

São Paulo, sexta-feira, 13 de maio de 2011
A pobreza e a cor da pobreza
LUIZA BAIRROS
Em "Leite Derramado", mais recente romance de Chico Buarque, há um personagem que, ao se referir com ironia ao radicalismo de seu avô abolicionista, afirma que ele "queria mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África".
Nessa visão, abolicionismo radical equivalia a se livrar dos negros. De todo modo, após 1888, as elites brasileiras irão se comportar como se os libertos, que as serviram por quase quatro séculos, não estivessem mais aqui. Mas estavam, e por sua própria conta.
No início do século 20, eram frequentes os prognósticos sobre o desaparecimento da população negra, que supostamente não sobreviveria ao século.
Ao mesmo tempo em que se criticavam as soluções de laboratório defendidas pelo ideário eugenista, em voga aqui e em muitos países, também se apostava no embranquecimento via miscigenação.
Mais tarde, ao se debruçar sobre os resultados do Censo de 1940, Guerreiro Ramos considerou "patológico" o desequilíbrio nas respostas ao quesito cor, tendentes, em sua esmagadora maioria, a sobrevalorizar a cor branca.
Na contramão dessa tendência, os dados censitários de 2010, há pouco divulgados, confirmam o que já se delineava no Censo de 2001: iniciativas de valorização da identidade, com origem nos movimentos negros e hoje em processo de institucionalização, asseguraram a maioria negra em uma população que ultrapassa 190 milhões de brasileiros.
Nesse longo percurso de afirmação, as mudanças não se limitaram a uma percepção de si mais positiva, exclusiva dos afro-brasileiros.
A consciência negra avançou em conexão íntima com a consciência social como um todo. Não se trata, portanto, da mera substituição de um segmento populacional dominante por outro, mas do reconhecimento de que os valores do pluralismo ajudam em muito a consolidar nosso processo democrático.
Contudo, ainda persistem dificuldades a serem enfrentadas.
Hoje, temos uma sólida base de dados, que mostra reiteradamente que mulheres e homens negros estão entre os brasileiros mais vulneráveis, numa proporção muito maior do que sua presença relativa na população total.
Por isso, a priorização da erradicação da pobreza extrema pelo governo da presidenta Dilma abre possibilidades inéditas de abordar rica e diversificada experiência humana, que ainda precisa ser considerada em toda a sua amplitude.
O sucesso das iniciativas de combate à pobreza extrema requer a reversão de imagens negativas, a superação de práticas discriminatórias e o redimensionamento dos valores de cultura e civilização que, afinal, contra todas as expectativas, garantiram a continuidade dos descendentes de africanos no país.
Quando o assunto é superação da pobreza extrema, é justo supor que os negros tenham algo a dizer.
Segmentos empobrecidos de outros grupos raciais também o terão, é certo. Mas os negros têm a oferecer suas estratégias de resistência ao racismo, que, desde o período colonial, interpôs obstáculos ideológicos e culturais à afirmação plena de sua humanidade -a base das desigualdades de renda e de oportunidades que ainda vivenciam.
Assim, no atendimento a direitos básicos que articulam renda, acesso a serviços e inclusão produtiva, é preciso tornar visíveis e valorizar dimensões da pessoa e do universo afro-brasileiro que desempenham papel decisivo na conquista da autonomia. Todos somos humanos, e a resistência aos processos desumanizadores do racismo é, de longe, a maior contribuição dos negros à cultura brasileira.
LUIZA BAIRROS é ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
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São Paulo, terça-feira, 19 de abril de 2011
É o racismo, estúpidos!
JOSÉ VICENTE
Dez anos depois da primeira Conferência Mundial contra o Racismo e a Xenofobia de Durban, África do Sul, as mazelas e os perigos do racismo acenderam a luz vermelha e a ONU, instituindo 2011 como o Ano Internacional dos Afrodescendentes, volta a conclamar a comunidade de nações a se debruçar sobre os equívocos e a ineficiência das políticas antirracistas, por conta do recrudescimento dos níveis de racismo e discriminação racial contra os negros no mundo.
Recentes bananas oferecidas aos jogadores brasileiros Neymar e Roberto Carlos, as agressões verbais, os sons imitativos de macacos e as vaias das torcidas nas praças esportivas contra jogadores negros dão a dimensão da gravidade da situação, obrigando a Fifa e órgãos ligados ao esporte a tomar medidas severas para prevenção, punição e combate ao racismo, dentro e fora dos gramados.
Surrealismo, ambiguidade, hipocrisia, cinismo, desfaçatez, indiferença e tantos outros adjetivos jorram na literatura quando se analisa a tão vilipendiada trajetória do negro no Brasil. Todos apontam o racismo e ninguém consegue encontrar um racista. Junta-se a eles, a partir de agora, a estupidez.
Estúpido, este foi o adjetivo com que o líder do governo na Câmara, Cândido Vaccarezza (PT/SP), definiu seu colega Jair Bolsonaro (PP/ RJ), por ocasião de suas maldades racistas e preconceituosas contra a cantora negra Preta Gil e os homossexuais em geral por meio de veículos de comunicação de massa.
O adjetivo em questão, seguramente, pode ser estendido a seus colegas congressistas Jaime Campos (DEM/ MT), que se referiu ao ministro negro do STF, Joaquim Barbosa, como "moreno escuro", por ter esquecido seu nome, Marcos Feliciano (PSC/SP), que responsabilizou a África e os negros africanos por todos os males do mundo, e ao senador Demóstenes Torres (DEM/GO), que, no plenário do STF, disse que a mulher negra gostava de ser seviciada pelo senhor.
Como inocentes úteis, tais nada inocentes parlamentares, protegidos pela impunidade, destilam em praça pública os venenos que reservavam para ambientes privados.
Flertando com os veículos de comunicação, são a fina e rejuvenescida flor daquela corrente que faz um mau uso do direito de expressão para fins pessoais inconfessáveis, colocando o mandato popular a fomentar, voluntária ou involuntariamente, mas de modo igualmente irresponsável, o ódio racial.
Como a resultante dos estúpidos é a estupidez, a retórica dissimulada em ideia livre e democrática é, na verdade, a correia de transmissão para os também estúpidos integrantes das gangues organizadas que, em São Paulo, no ambiente cibernético e à luz do dia, pregam e praticam a perseguição, a agressão e a eliminação de negros, de judeus e de homossexuais.
É o combustível que encoraja os estúpidos das forças policiais, que, na Bahia, conforme noticiou esta Folha, dizimam a juventude negra brasileira. É o estímulo final aos seguranças de shopping centers e supermercados de grife, que vigiam os negros nas passarelas e batem em sua caras nas salas de segurança e em estacionamentos.
O racismo é perigosamente destrutivo e sutilmente enganador. Ele tateia sutilmente pelas frestas e se mistura sinuosamente como naturalidade cotidiana; tanto quanto repudiá-lo, é indispensável combatê-lo sem trégua e sem piedade.
Sem diminuí-lo e sem ignorá-lo. A ONU e a Fifa estão corretas, assim como o deputado Vaccarezza. É o racismo, estúpidos!
JOSÉ VICENTE, advogado, mestre em administração e doutorando em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, é reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares.
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