CartaCapital, Ed. 696
Editorial
Trevas ao meio-dia
Mino Carta
Momento épico. Um daqueles atingidos pela Veja. E onde ficam os porões, caras-pálidas?
Por
que a mídia nativa fecha-se em copas diante das relações entre
Carlinhos Cachoeira e a revista Veja? O que a induz ao silêncio? O
espírito de corpo? Não é o que acontece nos países onde o jornalismo não se confunde com o poder
e em vez de servir a este serve ao seu público. Ali os órgãos
midiáticos estão atentos aos deslizes deste ou daquele entre seus pares e
não hesitam em denunciar a traição aos valores indispensáveis à prática do jornalismo. Trata-se de combater o mal para preservar a saúde de todos. Ou seja, a dignidade da profissão.
O
Reino Unido é excelente e atualíssimo exemplo. Estabelecida com
absoluta nitidez a diferença entre o sensacionalismo desvairado dos
tabloides e o arraigado senso de responsabilidade da mídia tradicional,
foi esta que precipitou a CPI habilitada a demolir o castelo britânico
de Rupert Murdoch. Isto é, a revelar o comportamento da tropa
murdoquiana com o mesmo empenho investigativo reservado à elucidação de
qualquer gênero de crime. Não pode haver condão para figuras da laia do
magnata midiático australiano e ele está sujeito à expulsão da ilha para
o seu bunker nova-iorquino, declarado incapaz de gerir sua empresa.
O
Brasil não é o Reino Unido, a gente sabe. A mídia britânica, aberta em
leque, representa todas as correntes de pensamento. Aqui, terra dos
herdeiros da casa-grande e da senzala, padecemos a presença maciça da
mídia do pensamento único.
Na
hora em que vislumbram a chance, por mais remota, de algum risco, os
senhores da casa-grande unem-se na mesma margem, de sorte a manter seu
reduto intocado. Nada de mudanças, e que o deus da marcha da família nos
abençoe. A corporação é o próprio poder, de sorte a entender
liberdade de imprensa como a sua liberdade de divulgar o que bem lhe
aprouver. A distorcer, a inventar, a omitir, a mentir. Neste enredo vale acentuar o desempenho da revista Veja. De puríssima marca murdoquiana.
Não que os demais não mandem às favas os princípios mais elementares do jornalismo quando lhes convém. Neste momento, haja vista, omitem a parceria Cachoeira-Policarpo Jr.,
diretor da sucursal de Veja em Brasília e autor de algumas das mais
fantasmagóricas páginas da semanal da Editora Abril, inspiradas e
adubadas pelo criminoso,
quando não se entregam a alguma pena inspirada à tarefa de tomar-lhe as
dores. Veja, entretanto, superou-se em uma série de situações que, em
matéria de jornalismo onírico, bateram todos os recordes nacionais e
levariam o espelho de Murdoch a murmurar a possibilidade da existência
de alguém tão inclinado à mazela quanto ele. E até mais inclinado, quem
sabe.
O jornalismo brasileiro sempre serviu à casa-grande, mesmo porque seus donos moravam e moram nela. Roberto Civita,
patrão abriliano, é relativamente novo na corporação. Sua editora,
fundada pelo pai Victor, nasceu em 1951 e Veja foi lançada em setembro
de 1968. De todo modo, a se considerarem suas intermináveis certezas,
trata-se de alguém que não se percebe como intruso, e sim como mestre
desbravador, divisor de águas, pastor da grei. O sábio que ilumina o
caminho. Roberto Civita não se permite dúvidas, mas um companheiro meu
na Veja censurada pela ditadura o definia como inventor da lâmpada
Skuromatic, aquela que produz a treva ao meio-dia.
Indiscutível é que a
Veja tem assumido a dianteira na arte de ignorar princípios. A revista
exibe um currículo excepcional neste campo e cabe perguntar qual seria
seu momento mais torpe. Talvez aquele em que divulgou uma lista de
figurões encabeçada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula
da Silva, apontados como donos de contas em paraísos fiscais.
Lista fornecida pelo banqueiro Daniel Dantas, especialista no assunto,
conforme informação divulgada pela própria Veja. O orelhudo logo
desmentiu a revista, a qual, em revide, relatou seus contatos com DD,
sem deixar de declinar-lhes hora e local. A questão, como era
previsível, dissolveu-se no ar do trópico. Miúda observação: Dantas
conta entre seus advogados, ou contou, com Luiz Eduardo Greenhalgh e
Márcio Thomaz Bastos, e este é agora defensor de Cachoeira. É o caso de
dizer que nenhuma bala seria perdida?
Sim,
sim, mesmo os mais eminentes criminosos merecem defesa em juízo, assim
como se admite que jornalistas conversem com contraventores. Tudo
depende do uso das informações recebidas. Inaceitável é o conluio. A societas sceleris. A bandidagem em comum.
CartaCapital, Ed. 696
Revista Veja e Cachoeira
Civita, o nosso Murdoch
Rupert Murdoch, o magnata mais poderoso da mídia do Reino Unido, 81 anos, é interrogado horas a fio pela comissão parlamentar do Inquérito Leveson. Isso seria possível no Brasil de Roberto Civita? Foto: Pool/AFP
Policarpo Jr., diretor da sucursal da revista Veja em Brasília, trocou 200 ligações com Carlinhos Cachoeira. O bicheiro goiano, escreveu o correspondente de CartaCapital em Brasília, Leandro Fortes, alega ser o pai de “todos os furos” da revista. E Cachoeira disse estar pronto a detalhar as histórias que contou para Policarpo Jr. na CPI.
O patrão da Editora Abril, Roberto Civita, 75 anos, sabia quem era a fonte de todos aqueles “furos” da semanal mais lucrativa de sua empresa? Se for convocado para depor na CPI do Cachoeira, Civita reconhecerá que a Veja não respeitou a ética jornalística? Usar como parceiro de reportagem um criminoso com
estreitos elos (às vezes acompanhados de subornos) com um senador,
deputados, governadores e uma empreiteira foge à regra essencial do
jornalismo: a de apurar as duas ou mais versões da mesma história.
Mas o patrão da Abril provavelmente não dará o ar da graça na CPI. Isso porque os jornalões e a tevê Globo agem em bloco para que isso não aconteça. São dois os motivos. O
bicheiro, atualmente atrás das grades, favorecia os “furos” a envolver
os inimigos “esquerdistas” da mídia tucana, principalmente petistas e
ministros. Segundo motivo: jornalistas de outros orgãos da mídia também
obtinham seus “furos” de Cachoeira.
Por essas e outras, Policarpo Jr. e a recomendável convocação de Civita para a CPI nunca estiveram no noticiário.
Enquanto
isso, Rupert Murdoch, o magnata mais poderoso da mídia do Reino Unido,
81 anos, é interrogado horas a fio pela comissão parlamentar do
Inquérito Leveson, que teve início em novembro de 2011. E na
quarta-feira 2 até o Senado dos EUA entrou em contato com os
investigadores britânicos para avaliar se abrirão um inquérito com o
objetivo de investigar se a News Corporation passou a perna em leis
norte-americanas.
Através de seus jornais – Times, Sunday Times, Sun e News of the World
– Murdoch teve grande influência nas eleições dos primeiros-ministros
conservadores Margaret Thatcher, John Major, David Cameron e Tony Blair.
Até aí nada de errado. Publicações europeias apoiam candidatos políticos em seus editoriais, coisa que no Brasil acontece raramente. A
mídia canarinho gosta de ficar em cima do muro enquanto distorce e
manipula o noticiário a favor dos candidatos conservadores preferidos
pelas elites. Enfim, prima a ambiguidade e a desinformação na mídia brasileira enquanto a mídia europeia se posiciona ideologicamente, o que lhe confere credibilidade. O leitor do vespertino francês Le Monde, por exemplo,
sabe ter em mãos um diário de centro-esquerda que apoia o socialista
François Hollande no segundo turno da presidencial, em 6 de maio.
O problema da mídia murdochiana foram os métodos por ela usados: escutas telefônicas ilegais e suborno de policiais por informações privilegiadas foram as mais graves. De fato, o tabloide News of the World foi fechado porque a acusações acima foram provadas. Jornalistas e um detetive contratado pelo jornal foram presos.
Agora
o Inquérito Leveson quer se aprofundar mais na relação da mídia com
políticos e funcionários públicos. Nesse contexto, investiga o grupo de
Murdoch e outras empresas de comunicação. Ao mesmo tempo, pretende
avaliar se o regime regulatório da imprensa da britânica falhou. Em suma, lá no reinado fazem o que não é feito aqui: uma CPI da mídia.
Murdoch
admitiu no Inquérito Leveson ter sido “lento e defensivo” em relação às
escutas telefônicas ilegais. Reconheceu ter falhado ao negar o
conhecimento sobre a verdadeira escala dos grampos telefônicos até 2010
devido à conduta de subordinados que o deixaram sem informações. Ou será
que Murdoch fingia que não sabia de nada?
São várias as semelhanças entre Roberto Civita e Rupert Murdoch. Ambos têm fascínio pelo “American Dream”, ou seja, a possibilidade de ganhar na vida na terra do Tio Sam, onde todos – eis aí um mito – podem fazer fortuna. E, por vezes, como se vê, a qualquer custo.
Civita nasceu na Itália, mas aos dois anos, em 1938, foi com a família
para os EUA, onde viveu por pouco mais de uma década. Depois de passar
algum tempo no Brasil foi fazer universidade na Filadélfia.
Murdoch
nasceu na Austrália, onde teve início sua carreira de empresário da
mídia. Depois passou vários anos no Reino Unido, onde amealhou sua
fortuna. E, finalmente, foi morar nos EUA para realizar seu sonho, o de
obter a cidadania norte-americana e ser dono de um grande diário, no
caso o Wall Street Journal.
Segundo
o Inquérito Leveson, o patrão da News Corp. não tem “capacidade” para
dirigir um grupo internacional. Isso seria possível no Brasil de Roberto
Civita?
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