sexta-feira, 15 de julho de 2011

Pelo que lutam os estudantes chilenos




O que os estudantes chilenos tem a dizer aos estudantes brasileiros?


Por Saul Leblon

A educação transformou-se na porta de entrada de um acerto de contas da sociedade chilena com décadas de ditadura e renúncia do interesse público em favor do lucro privado. A lógica que o regime militar introduziu em todas as esferas da vida social, segundo a qual o mercado estrutura, administra e financia a produção e os serviços de forma mais ágil e eficiente que o Estado não foi afrontada, de fato, em muitos aspectos, pelos governos que ocuparam o La Moneda após a redemocratização.
À frente do que fariam Thatcher e Reagan anos depois, o regime militar chileno extrapolou a lógica mercadista para todos os setores da vida social. Na educação, encarada quase como um reduto de segurança nacional, agiram com redobrado afinco. Uma das últimas leis promulgadas em 1990 pelo regime que derrubou Salvador Allende tratava da consolidação desse experimento que mudou a face da escola e da juventude. Ainda no governo Bachelet, os estudantes começaram timidamente a contestar o fio condutor silencioso dessa interligação entre o passado e o presente. Assumiram o incomodo papel do futuro a reclamar seu espaço na calcificada rotina chilena. De início foram negligenciados –‘’os pinguins”. Meses de mobilizações, conflitos e enfrentamentos depuraram a visão das coisas e sedimentaram para a opinião pública, e para eles mesmos, o que está em jogo.

O que está em jogo no Chile interessa também à sociedade brasileira e aos estudantes reunidos agora no 52º Congresso da UNE. A juventude chilena exige que o interesse público volte a ordenar as prioridades e a destinação dos recursos disponíveis na economia em benefício de toda a sociedade. A educação é o ponto de partida e o de chegada pelos seus desdobramentos econômicos, políticos e sociais. No Chile praticamente não existe universidade pública. No ensino fundamental e no básico predomina um agressivo processo de privatização mascarado em livre escolha. Mais de 50% das matrículas se concentram em escolas particulares que recebem subsídio federal e cobram mensalidades. O sistema foi fatiado e entregue à ordenação pelas forças de mercado. A título de promover a qualidade, incentivou-se a concorrência entre escolas públicas e privadas no âmbito municipal. Sem apoio oficial ao sistema público, as privadas avançaram e hoje representam 42% da rede local.

Currículos são decididos de forma fracionada e à margem do debate democrático: se o projeto de país passou a ser comandado pelos mercados, por que seria diferente com o conteúdo da educação? Os estudante chilenos querem uma mudança substantiva nesse modelo. E começam pelo principal: orçamento público para custear todo o sistema educativo, ou seja, restituir ao Estado a formação das novas gerações, sem concessões ao lucro privado e aos interesses particularistas leigos ou religiosos.
Os estudantes chilenos querem refundar a escola republicana no país
para refundar a própria democracia esclerosada pela lavagem da mais sanguinária ditadura da história latinoamericana. Moços e moças lutam nas ruas para trazer 1789 ao Chile de 2011. Para isso é preciso por fim do fracionamento de mercado dos currículos; fim aos subsídios à indústria privada de ensino.

É difícil não ver pontos de interligação entre o sistema contestado pela juventude chilena e certos aspectos da agenda educacional brasileira. Dois elos avultam imediatamente: a) a expansão do subsídio público às empresas privadas de ensino superior –de qualidade discutível-- através do Prouni; b)e o orçamento público insuficiente destinado ao sistema educacional. O Brasil investe atualmente 5% do PIB em educação. Gasta quase 7% do PIB pagando juros aos rentistas da dívida interna. Mais de 45% da população brasileira encontra-se atualmente em idade escolar e tem que se acomodar aos estreitos limites desse orçamento.

De outro lado, o grosso dos juros da dívida pública beneficia, segundo cálculos do IPEA, apenas 20 mil plutocracias. A previsão oficial é de que somente em uma década se possa chegar a 7% do PIB em recursos para a escola pública brasileira.
.....

Pelo que lutam os estudantes chilenos


João Peres - Rede Brasil Atual

São dias pouco agradáveis para o presidente do Chile, Sebastián Piñera. Além de ter sido obrigado a anunciar medidas para tentar frear os movimentos, ele enfrentou segunda-feira (11), protestos dos trabalhadores do setor mineral, principal atividade econômica nacional. Os operários querem garantias de que não haverá privatização da Codelco, a estatal do cobre. O momento coloca em xeque a visão de um “Chile-maravilha, comprada por parte da sociedade brasileira e dos países ricos. Os estudantes querem colocar a nu um sistema educacional que consideram desigual e excludente.

“O crescimento do mercado de educação superior fez com que aparecessem muitas diferenças entre os estudantes e entre as instituições”, afirma Germain Dantas, presidente da Federação de Estudantes da Universidade Federico Santa Maria, uma instituição privada de Valparaíso, e integrante da Confederação de Estudantes do Chile. “Há um uso maciço de recursos que não assegura a qualidade.” Ele refere-se ao sistema adotado durante a ditadura de Augusto Pinochet (que governou de 1973 a 1990). No início da década de 1980, o governo decidiu promover a abertura ao modelo privado de educação. A visão era de que a criação de uma rede particular forte provocaria uma melhoria das escolas públicas. A lógica era simples: receberiam mais financiamento as unidades que conseguissem atrair mais estudantes, supondo-se que uma quantidade maior seria a consequência de um ensino de mais qualidade.

