria) e a reconversão dos infiéis.

A história havia chegado à sua meta: a globalização neoliberal. E, a partir desse momento, sem adversários antagônicos para enfrentar, a questão já não era lutar por um mundo novo, mas simplesmente ajustar, administrar e aperfeiçoar o mundo atual, pois não havia alternativa frente a ele. Por isso, nenhuma luta valia a pena estrategicamente, pois tudo que se havia tentado fazer para mudar o mundo terminaria finalmente rendido diante do destino imutável da humanidade que era a globalização. Surgiu então um conformismo passivo que se apoderou de todas as sociedades, não apenas das elites políticas e empresariais, mas também de amplos setores sociais que aderiram moralmente à narrativa dominante.


A história sem fim nem destino

Hoje, quando ainda retumbam os últimos petardos da longa festa “do fim da história”, acontece que quem saiu vencedor, a globalização neoliberal, faleceu deixando o mundo sem final, nem horizonte vitorioso, ou seja, sem nenhum horizonte. Trump não é o verdugo da ideologia triunfalista da livre empresa, mas o legista que tem o papel de dar a nota oficial de uma morte clandestina.

Os primeiros tropeços da ideologia da globalização são sentidos no começo do século XXI na América Latina, quando trabalhadores, plebeus urbanos e rebeldes indígenas não dão ouvidos ao mandato do fim da luta de classes e fazem coalizões para tomar o poder do Estado. Combinando maiorias parlamentares com ação de massas, os governos progressistas e revolucionários implementam uma variedade de opções pós neoliberais, mostrando que o livre mercado é uma perversão econômica suscetível de ser substituída por modos de gestão econômica muito mais eficientes para reduzir a pobreza, gerar igualdade e impulsionar crescimento econômico.

Com isso, o “fim da história” começa a se mostrar como uma singular estafa planetária e novamente a roda da história — com suas inesgotáveis contradições e opções abertas — coloca-se em marcha. Posteriormente, em 2008, nos Estados Unidos, o até então vilipendiado Estado, que tinha sido objeto de escárnio por ser considerado uma trava para a livre empresa, é puxado pela manga por Bush para estatizar parcialmente o sistema financeiro e tirar da falência os banqueiros privados. A eficiência empresarial, coluna vertebral do desmantelamento estatal neoliberal, fica assim reduzida a pó frente à sua incompetência para administrar a poupança dos cidadãos.

Logo vem a desaceleração da economia mundial, mas em particular do comércio de exportações. Durante os últimos 20 anos, este cresce duas vezes mais em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) anual mundial, porém a partir de 2012 apenas consegue igualar o crescimento deste último, e já em 2015 é inclusive menor, com o que a liberalização dos mercados e já não se constitui mais no motor da economia planetária nem na “prova” da irresistível utopia neoliberal.

Por último, os eleitores ingleses e norte-americanos inclinam a balança eleitoral a favor de uma retomada a estados protecionistas —se for possível com muros —, além de dar visibilidade a um mal-estar já planetário contra a devastação das economias dos trabalhadores e da classe média, gerado pelo livre mercado planetário.

Hoje, a globalização já não representa mais o paraíso desejado no qual se depositam as esperanças populares nem a realização do bem-estar familiar desejado. Os mesmos países e bases sociais que a levantaram décadas atrás se converteram em seus maiores detratores. Nos encontramos diante da morte de uma das maiores estafas ideológicas dos últimos séculos.

No entanto nenhuma frustração social fica impune. Existe um custo moral que, neste momento, não revela alternativas imediatas, mas que — é o caminho tortuoso das coisas — as fecha, ao menos temporariamente. Acontece que a morte da globalização como ilusão coletiva não se contrapõe à emergência de uma opção capaz de cativar e conduzir a vontade e a esperança mobilizadora dos povos golpeados. A globalização, como ideologia política, triunfou sobre a derrota da alternativa do socialismo de Estado, isto é, da estatização dos meios de produção, do partido único e da economia planejada de cima. A queda do muro de Berlim em 1989 encena esta capitulação. Então, no imaginário planetário ficou apenas uma rota, um destino mundial. E o que agora está acontecendo é que esse único destino triunfante também falece, morre. Ou seja, a humanidade fica sem destino, sem rumo, sem certeza. Porém não é o “fim da história” –   como preconizavam os neoliberais –, mas sim o fim do “fim da história”; é o nada da história.

