segunda-feira, 23 de maio de 2011

Torturados: Quando a memória se torna o maior tormento





São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 2011


Para torturados, memória se torna o maior tormento

Por DENISE GRADY

AMÃ, Jordânia - Na primeira vez que o Exército iraquiano o deteve, ele disse que soldados invadiram sua loja em Bagdá, o arrastaram para fora algemado e vendado e o levaram para uma prisão suja e superlotada. Espancamento, estupro, fome e doença eram comuns. Passou quatro meses detido, até dezembro de 2008. O comerciante, um homem de 35 anos, baixo e meio calvo, estava tranquilo e falava suavemente no início, mas se tornou cada vez mais estridente e agitado enquanto contava sua história.
Ele descreveu longos episódios de tortura, ameaças de seus captores de ir a sua casa e violentar sua mulher e horrores diários como o suicídio de um jovem prisioneiro que se eletrocutou com os fios de uma chapa quente depois de ser estuprado por soldados. Ele pediu para ser identificado apenas por sua inicial, M., pois os parentes continuam no Iraque.
Depois de falar durante uma hora, ele balançou a cabeça e disse em voz baixa: "O que aconteceu não é como eu acabo de contar. O que aconteceu foi muito pior".
Antes, ele tinha senso de humor e amigos. Hoje, não tem nada disso. "Não sou como antes", disse. "Minha personalidade mudou."
Ele falou em um centro de tratamento que foi inaugurado em Amã em dezembro de 2008 para ajudar os iraquianos que foram torturados em seu próprio país ou que sofrem outros traumas de guerra. É uma filial do Centro para Vítimas de Tortura, um grupo baseado em St. Paul, Minnesota (EUA), que também opera na África e, desde 1985, tratou 20 mil vítimas de tortura em todo o mundo. Cerca da metade do financiamento do grupo vem de contratos com o governo americano.
Sua abordagem envolve intensa terapia falada, especificamente criada para sobreviventes de tortura, usando aconselhamento em grupo, psicoterapia individual ou ambos.
O grupo treina terapeutas locais nos países anfitriões para que assumam todo o tratamento. O trabalho exige muita habilidade. Pesquisas mostram que terapeutas treinados podem ajudar os sobreviventes de tortura, mas que tentativas ineptas de tratá-los podem ser contraproducentes. Entrevistas feitas no último outono -pela primeira vez, um jornalista teve acesso a pacientes e terapeutas do centro em Amã - forneceram visão sombria dos abusos generalizados que ocorreram no Iraque ainda em 2010, e suas consequências esmagadoras para indivíduos e famílias.
Cerca de 400 iraquianos que disseram ter sofrido tortura foram tratados no centro. Os torturadores, segundo os pacientes, incluíam o Exército iraquiano, as forças americanas, os carrascos de Saddam Hussein, a Al Qaeda no Iraque e grupos sectários, bandos e milícias que continuam aterrorizando partes do Iraque.
A brutalidade descrita -"a extrema violência e a intensidade de frequência dos episódios, as camadas de experiência traumática que eles podem ter, por causa da história de seu país"- chocou até Joséphine Anthoine-Milhomme, uma psicóloga francesa que tratou vítimas de guerra e desastres na Ásia, África e América Central.
"A tortura era como um gênio libertado da garrafa, usada para qualquer fim, não apenas para obter informação, mas para enviar uma mensagem à comunidade", disse Darrin Waller, ex-diretor do centro para operações na Jordânia, que montou a filial em Amã.
A psicoterapia pode ajudar, mas não pode desfazer os danos. As pessoas acham que mudaram para sempre. Os abusos, especialmente estupro e outras violações sexuais, provocam amargura e ódio duradouros. Alguns iraquianos dizem que preferiam morrer a admitir que foram estuprados.
"Isso não será esquecido por uma geração", disse Waller, que, hoje, trabalha para o Conselho Britânico como diretor de um programa educacional em Bagdá. "Tornará o processo de reconciliação tremendamente difícil."

