A Previdência e os riscos da desoneração
Paulo Kliass
Mais uma vez, o tema volta às páginas dos jornais. Ao que tudo indica, o governo da Presidenta Dilma pretende realmente apresentar uma proposta de Reforma da Previdência Social baseada em uma sugestão há muito defendida pelas entidades representativas dos empresários em nosso País. Trata-se da famosa “desoneração” da folha de pagamentos, ou seja, a mudança extremada na forma de arrecadação dos recursos para manter em funcionamento o Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Esse regime é mantido pelo INSS para oferecer benefícios como aposentadorias e pensões a dezenas de milhões de famílias brasileiras.
Desde o momento da criação do modelo previdenciário público em nosso País por Getúlio Vargas, a base do seu financiamento foi a folha de pagamentos, em um regime de co-participação. Isso pressupõe a contribuição por parte da empresa e também por parte do assalariado, bem como as demais formas de participação específicas como autônomos, empregados domésticos, artesãos, agricultores e outros. A esmagadora maioria, porém, é composta pelos trabalhadores assalariados, que contribuem com 11% do seu próprio salário, e pelas respectivas empresas, que recolhem o equivalente a uma alíquota de 20% sobre a folha de pagamento. Esses recursos entram como a fonte de financiamento, ou seja, a base de arrecadação do INSS.
A estrutura de despesas da Previdência Social, como já vimos em artigo recente , contempla um conjunto amplo de benefícios, tais como aposentadorias por tempo e por idade, pensões por morte do cônjuge, aposentadoria por invalidez, auxílio acidente, auxílio doença e outros. No entanto, mais de 90% dos gastos estão associados às aposentadorias e pensões mais típicas e ordinárias.
E o mais importante é que, ao contrário do catastrofismo alardeado a todo instante, o sistema não é deficitário! O volume arrecadado a cada período sob a forma das contribuições das empresas e dos assalariados é suficiente para pagar as despesas realizadas com as aposentadorias.
Quando as manchetes de jornais escancaram os números sobre estrondosos déficits do regime previdenciário, na verdade omitem qualquer tipo de análise mais séria ou responsável. Não explicam ao leitor, por exemplo, que há um número expressivo de aposentadorias e pensões dos agricultores que foram incluídos no regime a partir da Constituição de 1988 sem que fosse exigida a contrapartida das contribuições de forma retroativa. Apesar de serem benefícios de valor reduzido (até um salário mínimo), a contabilidade do INSS só registra a despesa, pois não houve a contribuição por parte da União. A decisão do constituinte foi politicamente correta, pois tratava-se de medida de inclusão e de justiça social, uma vez que os agricultores estavam à margem do sistema. Mas o INSS não pode ser penalizado por uma decisão sobre a qual deve atuar o Tesouro Nacional para manter o equilíbrio contábil.
Ora, mas se o sistema está equilibrado, podemos nos perguntar a respeito das razões para tamanha gritaria. Na verdade, há um conjunto de fatores a explicar tal fato.
Em primeiro lugar, o desejo ardente do sistema financeiro de se lançar com liberdade sobre a movimentação de um fundo bilionário como a nossa previdência. Ao contrário do ocorrido com uma parcela dos países desenvolvidos e grande parte dos países do Terceiro Mundo, o Brasil conseguiu evitar o canto de sereia neoliberal nesse domínio e manteve a natureza pública de sua previdência oficial. O regime de previdência privada e os fundos de pensão operam como previdência complementar ao regime público universal para todos. Mas o grande sonho dos operadores do mundo das finanças é apoderar-se de todo o sistema previdenciário.
Converter o direito cidadão em sonho de consumo, um produto a mais a ser vendido aos clientes, a exemplo dos seguros de carro, das aplicações nos fundos de investimentos, das hipotecas para aquisição de imóveis, os consórcios para compra de veículos, os famosos empréstimos para consumo em “24 vezes sem juros” e por aí vai. O regime previdenciário tornar-se-ia um universo infindável de ganhos elevados e riscos bastante reduzidos para as instituições financeiras.
Mas a colocação em prática de tal estratégia depende de outros fatores, principalmente de natureza política. Por maior que seja a pressão dos representantes do mercado financeiro, os governos não ousaram tanto até o momento. Nem mesmo os governos assumidamente de direita apresentaram tal tipo de proposta. No momento atual, após a crise de 2008, os bancos foram obrigados a adotar uma posição de recuo estratégico, aguardando o momento de voltar com toda a sede ao pote de ouro. A tática defensiva pressupõe a tentativa de desestabilizar e desacreditar o regime da previdência social sob a égide do INSS.
Além do discurso irresponsável contra o déficit estrutural do sistema, vem agora à tona a tentativa de aliança com o conjunto dos demais segmentos do empresariado em torno do velho e conhecido discurso a respeito do “custo Brasil”. E esse é o segundo aspecto. Para reduzir o custo empresarial e tornar nossas empresas mais competitivas, dizem os “especialistas financeiros”, basta reduzir o custo de mão de obra e os impostos. Custo financeiro por conta da maior taxa de juros do planeta? Nenhuma palavra a respeito. Não há nada a fazer por conta da necessidade de se manter a política econômica “séria e responsável”. Custo empresarial e operacional em função da política cambial de valorização artificial do nosso real frente às demais moedas do mundo? Nada a comentar, pois o regime de liberdade cambial é um dos pilares da política econômica desde o Plano Real. Ou seja, como sempre os custos trabalhistas aparecem como os responsáveis pelas dificuldades e os mais frágeis a serem atingidos. A expressão mágica passou a ser “flexibilização dos direitos trabalhistas”.
A solução apresentada também contém muito de desconhecido. Ou seja, propõe-se sair de um regime que funciona há décadas e passar a outro completamente novo, um verdadeiro passo rumo a universo pouco conhecido. Ao invés das empresas recolherem a contribuição de 20% sobre a folha de pagamentos, esses recursos adviriam da incidência de alguma alíquota sobre o faturamento das mesmas. Em princípio nada a opor, uma vez que estaria mantido o espírito de contribuição compulsória das empresas e de trabalhadores. O ponto a se questionar é a respeito das conseqüências futuras de tal mudança. Seria o total de recursos arrecadado com base no faturamento suficiente para fazer face às despesas do INSS? Nada está assegurado. E uma vez desmembrada a contribuição do seu gasto com recursos humanos, abrir-se-ia uma possibilidade mais à frente para comprometer a fonte de financiamento da Previdência Social. Afinal, o interesse de qualquer empresa no mundo capitalista sempre será a redução de seus custos e o aumento de seus lucros. Ou seja, em outro momento futuro de luta por menos impostos, estará colocada a redução da contribuição das empresas para a previdência, sem dúvida alguma.
Em 2010, por exemplo, a arrecadação do INSS foi de R$ 212 bilhões. Por volta de 2/3 desses recursos foram recolhidos com base na incidência de 20% sobre a folha de pagamento. O restante corresponde a 11% por parte do assalariado. Ora, se os representantes do empresariado foram vitoriosos em seu lobby para derrubar a CPMF para financiar os gastos públicos com a saúde, imagine-se o esforço que não farão, mais à frente na história, para acabar com outra forma de contribuição sobre seu faturamento correspondente a mais de R$ 120 bi anuais. Surge a estratégia de inviabilizar o sistema público e abrir o espaço para seu sucateamento e a privatização.
Ou seja, o custo das empresas não será reduzido. Apenas haverá uma outra fonte de arrecadação. E, do ponto de vista político, mais frágil de ser posteriormente alterada, pois desvinculada do custo com a mão-de-obra. O discurso oficial acabou entrando na onda das proposições liberalizantes, com a promessa de que tal medida estimularia a criação de novos empregos no País. Triste ilusão! As primeiras versões falam de uma possível transição lenta, com a redução progressiva dos 20% e o surgimento também progressivo da outra fonte sobre o faturamento. Mas como fazer com eventuais conjunturas de queda de faturamento? Cria-se o mesmo buraco quando das épocas de maior desemprego e baixa de salários. Mas o movimento de flutuação do faturamento das empresas é muito mais expressivo do que são as despesas com salários.
E o mais arriscado de tudo é a tentativa de atrair para o apoio a tal medida das próprias centrais sindicais e demais entidades representativas dos trabalhadores. O movimento sindical não pode embarcar nessa via insegura e sem retorno. Não foi apresentado nenhum estudo sério que garanta a continuidade do equilíbrio do regime sob tal mudança.
Enfim, causa estranheza o empenho e a urgência para a aprovação do novo modelo. Tal como proposta até o momento, a desoneração apresenta-se, na verdade, como um sério risco para a sobrevivência do nosso regime de Previdência Social. As mudanças na pirâmide demográfica confirmada pelo Censo de 2010, o aumento da longevidade da população, a redução do número de jovens são todos fatores que estão na base de algumas alterações necessárias nas regras atuais do sistema. No entanto, como se trata de transformações inter-geracionais, é recomendada prudência e embasamento de estudos sérios para a conformação das mudanças que assegurem a sustentabilidade do regime público num horizonte de longo prazo.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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