O que hoje resta nos países capitalistas é uma inércia sem convicção que não seduz, um punhado decrépito de ilusões murchas e, na caneta dos escrivães fossilizados, a nostalgia de uma globalização falida que não ilumina mais os destinos. Então, com o socialismo de Estado derrotado e o neoliberalismo morto por suicídio, o mundo fica sem horizonte, sem futuro, sem esperança mobilizadora. É um tempo de incerteza absoluta no qual, como bem intuía Shakespeare, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Porém, também por isso é um tempo mais fértil, porque não há certezas herdadas nas quais se agarrar para ordenar o mundo. Essas certezas têm de ser construídas com as partículas caóticas desta nuvem cósmica que deixa para trás a morte das narrativas passadas.

Qual será o novo mobilizador das paixões sociais? Impossível sabê-lo. Todos os futuros são possíveis a partir do “nada” herdado. O comum, o comunitário, o comunista é uma dessas possibilidades que está aninhada na ação concreta dos seres humanos e na sua imprescindível relação metabólica com a natureza. Em qualquer caso, não existe sociedade humana capaz de se desprender da esperança. Não existe ser humano que possa prescindir de um horizonte e hoje estamos compelidos a construir um. Isso é o comum dos humanos, e esse comum é o que pode nos levar a desenhar um novo destino diferente a este emergente capitalismo errático que acaba de perder a fé em si mesmo.


Tradução: Mari-Jô Zilveti

A Justiça entre o civismo e cinismo





Brasil 247, 28/12/16



País tem direito de saber quem é Santo, quem é Careca



Por Paulo Moreira Leite



Embora já tenha chegado a sua 35a. fase, a operação Lava Jato não conseguiu livrar-se da acusação de trabalhar de modo seletivo, reproduzindo  um traço historicamente nefasto da Justiça brasileira, onde o Estado "é usado como propriedade do grupo social que o controla", nas palavras da professora Maria Sylvia de Carvalho Franco, no estudo ‘Homens Livres na Ordem Escravocrata’.





Neste universo, que descreve o Brasil anterior a abolição da escravatura, onde o grilhão, a chibata e o pelourinho eram instrumentos banais de manutenção da ordem para os habitantes da senzala, o "aparelho governamental nada mais é do que parte do sistema de poder desse grupo, um elemento para o qual se volta e utiliza sempre que as circunstâncias o indiquem como o meio mais adequado."

Dias antes de Guido Mantega ter sido forçado a deixar o centro cirúrgico do Alberto Einstein, onde sua mulher era operada de um câncer, para cumprir um mandato de prisão, descobriu-se um fato ao mesmo tempo chocante e instrutivo.

A Justiça Federal foi incapaz de descobrir o endereço residencial de Pimenta da Veiga, ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso,  para lhe entregar uma notificação relativa a AP 470, o Mensalão (Rubens Valente, Folha de S. Paulo, 15/9/2016). Não se trata de um caso com muitas dúvidas. Em 2005 a Polícia Federal encontrou quatro cheques do esquema de Marcos Valério, no valor de R$ 75.000 cada um, na conta do ex-ministro. Pimenta alegou que eram pagamentos por honorários que exerceu num serviço como advogado. Não mostrou documentos nem apresentou casos concretos em que atuou. O próprio Valério alegou, na CPI dos Correios, que havia ajudado Pimenta a pagar a conta do tratamento de saúde de um filho. Não convenceu. Mesmo assim, o caso já dura dez anos, o que configura outra ironia de longo curso.       