Os alunos passaram a escolher. Se quisessem seguir em uma escola pública, poderiam. Se quisessem migrar ao ensino privado, receberiam uma espécie de vale-educação, ou seja, a escola é subsidiada por cada estudante que recebe. “Em vez de funcionar como um instrumento para acabar com a desigualdade, a educação se transformou em um elemento para reproduzi-la”, lamenta Jaime Gajardo, presidente do Colégio de Professores do Chile, entidade que reúne 100 mil docentes de todos os níveis educacionais. No sistema universitário, a situação se complicou ainda mais. Tanto nas instituições públicas quanto privadas é preciso pagar matrículas e mensalidades. Os juros fazem com que as dívidas, que inicialmente vão do equivalente a R$ 10 mil a R$ 15 mil, atinjam valores quatro ou cinco vezes maiores. Até esta semana, mesmo quem perdia o emprego deveria seguir pagando o crédito educacional.

Herança
Esta é uma das questões centrais: a Concertação, aliança de partidos que governou o Chile da redemocratização até o ano passado, não fez esforços para reformar o sistema. Pelo contrário, criou medidas na tentativa de aperfeiçoá-lo, acreditando que juros um pouco mais baixos ou um número maior de bolsas resolveriam a questão. “Hoje em dia estamos vendo as consequências disso. Você reforma algumas coisas, mas não muda o substancial. Ao não mudar o substancial, os problemas remanescentes explodem, afloram inevitavelmente”, diz Gajardo.

A conta que hoje se cobra foi apresentada pela primeira vez em 2006, quando centenas de milhares de estudantes secundaristas foram às ruas, na chamada Revolta dos Pinguins. O que se queria era o fim da municipalização do ensino, o fim do lucro nos colégios privados, a gratuidade da prova de seleção universitária e a anulação da lei do período Pinochet, que criava as várias categorias de escolas. A presidenta Michelle Bachelet aceitou convocar uma comissão que, no fim das contas, não deu espaço às reivindicações centrais dos jovens.

O movimento volta agora e, segundo lideranças da mobilização, vê com total descrédito uma solução negociada entre Executivo e Legislativo. “Isso não terá solução na política tradicional. Estamos reivindicando uma série de saídas que não estão previstas na política tradicional, como o plebiscito, que são medidas mais democráticas e que incluem a sociedade”, avisa o estudante Dantas.

Pagando o pato
Piñera havia avisado que este seria o ano da educação. Os estudantes foram às ruas reforçar a mensagem. Cientes de que o caminho do presidente era o de incentivo ao atual modelo, acharam melhor deixar claro que acreditam na ruptura e na formulação de um novo sistema. Quis a soma de fatores que o cansaço se tornasse público e vasto durante o governo conservador. Em uma demonstração de pouca habilidade política, o ministro da Educação, Joaquín Lavín, determinou, pouco antes da segunda jornada de protestos por todo o país, que as escolas tomadas por estudantes antecipassem as férias de meio de ano. Ele próprio admitia que eram 206 unidades apenas na região metropolitana de Santiago.

“O ano escolar significa um certo número de horas de classes que devem ser respeitadas. Está em jogo também o subsídio que têm de receber os colégios e seus mantenedores”, ameaçava, indicando também que os estudantes teriam aulas até janeiro para repor o atraso caso não respeitassem a medida. A resposta foi simples. Dois dias depois, o Chile assistiu à sua maior manifestação em quase três décadas. Em um protesto bem humorado, os alunos sugeriram que Lavín tomasse “o caminho da praia”, uma alusão a um pedido de demissão. Secundaristas e universitários consideram que o ministro não tem mais condições de negociar uma solução para a crise. “É uma jogada política extremamente maquiavélica. Não resolve. É má política. (Nós) nos opomos a isso, assim como os estudantes secundários, afetados por essa medida, recusaram cumpri-la e seguem mobilizados”, afirma Dantas.

Piñera assumiu a negociação em pronunciamento em cadeia de rádio e TV na última semana. Anunciou um pacote de medidas no valor de US$ 4 bilhões (R$ 6,3 bilhões) para tentar encontrar uma solução. Prometeu aumentar o número de bolsas aos mais pobres e reduzir os juros de financiamento das universidades. Não se comprometeu, no entanto, com as causas centrais: o fim da municipalização, ou seja, dar um novo caminho ao ensino em 40% das escolas do país; acabar com o sistema que dá ao país uma formação desigual e voltada exclusivamente ao mercado, deixando de lado a formação cidadã; e a estatização do ensino universitário. Como Bachelet em 2006, Piñera corre o risco de ver o movimento crescer.

“Há diferentes visões de como deve ser a educação. Há que se abrir a todas essas visões, e que se realize um plebiscito para definir qual a visão que vai prevalecer. Não pode seguir o que se vê hoje em dia, que é um governo que quer impor sua visão a todo o resto da sociedade”, pondera Gajardo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário