domingo, 27 de maio de 2012

Somos todos Chico Bento

Por Sírio Possenti

 

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Mauricio de Sousa entrou na campanha "Veta, Dilma!". Chamou seus personagens para engrossar o coro. Pôs na boca de Chico Bento um apelo: "...licença, Dona Dirma! A gente num intendi muito das coisa da lei mais intendi das nossa necessidade! I nóis percisa das mata, dos rio, dos pexe... E tá todo mundo achando que isso vai sê mexido pra pior! A sinhora podia ajudá pra isso num acontecê? Nossa gente vai agardecê por toda a vida! Eu juro!"
Não vou discutir a questão ambiental, mas a representação dessa fala. Construções como das mata, dos rio, das coisa são traços sintáticos da fala popular. Mas pexe, intendi, sinhora, ajudá, acontecê, e mesmo i nóis e num são soluções discutíveis.
Não é que Chico Bento não fale assim. A questão é que praticamente todos falamos assim. O alçamento de "es" átonos é comum, e a queda dos "erres" de infinitivos e das semivogais (pexe) é quase categórica - na fala. Além disso, a solução é irregular. Por que não genti, nece(i)ssidadi, mixidu, achano e pió?
A tradição literária representou em itálico certas marcas de falas regionais (tá, dotô). Poucas e bem características, quase estereotípicas. Nada contra dona Dirma, de Chico Bento, e tluque, de Cebolinha. Talvez percisa e agardecê sejam aceitáveis.
O que não é aceitável é aplicar grafias erradas apenas à fala de Chico Bento. Fazendo isso, insiste-se na tese errada de que só os grupos que ele representa falam assim. Ora, muitas marcas da fala de Chico Bento são comuns a todos, mesmo aos cultos.
Se o leitor duvida, ouça programas cultos (Roda Viva, Painel, Entre Aspas, e mesmo julgamentos do Supremo, com especial atenção para os apartes). Nos jornais das TVs, descobrirá que, lendo, os apresentadores dizem vai ver, conhecer, se entregou, ajudou, pegou, a seguir, etc. Mas, falando entre si ou com repórteres, dizem chegô (chegou), pidí (pedir), é tê (é ter), pras pessoas (para as pessoas), se tê (se ter), pra que o (para que o). O que é normal.
Escrevemos bom, tomate, algo, pouco, vou, lavar, vender, partir, mas falamos bõw, tomate / tomati / tumati / tomatchi, poco, vô, lavá, vendê, partí. Os franceses escrevem roi e falam ruá, os ingleses escrevem enough e falam inâf, os italianos escrevem figlio e falam filio, os falantes de espanhol escrevem calle e falam caje, caxe, caye, calhe.
Escritas ortográficas não representam pronúncias ou sotaques. Sua função é ser um código, comum a um povo, ou a vários, em boa medida independente da pronúncia real. Funciona como representação unitária da língua, que os fatos insistem em mostrar que não é uniforme.
Deveria ser óbvio. É o que aprendemos nas primeiras séries. Mas insistimos em achar que "nós" falamos como se escreve, que só os outros falam "errado". Logo, a fala errada deles deve ser mostrada (ridicularizada?). E a maneira mais eficaz é escrever errado (só) o que eles falam.
TVs fazem isso com frequência. Entrevistando pobres ou transcrevendo grampos, exibem palavras em itálico ou entre aspas. E tratam da mesma forma eventuais nós vai e muitos fazê, pegá, poco.
O campeão dessa escrita é Mauricio de Sousa. As falas de suas personagens são transcritas ortograficamente. Exceto a de Chico Bento (e de Cebolinha, mas com outro efeito). Assim, faz entender que os outros falam como se escreve. Diriam "Será que o senhor pode me ajudar", "Não consegue descer", "Este vestido vai ficar legal? (não ajudá, descê, ficá legau)" etc.
Veja-se este exemplo: Cebolinha diz: "Agola vou fazer o tluque de despalecer com este seu vaso chinês". Segundo tal representação, pensaríamos que Cebolinha é um sofisticado intelectual: sua fala é infantil, mas erudita (desaparecer com, este seu vaso), com todos os rr. Só faltou um farei. Já Chico Bento...
Haveria uma solução? A óbvia. Qualquer que seja a pronúncia, a escrita ortográfica é uma só. Logo, Chico Bento deveria ser tratado normalmente. O que ele diz, independentemente da pronúncia, se escreveria "A gente não entende muito", "E nós", "isso vai ser mexido para pior", etc. Concedo que Dirma pode funcionar como tluque, mas não as outras opções.
É uma tese politicamente correta? Isso é o menos importante. O fundamental é que Mauricio de Sousa, e quase todos, deveriam ter aprendido o que é ortografia. É uma questão de cultura elementar, de preparo intelectual que permitia compreender as diferenças entre fala e escrita e que a língua falada culta é, em numerosos casos, igual à dos menos letrados. Se os "sábios" soubessem disso, o fato contaria a favor do "povo". Sem qualquer condescendência. Seu capital linguístico é mais legítimo do que se quer.
A fala de Chico Bento expressa posição política sobre o Código Florestal. É a posição de Mauricio de Sousa. Temo que seu conhecimento sobre a questão seja do naipe do que revela sobre língua e escrita...
 
 
SÍRIO POSSENTI É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA / INSTITUTO DE ESTUDOS , DA LINGUAGEM DA UNICAMP, AUTOR DE , QUESTÕES PARA ANALISTAS DE DISCURSO , E A LÍNGUA NA MÍDIA (PARÁBOLA)

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