Quando resolveu procurar Henrique Pizzolato, o dirigente do PT condenado a 12 anos e sete meses no STF, o Ministério Público fez investigações no Paraguai, Argentina e Espanha, até que chegou ao interior da Itália para localizá-lo na casa de um sobrinho. Enfrentou uma disputa na Justiça daquele país para garantir que Pizzolato fosse trazido para cumprir pena no Brasil, embora tivesse passaporte italiano. A principal denúncia contra o antigo diretor do Banco do Brasil envolve um pagamento de R$ 326.000, quantia 10% superior aos R$ 300.000 de Pimenta. O detalhe é que Pizzolato sempre alegou que o dinheiro não era para si, mas para o PT no Rio de Janeiro. Verdade ou não, os R$ 326.000 nunca surgiram em sua conta nem foram confirmados pela quebra de seu sigilo bancário ou fiscal.  

Ao contrário do que ocorreu com o dinheiro entregue a Pizzolato, os recursos destinados a Pimenta foram pagos em quatro prestações e descobertos pelo delegado Luiz Fernando Zampronha, da Polícia Federal, e mais tarde arquivados no inquérito 2474 - aquele que o Supremo não examinou quando julgava a AP 470.    

Mesmo considerando antecedentes tão notáveis sobre o caráter seletivo das investigações que envolvem políticos brasileiros, a representação da Polícia Federal que pediu a prisão de Antonio Pallocci, Branislav Kontic e Juscelino Dourado causa um choque inegável. Isso porque a leitura das primeiras 30 páginas sobre o esquema de pagamentos clandestinos do chamado Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, um departamento destinado a sustentar esquemas políticos, nada informa sobre o ministro ou o Partido dos Trabalhadores mas é muito revelador sobre o conhecimento da PF sobre o esquema de corrupção do PSDB paulista.

Na página 13, por exemplo, descreve-se a partilha de uma propina de 0.9% sobre um investimento de US$ 20,6 bilhões. Na página 17, uma troca de e-mail entre executivos da Odebrecht deixa claro que estamos falando da linha 2 do Metrô, um investimento que seria particularmente rico em denúncias de superfaturamento e gastos suspeitos. Na página 18, surgem pseudônimos de quem irá receber o dinheiro. Em outra passagem, aparecem  iniciais que poderiam  identificar empresas envolvidas. Nas páginas seguintes, surgem várias planilhas, com detalhamento de datas, prazos e acordos. Na página 36, informa-se que o DGI, sigla usada para designar propina, pode subir de 5% para 8% em determinada obra. Também se descobre que, além da linha 2, a linha 4 do metrô entrou na dança. Foi ali, na estação Pinheiros, que em 2007 ocorreu um acidente trágico, que provocou a morte de sete pessoas, engolidas por uma cratera. Quando se refere ao consórcio encarregado da obra da linha 4, um executivo da Odebrecht usa a palavra "vencedor" assim mesmo, entre aspas, o que chama a atenção durante a leitura, pelo reforço da ironia. Também se registra na mesma passagem o pagamento de duas parcelas de R$ 250.000 destinadas a uma autoridade identificada como "Santo".



​Serra e Alckmin - Careca e Santo

A verdade é que, além de dois vereadores do PSDB paulistano citados nominalmente, ao lado de quantias relativamente modestas num  contexto de pagamentos milionários - R$ 6.000 e R$ 3.000 - não há menção explícita a nenhuma autoridade de escalão mais alto. São elas que recebem pagamentos de R$ 200.000 ou R$ 250.000 por mês - por vários meses. Embora José Serra e Geraldo Alckmin sejam mencionados como suspeitos óbvios por pessoas que conhecem os bastidores do caso, a verdadeira pergunta consiste em saber por que não se buscou apurar sua identidade real - fosse qual fosse. Boatos não resolve. Suspeita que não é apurada também não. Não há motivo para segredinhos. Os fatos estão descritos em documentos públicos. 