Sonhos com o filho roubado
Zahra Farhan, 72, com um rosto emaciado e olhos tristes e espantados, estava sentada na sala de um apartamento, ao lado de uma mesa com a foto emoldurada de seu filho Nather. Em 2006, quando ele tinha 38 anos, ele e outro filho dela foram sequestrados de sua casa em Bagdá pelo Exército do Mahdi, a milícia xiita leal ao religioso Moktada al Sadr; a senhora Farhan disse que foram levados porque eram sunitas. Um filho se arrastou de volta para casa quatro dias depois, coberto de hematomas e com um ombro quebrado. Ele teve a vida poupada, segundo a família, para levar uma mensagem para outros sunitas da região: vão embora.
Nather nunca voltou. Amigos encontraram seu corpo na rua. Eles o lavaram, fotografaram e mostraram as imagens a Farhan para que ela soubesse que ele estava morto. Ele foi torturado e alvejado, ela disse, chorando. Faixas de sua pele tinham sido removidas, seus dentes arrancados.
A família deixou o Iraque em 2006. Ela contou que fica acordada à noite e tem pesadelos quando dorme. Ou sonha com Nather.
"Como poderia não pensar nele?", chora. Mas recusou ofertas de tratamento do Centro para Vítimas de Tortura. Tem dificuldade para andar e achou que a viagem até o centro seria difícil demais. Seu marido morreu há muito tempo, e ela criou os filhos sozinha, presenciou a formação no colégio e o casamento.
"Eu os criei com as lágrimas dos meus olhos, e veja como esses demônios vieram e os levaram", ela disse. "Eles, simplesmente, desapareceram, da noite para o dia."

Tormento incessante
Um homem de 37 anos que pediu para ser identificado apenas como R. disse que, em 2009, foi sequestrado em uma rua de Mosul - vendado, algemado e atirado no porta-malas de um carro por homens que ele pensou que fossem membros da Al Qaeda no Iraque.
Falando por meio de um tradutor, disse que foi levado porque o marido da irmã trabalhava como intérprete para as forças americanas; o marido tinha recebido asilo nos EUA. Ele foi mantido em um pequeno quarto lotado de prisioneiros, incluindo uma mulher, Mariam, cujo marido também era um intérprete para os americanos. Ela foi torturada na frente dos prisioneiros. Os captores a espancaram, atiraram água e sal sobre ela e a amarraram a barras de metal que eram presas à parede e eletrificadas com um gerador.
"Eles a violentaram mais de uma vez na nossa frente. Era, provavelmente, cristã", disse R., olhando para baixo enquanto falava. "Ela morreu três dias depois de violentada. Havia quatro homens que violentaram quatro de nós. Eles pediram informações sobre o marido de minha irmã."
Quando R. disse que não tinha informações, os captores o torturaram com choques elétricos, usando o mesmo aparato que haviam utilizado em Mariam.
Durante a entrevista, R. se levantou, virou-se e baixou um pouco a camisa para revelar um calombo do tamanho de um punho entre seus ombros - resultado, segundo ele, de ter as mãos amarradas às costas, ser atirado para cima e, por fim, pendurado em uma barra na parede.
Quase um mês depois da prisão de R., as forças americanas atacaram o prédio onde ele estava detido. Em meio a um combate intenso, os prisioneiros descobriram que a porta havia ficado aberta. Alguns deles, incluindo R., decidiram fugir. Ele escapou e, então, fugiu para a Jordânia com sua mulher e as filhas. "Fui destruído", ele disse. Ele sentiu-se isolado de todos a seu redor, até de sua família. Parou de se barbear, cortar o cabelo e fica sentado em casa em uma nuvem de desespero.
"Fui torturado e estuprado mais de uma vez", R. contou. "Parece que falta alguma coisa em mim. Não me misturo com as pessoas."
Sua mulher não sabe dos detalhes da tortura ou que ele foi violentado. Somente os terapeutas sabem, ele diz. Mesmo com esses, R., inicialmente, deu apenas sugestões. "Sinto vergonha", disse.
O tratamento durou bem mais de um ano, muito mais que o habitual. Mas ele disse que ainda está deprimido e frustrado.

