domingo, 13 de maio de 2012

O maior negociante de Stradivarius do mundo desafinou

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O Estadao.com, 13 de maio de 2012

 


O MAIOR NEGOCIANTE DE STRADIVARIUS DO MUNDO DESAFINOU 

 

CARSTEN HOLM, DER SPIEGEL - O Estado de S.Paulo

Os cavalheiros do banco de poupança Bremen Sparkasse reuniram-se em volta de uma mesa segurando dois ícones da cultura ocidental, violinos do decano maior dos luthiers, Antonio Stradivari. Eles têm 294 e 325 anos, respectivamente, e um valor combinado de € 5,2 milhões (US$ 6,8 milhões). Ou assim acreditam os cavalheiros do banco. Eles convidaram o luthier Roger Hargrave, de 64 anos, da cidade próxima de Schanewede na Baixa Saxônia, para acompanhá-los. Ele olha os instrumentos e rapidamente solta seu veredicto devastador: "Não são Stradivarius."
Quando Hargrave pensa na reunião do começo do ano passado, ele se recorda de que os banqueiros de Bremen ficaram absolutamente chocados - "não havia oxigênio sobrando na sala". Um deles, conta, insistiu para ele ser discreto. "Eles ficaram terrivelmente embaraçados por terem caído naquele enorme golpe."
Fora seu cliente de longa data, Dietmar Machold, de 62 anos, que lhes havia entregado os dois violinos como garantia de um empréstimo de milhões. O empresário, que vivera em Bremen por muitos anos, tinha uma boa reputação. Sua empresa estava na família havia cinco gerações, e após se mudar de Bremen para Viena, ele havia alçado ao topo dos negócios mundiais.

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Machold era o homem do Stradivarius. Ainda existem hoje aproximadamente 600 violinos, 60 violoncelos e 12 violas da famosa oficina em Cremona, Itália, e Machold teve cerca da metade desses instrumentos em suas mãos. Sua reputação é tão estelar que lhe permitiram que ele próprio se encarregasse das avaliações dos dois instrumentos entregues ao banco de Bremen como garantia, e ele também apareceu no tribunal como uma testemunha especializada.
Machold deverá aparecer no tribunal num papel diferente - como acusado. O escritório da procuradoria pública de Viena o acusou de apropriação indevida, falência fraudulenta e grande fraude comercial. Os promotores receberam 46 queixas criminais da Austrália, Estados Unidos, Holanda, Bélgica e Alemanha, onde ele é acusado da perda de instrumentos valiosos.
Durante meses, investigadores austríacos e Jörg Beire, de 72 anos, o administrador dos processos de falência, vinham tentando jogar luz sobre as operações comerciais de Machold. Seus esforços montaram o quadro de um empresário que provavelmente estava com problemas de caixa há anos e vendeu os violinos que haviam ficado com ele em consignação por milhões - com frequência não repassando os proventos aos donos dos instrumentos ou aos bancos, alegadamente usando o dinheiro para saldar outras dívidas.
Investigadores descobriram como Machold prosseguiu com suas atividades fraudulentas, mas também como os bancos facilitaram as coisas para ele. Ninguém notou quando ele usou o mesmo violino como garantia para empréstimos junto a duas instituições financeiras diferentes.
Em abril do ano passado, os cavalheiros do Bremen Sparkasse, que agora não se dispõem a comentar o incidente, escudando-se no sigilo bancário, finalmente perceberam que os violinos no seu cofre tinham quase nenhum valor. Os banqueiros fizeram o especialista florestal de Hamburgo, Micha Beuting, examinar os alegados instrumentos de Stradivari. Se eles fossem genuínos, as árvores empregadas na sua fabricação teriam sido derrubadas antes de 1737, o ano da morte de Antiono Stradivari.
Em seu relatório, Beuting observou com base nos anéis de crescimento que as árvores haviam sido cortadas décadas depois da morte de Stradivari - provavelmente nos Alpes setentrionais ou na Floresta Bávara, mas claramente não nos Alpes meridionais, onde cresciam os abetos vermelhos que Stradivari usava nos seus violinos.
Machold passou a perna nos banqueiros. "Os dois violinos valem apenas cerca de € 2 mil ou € 3 mil cada", diz o luthier Hargrave. Os banqueiros não tiveram outra escolha senão entrar com uma queixa de € 5,9 milhões no processo de insolvência no tribunal comercial de Viena. Indenizações que podem chegar a € 100 milhões
O Bremen Sparkasse não é a única parte prejudicada no que é o maior caso de fraude no comércio mundial de instrumentos musicais até agora. Desde que a Machold Rare Violins, a rede de companhias que Machold renomeaou como Kadenza GmbH, desmoronou no fim de 2010, o alcance dos danos foi surgindo. Bancos, clientes e ex-empregados entraram com ações indenizatórias totalizando cerca de 100 milhões de euros no caso.
As queixas incluem € 6 milhões para o UniCredit Bank (anteriormente Bayerische Hypo- und Vereinsbank), € 5,4 milhões para o banco austríaco Bawag, € 2,3 milhões para o UniCredit Bank Austria e € 1,5 milhão para o grupo bancário austríaco Hypo Alpe Adria. William L., um cidadão holandês que vive no sul da França, entrou com uma ação indenizatória de € 2,5 milhões. Nos procedimentos de falência, os queixosos pediram o ressarcimento para mais de 200 instrumentos de corda, cujos paradeiros, diz Beirer, "são desconhecidos, porque estão faltando os registros de Machold".
Machold, o ex-empresário alemão bem de vida, conhecido por sua aparência e seus modos cosmopolitas, agora está detido à espera de julgamento numa prisão no distrito de Josefstadt, em Viena. Ele confessou algumas acusações e pode esperar uma sentença de muitos anos de prisão.
Nos bons tempos, Machold tinha escritórios em Nova York, Chicago, Tóquio, Seul, Zurique, Viena e Bremen. Ele tirava proveito do fato de que os preços de violinos Stradivarius e de outros violinos históricos, como os de Guarneri del Gèsu, aumentaram 200 vezes desde 1960. Em junho de 2011, um comprador anônimo pagou o preço recorde de US$ 5,9 milhões pelo violino "Lady Blunt".
No mundo dos violinos, qualquer pessoa que precise perguntar por que um Stradivarius de US$ 6 milhões pesando cerca de meio quilo vale hoje 250 vezes mais uma quantidade igual de ouro é considerada uma ignorante.

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Dietmar Machold e sua antiga residência, o Castelo de Eichbüchl

Machold ganhou milhões. Após a venda de três Strads e um Guarneri del Gèsu, ele comprou o Castelo de Eichbüchl, de 700 anos, nos arredores de Viena, em 1997, por um milhão de marcos alemães, e gastou outros quatro milhões com reformas. Queria que todos vissem o quanto era bem-sucedido. Dez anos depois, ao se casar com a professora Barbara Drews, hoje com 36 anos, o casal viajou para o sul da França num Rolls-Royce amarelo.
Advogado por profissão, Machold se tornou um membro respeitado da alta sociedade. Na Áustria, um país apaixonado por títulos, há poucas honrarias mais cobiçadas do que ser chamado de professor honorário - a retribuição que o Ministério da Cultura concedeu a Machold por uma coleção de violinos históricos que ele havia conseguido para o Banco Nacional da Áustria. Mas os títulos não pararam por aí. Numa cerimônia no Castelo de Eichbüchl, em 2005, Erwin Pröll, o governador do Estado da Baixa Áustria, agraciou Machold com a "Grande Medalha de Honra Dourada por Serviços Prestados ao Estado". Melhor de tudo, ele ungiu Machold como um "cidadão do mundo" a plena vista dos ilustres hóspedes ali reunidos.
O raio atual do cidadão global está limitado a seu passeio diário no pátio da prisão. Ele perdeu tudo. Seu castelo foi vendido por € 3,5 milhões, e o inventário, consistindo de mobiliário de período, tapetes e a biblioteca, por € 120 mil. A casa em Bremen que ele herdou de seus pais foi vendida por € 350 mil. Machold perdeu até a mulher Barbara, que obteve o divórcio em fevereiro.
No mesmo mês, durante uma audiência de seis horas no Escritório Estatal de Investigações Criminais em Viena, Machold abriu o jogo sobre um violino Stradivarius no valor de mais de € 2 milhões, o "Ex-Rosé". Ele contou à polícia que havia usado o violino como garantia em dois bancos. Quando o vendeu em 2006 por € 3 milhões, ele pagou o empréstimo do primeiro banco, BAWAG, assim disse. O segundo banco, Bayerische Hypo- und Vereinsbank, não recebeu nada. Esse aparentemente não foi um caso isolado. "Eu duplicava certificados para violinos quando precisava de um", admitiu Machold.
Jörg Beirer, um dos mais conhecidos administradores de falência austríacos, está surpreso. Em alguns casos, diz Beirer, Machold forneceu aos bancos nada além de fotocópias de instrumentos ou avaliações que ele próprio havia preparado. "Não é uma pratica normal de bancos."
Após se encontrar com Machold algumas dezenas de vezes, ele reconheceu um talento capaz de enganar os banqueiros. "O homem sabia como usar um retrato extremamente lisonjeiro de si mesmo, completo com castelo, coleções de câmeras e relógios, carros caros, companhias espalhadas por todo o globo e uma rede de especialistas para afetar algo que ele não é e não tem", diz Beirer. Machold, acrescenta, tem o dom da "persuasão acompanhado por autoconfiança e charme."
Ao que parece, na metade da década passada, o comerciante só conseguia fazer as contas fecharem dando constantemente novos golpes para saldar suas dívidas com bancos e clientes. Os banqueiros haviam notificado Machold, no começo do verão de 2009, que executariam a dívida a menos que ele fornecesse uma garantia. O fim estava próximo.
O plano de Machold era deixar o negócio para seu filho Lüder. Ele mesmo revelou que já havia dito ao filho que ele primeiro teria de "fazer uma limpeza séria" nas companhias. Isso foi provavelmente uma meia verdade.

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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