O tempo passa e quem se beneficia é o acusado, seja quem for. Como acontece com tantos colegas de Pimenta da Veiga no mensalão PSDB-MG, as acusações acabam prescrevendo. 

Durante um bom período, um personagem conhecido como "Italiano, visto como o protagonista das investigações que envolvem Antonio Palocci, foi identificado com outro ministro, Guido Mantega. Após um trabalho de checagem, procurando compatibilizar nome de assessores e eventos descritos em diversas trocas de mensagem, a Polícia Federal concluiu que Palocci era o "Italiano." Foi com base nessa visão que fez a representação e, numa cena indispensável para alimentar o já previsível de carnaval televisivo, conduziu o ministro para a carceragem da Polícia Federal em Curitiba.

O problema é que entre as palavras ‘civismo’, virtude que tem sido frequentemente associada a Lava Jato, e ‘cinismo’, palavra comum no vocabulário de seus críticos, a única diferença consiste numa letra.

Se não há motivo para suspeitas prematuras nem acusações irresponsáveis, não há razão jurídica aceitável para se manter na penumbra a identidade de personagens conhecidos como "Santo" e "Careca" nos emails da Odebrecht.
Elas devem ser conhecidas e investigadas, com o mesmo rigor dispensado a Antonio Palocci - a menos que, aceitando a troca do "v" pelo "n", aceite-se que há uma seleção política para alvos do Judiciário. Neste caso, é preciso admitir que não estamos investigando nem a corrupção nem a troca de favores. Mas um partido e seus dirigentes, o que só é aceitável sob ditadurasNão se quer justiça, mas política, colocando o estado "a serviço do grupo social que o controla," como escreve Maria Sylvia de Carvalho Franco, referindo-se às instituições que mantinham a escravidão.

A tragédia da linha 4, na qual sete pessoas perderam a vida, só reforça a necessidade de um esclarecimento completo a respeito da identidade e do papel de "Santo" e "Careca."

A assumida intimidade de Fernando Henrique com Emílio Odebrecht, principal acionista do grupo, muito mais influente naquele período, que é descrita com tanta intimidade no Diário da Presidência, é mais uma razão para isso. Como se aprende pela leitura, FHC chegou a imaginar que o pai de Marcelo Odebrecht poderia ajudá-lo num programa de investimentos públicos destinado a redesenhar o capitalismo brasileiro. Está lá, no volume 1. A mudança do coração da economia sob orientação da Odebrecht. Entendeu?  

A seletividade, sabemos todos, produz anedotas como uma Justiça que não consegue descobrir o endereço de um antigo ministro, Pimenta da Veiga. Mas não só.

Roberto Brant, que foi ministro da Previdência no governo Fernando Henrique Cardoso, também foi apanhado na rede de Marcos Valério. Recebeu um cheque de R$ 100.000. Disse que era contribuição para sua campanha. Acredito sinceramente que, como tantos, estava falando a verdade. Não importa. O fato é que seu destino foi outro. Renunciou ao mandato e ficou livre, enquanto parlamentares do PT, na mesma situação, marchavam no cadafalso da AP 470.

Na nova vida, fora de Brasília, Brant não teve de escapar de oficiais da Justiça. Pelo contrário. Um belo dia, lhe chegou o convite para uma missão nobre. Preparar a versão final de um projeto político de mudanças para o país. Foi assim que, uma década depois de ser apanhado com um cheque de Marcos Valério, tornou-se o autor do texto final de um documento chamado ‘Ponte para o Futuro’, projeto que deu o esqueleto ideológico para o golpe de 31 de agosto.
Deu para entender como tudo se liga com tudo?

Um grave retrocesso na saúde publica








Folha.com, 28/12/16



Um grave retrocesso



Por Florisval Meinão*




O Brasil ainda é referência internacional em saúde pública para países que buscam sistemas com equidade e integralidade, conforme afirmou inclusive o Banco Mundial. Isso a despeito de todas as dificuldades políticas, econômicas e sociais. 

A constatação alvissareira, porém, não condiz com a proposta do Ministério da Saúde de criar planos privados teoricamente mais acessíveis. 

O alvo seria o cidadão com rendimentos insuficientes para adquirir um plano nos moldes dos atuais com cobertura integral. 

Tal propositura busca reduzir o contingente de pessoas que depende exclusivamente do SUS. É mudança significativa em nosso modelo, priorizando o sistema suplementar em detrimento do público. 

Nas ideias até o momento apresentadas, a parte mais onerosa do sistema - ou seja, os procedimentos de alta complexidade, de maior impacto nas contas públicas e que são objetos da maioria dos processos judiciais - ficará unicamente a cargo do Estado. Essa fórmula se configura excelente negócio apenas às empresas, que aumentarão as fontes de lucro e terão riscos bem reduzidos. 

Essas propostas já levadas a um grupo de trabalho do Ministério da Saúde apontam para a formatação de dois modelos de plano: um somente ambulatorial, excluindo procedimentos de alta complexidade, como quimioterapia, urgências e emergências. O outro seria ambulatorial e com internação, mas exclui também alta complexidade, reduzindo a cobertura assistencial por meio da criação de novo rol de procedimentos. 

Prevê ainda a possibilidade de aumentar os prazos estipulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para consultas, internações e cirurgias; reajustes anuais baseados em planilhas de custos das empresas; e introdução de protocolos clínicos de uso obrigatório. 

Seria um grave retrocesso, pois segmentará a assistência à saúde, condição esta rejeitada quando da promulgação da lei nº 9.656/98. 

Com produtos assim, o consumidor não saberá exatamente o que está adquirindo, considerando os milhares de procedimentos hoje existentes na prática médica, além de avanços tecnológicos e científicos. 

Como lidar com as pessoas portadoras de uma determinada doença, em tratamento por meio de um plano de saúde, que, em um dado instante, apresentam complicações, exigindo procedimento que foi excluído? Deverão elas se dirigir ao SUS e percorrer um longo caminho até conseguir acesso? E quanto ao agravamento da condição de saúde nestas circunstâncias? 

A rede suplementar está inserida na Constituição Federal como parte integrante de nosso sistema de saúde e, portanto, tem responsabilidade com o atendimento integral aos cidadãos que dela dependem. 

Para o médico que vier a trabalhar nesse modelo, o exercício da profissão se tornará extremamente vulnerável, já que terá cerceada sua autonomia por imposição de "protocolos". Ele se verá na condição de ter limitada suas possibilidades de orientação pela exclusão contratual de inúmeros procedimentos. 

O cenário que se vislumbra é de enormes dificuldades para profissionais de saúde e consumidores, além de uma afronta aos direitos previstos na Legislação, no Código de Defesa do Consumidor e nas inúmeras resoluções norativas da ANS. Certamente haverá aumento de processos judiciais, implicando significativo número de pacientes que terão seus problemas de saúde dependendo de decisões judiciais. 


*Otorrinolaringologista, é presidente da Associação Paulista de Medicina

De novo o fascismo: Um ano após ‘Como conversar com um fascista’






Revista Cult, dez.2016



De novo o fascismo: Um ano após ‘Como conversar com um fascista’



Por Marcia Tiburi




Há quem negue a existência de neofascismos. Para esses, o fascismo se resume ao fenômeno histórico italiano protagonizado por Mussolini. Outros sugerem, desconhecendo não só a carga simbólica do significante como também as pesquisas sobre a personalidade autoritária (que chegou, por exemplo, à chamada “Escala F”, pensada para medir o “grau de fascismo” de uma sociedade) que ao apontar posturas fascistas de uma pessoa ou de um grupo, aquele que identifica os caracteres da personalidade fascista torna-se fascista. Interessante imaginar Adorno, Lowenthal, Gutterman, Fromm, dentre outros, serem chamados de “fascistas” por Mussolini, Hitler, Rocco e Himmler. Além disso, não se pode esquecer aqueles que identificam toda manifestação autoritária como um ato fascista, nem os que acreditam estar imunes ao fascismo. Em resumo: muitos não compreendem o que é o fascismo, ou fazem questão de ignorar algumas facetas do fenômeno. E, por essa razão, muitas vezes desconsideram ou relativizam os riscos dos neofascismos cada vez mais naturalizados entre nós.

O fascismo, hoje, adquiriu status de elemento de integração social e se baseia não só na solidariedade afetiva daqueles que negam o outro, baseados em preconceitos, e negam também o conhecimento, num gesto de ódio anti-intelectualista, como também na integração das estruturas mentais. Grupos inteiros partilham estruturas cognitivas e avaliativas que fornecem uma estranha sustentação para o comportamento e a ação. Uma visão de mundo baseada em características tais como a crença no uso da força em detrimento do conhecimento e do diálogo, o ódio à inteligência e à diversidade cultural, a preocupação com a sexualidade alheia, e muitas outras, autoriza à barbárie na micrologia do cotidiano.

Busca-se com práticas fascistas impor estruturas cognitivas e avaliativas idênticas para se fundar um consenso sobre o sentido do mundo. A tarefa é facilitada na medida em que o “consenso fascista” é funcional aos objetivos das grandes corporações econômicas. O mundo fascista é o mundo sobre o qual as pessoas com seus microfascismos se põem de acordo sem sabê-lo. Chavões são repetidos como verdades que garantem o lucro emocional do sujeito dos preconceitos: “bandido bom é bandido morto”, “diretos humanos para humanos direitos”, “homossexualidade é sem-vergonhice”, “mulher que não se comporta merece ser estuprada”, “porrada é o melhor método de educação”, “escola sem partido”, etc. A uniformidade do pensamento que caracteriza o fascismo tem sua realização na linguagem estereotipada, mas também na ação estereotipada que é o consumismo. Consumismo das ideias prontas e consumismo das coisas. No contexto em que a sociedade foi substituída pelo mercado, o mais engraçado é que aqueles que foram rebaixados a consumidores pelo sistema, deixando de lado o valor da cidadania que caracteriza o ser humano enquanto ser social, entregam-se ao consumismo esperando que a felicidade venha dele e só conseguem se tornar cada vez mais infelizes. Agindo assim, constroem um mundo do qual eles mesmos não gostam de viver.

É o fascismo que permite manifestações populares antidemocráticas, com todas as contradições daí inerentes, e outras posturas contrárias aos interesses concretos desses próprios portadores da personalidade fascista. Em outras palavras, há um aspecto psicológico, uma certa manipulação de mecanismos inconscientes, que faz com que a propaganda fascista não seja identificada nem como antidemocrática nem que seus objetivos latentes sejam percebidos.

Note-se que a retórica fascista é vazia, não apresenta ideias ou argumentos, mostra-se alheia a qualquer limite ou reflexão. Ao contrário, os ideólogos fascistas (parlamentares, juízes, jornalistas) se caracterizam por falarem por clichês. Poucos percebem suas contradições. Se lembrarmos de frases tais como “pelo direito de não ter direitos” que já apareceram em cartazes em manifestações teremos um exemplo de contradição explícita totalmente fascista enquanto suprassumo da barbárie autorizada. Mas nem sempre o fascismo se faz de frases feitas. Às vezes ele é melhor disfarçado. No Brasil, por exemplo, a “luta contra a corrupção” que em um primeiro momento parece luta pela honestidade, tornou-se cortina de fumaça que leva a uma corrupção mais grave, a do sistema de direitos e garantias. Nessa linha é que, em nome dos “interesses do Brasil”, destroem-se os setores produtivos brasileiros e entregam-se nossos recursos aos conglomerados internacionais. Não é incomum que fascistas usem a “moralidade” como tapume para seus verdadeiros interesses, daí que muitos defendam até mesmo as mulheres e tenham até tentado engajar-se na crítica à cultura do estupro como se eles não a fomentassem. Distanciados da técnica, afirmando barbaridades tais como “convicções” no lugar de provas (lembremos dos que ficaram famosos por meio desses absurdos), ou deixando claro que as formas processuais, que historicamente serviram à redução do arbítrio e da opressão estatal, devem agora ser afastadas para permitir mais condenações, os fascistas ganham espaço reduzindo a complexidade dos fenômenos. Assim propõem raciocínios absurdos como se fossem os melhores: “Vamos deixar de investir em pesquisa para comprar armamentos”, num evidente combate ao conhecimento, que deve parecer desnecessário ou não urgente, quando na verdade, acoberta-se seu momento perigoso e o ódio que tem dele. Bom lembrar que o ódio é um afeto compensatório. Odeia-se aquilo que não se pode ter ou aquilo que afeta, que faz sentir mal, aquilo que humilha, mas para o fascista de um modo projetivo. Por fim, não podemos deixar de nos lembrar, os fascistas se especializam em discursos pseudoemocionais: “Faço isso em nome dos brasileirinhos”, “em nome do meu filho, de Deus”, como vimos na escandalosa votação do impeachment de Dilma Rousseff em 17 de abril desse ano. Ali, cada um podia eleger o seu corrupto preferido.

Fato é que a fala do fascista não é direcionada à audiência, mas ao que há de autoritário nela. Estimula-se, por meio das palavras, o que pode haver de arcaico e o violento em cada um. Daí também a glorificação da ação e a demonização da reflexão. O fascista age em nome da realização do desejo da audiência enquanto, ao mesmo tempo, o manipula. O discurso fascista é, sobretudo, um discurso publicitário que visa um receptor despreparado e embrutecido. É assim, longe do pensamento capaz de duvidar e perguntar, que o fascista-receptor passa a desejar aquilo que a propaganda fascista o faz desejar, passa a acreditar naquilo que a propaganda fascista afirma ser verdade.

Pense-se, por exemplo, na facilidade com que um juiz conseguiria violar as normas constitucionais se manipulasse a opinião pública (e, para tanto, contasse com o apoio de conglomerados econômicos que exploram os meios de comunicação de massa), com a certeza de que os tribunais superiores, na busca de legitimidade popular, não ousassem julgar em sentido contrário à opinião pública, nesse caso, um auditório manipulado.

Como percebeu Adorno, a ação fascista tem natureza intrinsecamente não teórica, desconhece limites, não dá espaço à reflexão, isso porque deve evitar qualquer formulação, em especial porque o fascista nunca pode ter consciência de que seus objetivos declarados nunca serão alcançados e que a propaganda fascista necessariamente faz dele um tolo. Seria insuportável perceber isso. Pense-se nos trabalhadores que “bateram panela”, e se negaram ao diálogo com um governo democraticamente eleito, e que agora, sem fazer barulho, assistem ao desmonte do sistema de direitos individuais, coletivos e difusos. Um fascista cala no lugar em que a personalidade democrática naturalmente se expressaria.

Não por acaso, tanto a propaganda fascista quanto o discurso do fascista vulgar, é repleto de chavões e pensamentos prontos. Tudo deve ser permitido “no combate à corrupção” ou “na defesa da moral e dos bons costumes”. Quem não se adequa à ordem fascista “vai para Cuba”. O Brasil “não tem jeito” e “na época dos militares é que era bom”.

Enfim, se há um ano muitos não entenderam a ironia no livro Como conversar com um fascista (2015) e não prestaram atenção na necessidade de não se deixar transformar em um, agora o objetivo é ser direito: ou se desvela e desconstrói o fascismo, ou não haverá mais espaço à construção de um mundo respirável.


*Graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia. Professora do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie