Por Sírio Possenti
Mauricio de Sousa entrou na campanha "Veta, Dilma!". Chamou seus personagens para engrossar o coro. Pôs na boca de Chico Bento um apelo: "...licença, Dona Dirma! A gente num intendi muito das coisa da lei mais intendi das nossa necessidade! I nóis percisa das mata, dos rio, dos pexe... E tá todo mundo achando que isso vai sê mexido pra pior! A sinhora podia ajudá pra isso num acontecê? Nossa gente vai agardecê por toda a vida! Eu juro!"
Não vou discutir a questão ambiental, mas a representação dessa fala.
Construções como das mata, dos rio, das coisa são traços sintáticos da fala
popular. Mas pexe, intendi, sinhora, ajudá, acontecê, e mesmo i nóis e num são
soluções discutíveis.
Não é que Chico Bento não fale assim. A questão é que praticamente todos
falamos assim. O alçamento de "es" átonos é comum, e a queda dos "erres" de
infinitivos e das semivogais (pexe) é quase categórica - na fala. Além disso, a
solução é irregular. Por que não genti, nece(i)ssidadi, mixidu, achano e pió?
A tradição literária representou em itálico certas marcas de falas regionais
(tá, dotô). Poucas e bem características, quase estereotípicas. Nada contra dona
Dirma, de Chico Bento, e tluque, de Cebolinha. Talvez percisa e agardecê sejam
aceitáveis.
O que não é aceitável é aplicar grafias erradas apenas à fala de Chico Bento.
Fazendo isso, insiste-se na tese errada de que só os grupos que ele representa
falam assim. Ora, muitas marcas da fala de Chico Bento são comuns a todos, mesmo
aos cultos.
Se o leitor duvida, ouça programas cultos (Roda Viva, Painel, Entre Aspas, e
mesmo julgamentos do Supremo, com especial atenção para os apartes). Nos jornais
das TVs, descobrirá que, lendo, os apresentadores dizem vai ver, conhecer, se
entregou, ajudou, pegou, a seguir, etc. Mas, falando entre si ou com repórteres,
dizem chegô (chegou), pidí (pedir), é tê (é ter), pras pessoas (para as
pessoas), se tê (se ter), pra que o (para que o). O que é normal.
Escrevemos bom, tomate, algo, pouco, vou, lavar, vender, partir, mas falamos
bõw, tomate / tomati / tumati / tomatchi, poco, vô, lavá, vendê, partí. Os
franceses escrevem roi e falam ruá, os ingleses escrevem enough e falam inâf, os
italianos escrevem figlio e falam filio, os falantes de espanhol escrevem calle
e falam caje, caxe, caye, calhe.
Escritas ortográficas não representam pronúncias ou sotaques. Sua função é
ser um código, comum a um povo, ou a vários, em boa medida independente da
pronúncia real. Funciona como representação unitária da língua, que os fatos
insistem em mostrar que não é uniforme.
Deveria ser óbvio. É o que aprendemos nas primeiras séries. Mas insistimos em
achar que "nós" falamos como se escreve, que só os outros falam "errado". Logo,
a fala errada deles deve ser mostrada (ridicularizada?). E a maneira mais eficaz
é escrever errado (só) o que eles falam.
TVs fazem isso com frequência. Entrevistando pobres ou transcrevendo grampos,
exibem palavras em itálico ou entre aspas. E tratam da mesma forma eventuais nós
vai e muitos fazê, pegá, poco.
O campeão dessa escrita é Mauricio de Sousa. As falas de suas personagens são
transcritas ortograficamente. Exceto a de Chico Bento (e de Cebolinha, mas com
outro efeito). Assim, faz entender que os outros falam como se escreve. Diriam
"Será que o senhor pode me ajudar", "Não consegue descer", "Este vestido vai
ficar legal? (não ajudá, descê, ficá legau)" etc.
Veja-se este exemplo: Cebolinha diz: "Agola vou fazer o tluque de despalecer
com este seu vaso chinês". Segundo tal representação, pensaríamos que Cebolinha
é um sofisticado intelectual: sua fala é infantil, mas erudita (desaparecer com,
este seu vaso), com todos os rr. Só faltou um farei. Já Chico Bento...
Haveria uma solução? A óbvia. Qualquer que seja a pronúncia, a escrita
ortográfica é uma só. Logo, Chico Bento deveria ser tratado normalmente. O que
ele diz, independentemente da pronúncia, se escreveria "A gente não entende
muito", "E nós", "isso vai ser mexido para pior", etc. Concedo que Dirma pode
funcionar como tluque, mas não as outras opções.
É uma tese politicamente correta? Isso é o menos importante. O fundamental é
que Mauricio de Sousa, e quase todos, deveriam ter aprendido o que é ortografia.
É uma questão de cultura elementar, de preparo intelectual que permitia
compreender as diferenças entre fala e escrita e que a língua falada culta é, em
numerosos casos, igual à dos menos letrados. Se os "sábios" soubessem disso, o
fato contaria a favor do "povo". Sem qualquer condescendência. Seu capital
linguístico é mais legítimo do que se quer.
A fala de Chico Bento expressa posição política sobre o Código Florestal. É a
posição de Mauricio de Sousa. Temo que seu conhecimento sobre a questão seja do
naipe do que revela sobre língua e escrita...
SÍRIO
POSSENTI É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA / INSTITUTO DE
ESTUDOS , DA LINGUAGEM DA UNICAMP, AUTOR DE , QUESTÕES PARA ANALISTAS
DE DISCURSO , E A LÍNGUA NA MÍDIA (PARÁBOLA)
Nenhum comentário:
Postar um comentário