Entre céu e inferno
Jamal, um agricultor de 43 anos de Fallujah, disse que foi preso por forças americanas em dezembro de 2003 na casa em que vivia com sua mulher e três filhos, um deles deficiente. Ele foi preso, segundo lhe disseram, pois os soldados acharam que havia um franco-atirador disparando de sua casa, e levado sem sapatos, uma grande humilhação para um árabe.
Jamal tem uma cópia de um documento em inglês e árabe que registra sua prisão. Era um cartão de "verificação de detenção das Forças Multinacionais MNF-1" com seu nome e um número de registro. Ele disse que foi detido de 15 de dezembro de 2003 até 1° de maio de 2005.
Na primeira semana, disse que foi mantido de pé em uma tenda com um capuz sobre a cabeça, e os soldados que o guardavam tinham ordens para deixá-lo sentar-se durante cinco minutos por hora. O capuz só era removido quando o alimentavam. Mas ele disse que dois soldados foram bons, dando-lhe água e deixando-o sentar-se quando o oficial encarregado não estava por perto.
Por três vezes, ele foi levado a um oficial para ser interrogado. Os interrogadores tiraram suas roupas a fim de procurar tatuagens. No segundo interrogatório, ele disse, o oficial o golpeou várias vezes nos órgãos genitais com um taco de beisebol. No terceiro interrogatório, o oficial usou "bastão elétrico" nos braços e nas pernas.
Depois de sete dias, ele foi transferido para outro acampamento militar onde só tinha permissão para usar o banheiro duas vezes por dia, sempre acompanhado por soldados. Depois de deixá-lo no banheiro por um minuto, atiravam pedras na porta ou invadiam.
Dois homens e uma mulher o interrogaram. Seus pulsos foram amarrados e presos à parede acima de sua cabeça. Ele foi deixado nessa posição a noite inteira em um corredor e era periodicamente espancado. No dia seguinte, ele disse, a mulher interrogadora gritou com ele e o golpeou. Ela se sentou sobre uma mesa perto de sua cadeira e pousou as pernas nele para que sua cabeça ficasse entre suas coxas, perto da virilha. Ela usava calças e o ofendeu em árabe. Jamal disse que ela sabia que estava fazendo as coisas mais humilhantes possíveis para ele como homem árabe.
Depois do quarto dia, ele foi levado à prisão de Abu Ghraib. Apesar dos abusos amplamente divulgados nessa época, Jamal disse que recebeu melhor tratamento do que nos acampamentos anteriores. Mas era inverno, e a prisão estava lotada e enlameada. Havia duas refeições por dia: pão e queijo e, depois, arroz e sopa. Ele tinha frio e tanta fome que comia pasta de dentes e pedaços de jornal. Então, ele e outros prisioneiros foram removidos para a prisão de Buqa. Em abril de 2005, foi levado a Ramadi e libertado.
Jamal e sua família vieram para a Jordânia em 2008. Foi como mudar-se do inferno para o céu, ele disse, mas ainda tem pesadelos vívidos da prisão. A terapia no Centro para Vítimas de Tortura ajudou, segundo ele.
Como Jamal não quis que seu nome completo fosse revelado, o Departamento da Defesa dos EUA não pôde comentar sobre suas alegações. Mas uma porta-voz, a tenente-coronel Tanya J. Bradsher, disse por e-mail: "Era e continua sendo contra a lei e a política do Departamento da Defesa maltratar detidos, não importa onde eles sejam mantidos".
Jamal recebe dinheiro da ONU para ajudar a sustentar sua família. No último outono, seu filho foi levado de avião a Boston para uma cirurgia de espinha bífida. Ele espera se mudar para os EUA, mas suas solicitações foram negadas até agora.

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