domingo, 22 de maio de 2011

Invocando Caymmi

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http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/professor-zenir-reis-chama-caymmi-o-pescador-tem-dois-amor.html

Língua oral e escrita

Por Zenir Campos Reis*

Antes de ler e escrever, falamos. A fala requer longo aprendizado. A boca existe prioritariamente para comer. Primum vivere. Aos poucos, desenvolvemos essa habilidade secundária de adaptar a boca, lábios, dentes e língua, para a emissão de sons inteligíveis, distintivos, que vão compor as palavras. No convívio social, os mais velhos ensinam aos mais jovens as regras de com-binação das palavras, isto é, as regras básicas de sintaxe.
A língua oral é econômica e tende à simplificação. Em português, por exemplo, a marca mais comum do plural é o “s” no final das palavras. Se esse fonema está presente no artigo fica entendido que estamos falando de mais de um objeto: o livro, os livro(s), um ou mais de um. Em outras línguas, o francês por exemplo, o “s” do plural nem é pronunciado: le livre, les livre(s). A marca do plural está presente apenas na diferença que a língua oral estabelece entre /le/ e /les/. Existem lingüistas que consideram a repetição da marca do plural uma espécie de pleonasmo, de repetição dispensável. Lembremo-nos da bela canção de Dorival Caymmi, “O bem do mar”, que começa assim:
O pescador tem dois amor
Um bem na terra,
Um bem no mar (bis)
O que fixa a língua é a letra, a escrita, para cuja conquista exige-se outro aprendizado, normalmente feito na escola. Compreende-se que a língua escrita não seja imediatamente acessível.
Antropologicamente, na história da humanidade, o aparecimento da escrita parece estar relacionado ao surgimento de sociedades mais complexas e ao aparecimento da divisão social e da dominação. A posse da letra sinalizava o poder. A imprensa, então, é uma invenção tardia, do século XVI. O primeiro livro impresso foi uma Bíblia e a leitura e interpretação desse livro sagrado começou a ser objeto de disputa.
A língua portuguesa, língua latina, proveio não do latim erudito, mas do chamado “latim vulgar”, o latim oral, falado por soldados (das tropas de ocupa-ção) e colonos iletrados ou pouco letrados. Um escritor de origem húngara, Paulo Rónai, grande conhecedor de línguas, quando tomou contato com a língua portuguesa, diz que lhe parecia um latim falado por pessoas desdentadas. Possivelmente era uma impressão verdadeira. Com certeza eram iletrados, pessoas “simples”, mais ou menos sinônimo de pobres. Muitos deles, desdentados.
Esses pobres falavam, por exemplo “mágoa” ou “mancha”, em vez de “mácula”. Falavam “logro”, em vez de “lucro”. E diziam bem, diziam certo. Encontrei a palavra “resisto”, num sermão de Antônio Vieira, palavra que se diz em português do Brasil “registro”, ou, em Portugal, “registo”. Tudo muito certo, no contexto apropriado.
A disciplina gramatical costuma vir das camadas letradas, muitas vezes associadas ao poder político, isto é, às normas adotadas pelas autoridades políticas e transformadas em acordos, tratados, normas, transmitidos via minis-térios, academias, escolas oficiais.
A realidade da língua viva é muito mais complexa e indisciplinada, porque a letra, que fixa a língua oral depende da alfabetização que não é universal, nem neste país nem em muitos outros países, mesmo do mundo dito desenvolvido. Uma longa conversa, como se vê.
Zenir Campos Reis é professor aposentado de Literatura Brasileira na USP.
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CartaCapital, Ed. 647

Não existe apenas uma língua

Mauricio Dias
O fogo pesado disparado contra o livro Por Uma Vida Melhor, de Heloisa Ramos, distribuído pelo Ministério da Educação para a rede pública, faz parte do arsenal da reação conservadora a políticas, apenas ligeiramente progressistas, adotadas nos dois governos Lula e, agora, no governo Dilma Rousseff. Nesse sentido, é possível seguir o rastro deixado pela oposição e pela mídia, unidos em fina sintonia, por exemplo, contra o Programa Bolsa Família e, também, contra a política externa sem alinhamento automático com os Estados Unidos.
Soma-se a esses ataques outro ingrediente. O forte e enraizado preconceito.
Língua é ferramenta e sua função primária é propiciar uma comunicação inteligível. Ela é normatizada ao longo do tempo na forma como é falada. Assim é criado o padrão escrito. O passo seguinte é a aceitação de um modelo estético e passa a ser elegante escrever, e também falar, na variante oficialmente reconhecida”, observa o advogado e linguista Ricardo Salles autor, entre outros, do livro Legado de Babel (Ed. Livro Técnico), prefaciado por Antonio Houaiss.
Salles põe o dedo na ferida: “Isso dá, em primeiro lugar, distinção social e, como um subproduto terrível, o preconceito contra aqueles que não falam da mesma maneira”.
Alvejado de variadas maneiras, por variadas intenções e por variados calibres, o livro, quatro volumes de 107 páginas cada um, não ensina nem enaltece erros de português. Mas essa versão, para quem ataca, é melhor do que o fato. O trabalho fornece apenas alguns exemplos da língua popular.
Toda a polêmica está criada a partir de 30 linhas de apresentação, nas quais a autora orienta o estudante que “não há um único jeito de falar e escrever”. Há variantes que podem ser de origem social. Ela explica:
As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio – vale lembrar que a língua é um instrumento de poder –, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular”.
Por esse motivo, aliás, Heloisa Ramos não fala em “erro” e “acerto”. Ela usa “adequação” e “inadequação”, e ainda alerta: “…quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta”.
Salles lembra que formas como “eles vai” e equivalentes já são aceitas em certas línguas europeias, como o finlandês, país do Primeiríssimo Mundo.
Nesse caso específico Ricardo Salles diz que a razão é simples: “Durante muito tempo, a Finlândia fez parte da Suécia e tudo o que era importante se exprimia em sueco e não em finlandês.
A língua finlandesa (idioma uraliano, que não tem qualquer parentesco conhecido com o português) ficou, portanto, relegada a um segundo plano e evoluiu com os falantes com toda naturalidade e, tal como ocorre em outros idiomas, inclusive em português, houve equalização da conjugação verbal pela terceira pessoa do singular”.
Em tempo, o colunista oferece um exemplo banal: quando usamos “você” lançamos mão do que já foi palavra popular variante da língua culta Vossa Mercê.

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