quinta-feira, 5 de maio de 2011

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Um homem também chora

Luis Nassif

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O desemprego é feroz. Não respeita história, competência, seriedade, humilha, liquida com a auto-estima. Seu Oscar veio para São Paulo machucado, mas guerreiro. Foi de porta em porta, ofereceu-se como farmacêutico para seus pares, distribuiu currículo, chegou a escrever algumas crônicas em sua velha Remington, na esperança de que sua segunda profissão, jornalista amador, pudesse ser uma saída.
Não parou de lutar por nenhum minuto, até conseguir emprego de vendedor da Coleção Nobel. Foi para Poços e procurou um a um amigos e antigos desafetos para vender livros. E continuou lutando, tentando, até conseguir emprego de farmacêutico, fazendo manipulação de fórmulas em uma clínica de emagrecimento na zona leste. Depois, alugou uma casa e conseguimos reunir de novo os cinco filhos, espalhados por casas de parentes.
No sábado, eu costumava chegar de manhãzinha do fechamento da "Veja". Ele pedia carona até o laboratório. Nem ligava, porque sabia que ele queria companhia. E o levava satisfeito, embora bêbado como um pescador insone.
Pouco a pouco seu Oscar foi se refazendo. Foi juntando seu dinheirinho, economizando, até o dia em que conseguiu comprar uma linha telefônica. Foi a primeira vitória de um longuíssimo período em que se limitou a vender, um a um, todos os seus bens.
Durou pouco a sensação de vitória. Poucos dias depois, cheguei em casa à noite, me preparando para viajar para Poços no dia seguinte. Era 1974. Ele me pegou na sala afobado, com as pupilas dilatadas, bem do modo dos Nassif, depois de certa idade, daquele jeito do seu primo Armando Bogus no final da vida. O Conselho Regional de Farmácia de São Paulo estava recusando seu registro, porque o nome no diploma era Sckhair, e no documento de identidade era o Oscar que assumira com a naturalização, em 1967.
Ele, o mais mineiros dos poços-caldenses -na opinião do amigo Lindolfo Carvalho Dias-, chegou a Poços com dez anos de idade, vindo da Argentina. Quando conseguiu a naturalização, muitas décadas depois, fez a maior festa que nossa casa presenciou. Juntou todos os amigos, exibindo um sorriso esfuziante, devidamente registrado em várias fotos que guardo no álbum de família.
A praga da burocracia vinha atormentá-lo, logo agora que a longa corrida de obstáculos parecia estar chegando ao fim, depois de anos tentando vender a farmácia, depois do momento duro da venda da casa, da chegada a São Paulo, do aluguel da nova casa, da reunificação dos filhos debaixo do mesmo teto, do emprego duramente conquistado.
Viajei no dia seguinte para Poços carregado de pressentimentos. Cheguei lá e soube que os políticos da Arena tinham comprado o jornalzinho que eu havia ajudado a fundar. Briguei com meus ex-sócios, perdi a cabeça e fui esfriar de noite, em uma rodada de música na represa Saturnino de Brito.
Coube ao Sérgio Manucci, com quem eu brigara à tarde, ir até lá para me avisar que meu pai tinha sido derrubado por um derrame. Sobreviveu com seqüelas, mas sua luta terminara ali. Separei um resto de salário, comprei a "Farmacopéia" e o presenteei, mas ele já tinha desistido.
Por isso, cada vez que vejo esses economistas e políticos com suas formulações absurdas, com a insensibilidade dos que destroem países sem se incomodar com os efeitos sobre famílias e pessoas, quando vejo o desemprego se espalhando, me recordo do velho e o vejo, como a milhares de pessoas, na música de Gonzaguinha: "Um homem se humilha / se castram seus sonhos / Seu sonho é sua vida / e vida é trabalho / E sem o seu trabalho / o homem não tem honra / E sem a sua honra / se morre, se mata"...

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