sexta-feira, 27 de maio de 2011

Livro: 'Lornalismo de Campanha e a Constituição de 1988'


"Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988", de Emiliano José.
Edufba/Assembleia Legislativa da Bahia, 2011, 356 páginas

A mecânica do consenso

Tiago C. Soares (*)

Nos anos 1990, no primeiro mandato do governo FHC, o jornalista Aloysio Biondi costumava escrever que as informações mais importantes das notícias econômicas eram as que ocupavam os últimos parágrafos. Na euforia do paraíso prometido pelo neoliberalismo, as editorias de economia, assim, mergulhavam no registro de políticas que, atrás do nevoeiro da sofisticação técnica, se esforçavam em esconder os fatos de uma realidade que não ia tão bem.
Fenômeno antigo, esse entrelaçamento de mídia e ideologia ganhou, na construção do ideário neoliberal, novos contornos. Um cenário no qual o maquinário da imprensa e o jornalismo, reorganizando os circuitos e os espaços de construção das ideias, transformam-se em formuladores e representantes das propostas de oligarquias emergentes. E é essa movimentação o tema de "Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988", novo livro do jornalista e deputado federal petista Emiliano José.

Baseada na tese de doutorado defendida pelo autor em 1999, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a obra traça um panorama da relação entre imprensa, governo e grupos políticos no Brasil, tendo como eixo o processo constituinte de 1988. A partir da radiografia das forças e projetos de país que emergem dos trabalhos da Constituição de 1988, Emiliano reconstroi a trajetória do discurso neoliberal no país, num resgate crítico dos registros jornalísticos sobre pontos-chave da Carta Magna.

Trata-se de uma década de cobertura analisada pelo autor, um esforço que cobre o jornalismo feito sobre a Constituição do país, e suas reformas, entre 1988 e 1998. Atendo-se, essencialmente, ao recorte de alguns dos maiores veículos escritos do país (O Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, Veja, IstoÉ e CartaCapital), Emiliano rastreia o arsenal de métodos e truques de linguagem utilizado pela maioria da grande imprensa na construção do pensamento único neoliberal. Um mapa do caminho percorrido pelos fatos e ideias, de seu processamento pelo maquinário midiático à sua publicização, num sofisticado jogo de reorganização da agenda pública.

Para o autor, a imprensa hegemônica mostra-se cavalo de batalha do ideário neoliberal. Com sua adoção, a partir do fim dos anos 1970 e adentro dos 1980, pelos governos de países como Inglaterra e EUA – além de outras nações europeias, asiáticas e latino-americanas –, o neoliberalismo aproxima-se do Brasil com extraordinária musculatura.

Seduzidos pela proposta de diminuição do papel do Estado, deixando ao capital o papel de organizador e provedor da vida social, grupos dominantes locais se recompõem em novas estruturas oligárquicas, num esforço intenso para a construção de um projeto neoliberal brasileiro – plano para o qual o Estado forte engendrado na Constituição de 1988, garantidor de direitos sociais, era não mais que um obstáculo.

A partir daí, e com um discurso estruturado em alguns pontos-chave do ideário neoliberal (mantras como“Estado hipertrofiado”, “desequilíbrio nas contas públicas”, “sindicatos corrompidos”), a imprensa nacional, em sua maioria, esgrimirá toda sorte de argumento para erodir a Constituição de 1988, em editoriais, análises, notícias. Primeiro, minando a adoção, pela nova Carta Magna, de direitos fundamentais garantidos pelo Estado. E, na sequência, organizando estratégias de alteração (as “reformas constitucionais”) de aspectos que se colocassem no caminho da plena realização do projeto neoliberal.

É claro que essa organização da imprensa e do trabalho jornalístico, embora conformadora de um discurso hegemônico, oligárquico, não ocorre sem tensões e contradições internas. Alguns veículos mostram-se críticos, há os que oferecem contrapontos, que ocupam espaços ideológicos distintos. A inserção da imprensa na lógica da indústria cultural, porém, reconfigura práticas jornalísticas. Reestruturadas para o processamento de releases e informações oficiais, as novas redações veem a pluralidade classicamente atribuída ao jornalismo ceder espaço a um discurso de afirmação, de campanha. E é esse jornalismo de campanha, na visão de Emiliano, um dos atores centrais na elaboração e sedimentação, no imaginário social, das linhas de força centrais do neoliberalismo.

Trabalho de fôlego, "Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988" é um detalhado registro da relação entre imprensa, política e ideologia na construção do discurso público e do consenso neoliberal. Uma obra que, ao jogar luz sobre pontos falsos e vícios de algumas práticas jornalísticas dessas últimas décadas, serve à reflexão sobre a responsabilidade pública dos meios de comunicação e a atual crise de credibilidade pela qual passa a imprensa. Porque os fatos, não importa quantos parágrafos sejam usados para soterrá-los, costumam, teimosos, se impor.

(*) Tiago C. Soares é jornalista, editor de web da Fundação Perseu Abramo. É mestrando em Divulgação Científica e Cultural/Novos Meios pela Unicamp

(**) Resenha publicada originalmente na revista Teoria e Debate.

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