O Estado de São Paulo, 10 de julho de 2011
Varejo no atacado
Carlos Lessa
Nas últimas semanas, a fusão do grupo Pão de Açúcar com o grupo Carrefour para a criação do Novo Pão de Açúcar abriu um debate que percorreu a dimensão ética, jurídica, de interesse privado e dos interesses nacionais. Praticamente todos os articulistas da mídia impressa, televisiva e radiofônica colocaram em pauta a questão (corretamente, pois o BNDES, banco histórico do desenvolvimento industrial brasileiro, estava se propondo a aplicar mais de US$ 2 bilhões em uma operação global de quase US$ 3 bilhões!).
Pelo lado ético, foram feitos reparos a diversos protagonistas públicos e privados envolvidos na operação. Pelo ângulo jurídico, a redução do peso do grupo francês Casino em um Novo Pão de Açúcar tem as características de um divórcio parcial do empresário brasileiro e sua nova parceria com outro grupo francês, o Carrefour. Tem ou não um valor impeditivo para a operação pretendida (a existência de um acordo de acionistas entre o Pão de Açúcar e o Casino)? Neste momento, tudo leva a crer que a operação é juridicamente contestável e, levada aos tribunais, seria extremamente nociva para os parceiros atuais e os novos (Carrefour e BNDES). Isso, aparentemente, não foi levado em conta pelo BNDES, que não apenas avançou num comprometimento prévio com Abilio Diniz como lhe pôs nas mãos o poderoso argumento de R$ 3,7 bilhões.
Hoje, 7 de junho, li em jornal de grande circulação que o dr. Abilio declarou: "Fiz um trabalho extenuante". Costurar esse trabalho que foi feito não é fácil e entendo por quê; afinal, não é todos os dias que um empresário pode dizer a outros: tenho a chave para um suprimento financeiro superior a US$ 2 bilhões. Luciano Coutinho, atual presidente do BNDES, declarou antes da controvérsia que o BNDES somente faria a operação se houvesse acordo do grupo Casino. O negócio não foi desmanchado, por isso o dr. Abilio, com a chave do BNDES, desafia o grupo Casino a demonstrar que a fusão não é uma boa ideia. Obviamente, a fusão é magnífica para o interesse privado do dr. Abilio, que, em entrevista, declara que quer "continuar levando a companhia que tem o DNA dele". Porém, isso não o impediu de, há alguns anos, assinar com o grupo Casino o direito de, em 2012, trocar, por R$ 1, a possibilidade de o grupo Casino consolidar os resultados do grupo Pão de Açúcar, diluindo o seu DNA. Quando assinou o acordo, era pré-datada a diluição do DNA brasileiro. É transparente a vantagem da operação pretendida para dr. Abilio. É inteiramente obscuro o interesse da sociedade brasileira nessa fusão que daria origem a um trio (dois franceses e um brasileiro).
É importante advertir a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, que o BNDESPar é o braço do BNDES em operações no mercado de capitais e que é uma subsidiária 100% de propriedade do banco oficial. Este, como a ministra deve saber, é 100% do Tesouro. Assim sendo, são recursos públicos que, pela missão do BNDES, devem ser aplicados em projetos que gerem emprego e renda para os brasileiros.
Fusões podem ser meritórias, porém essa operação do Pão de Açúcar não nacionaliza o grupo de varejo, apenas aumenta o poder de arbítrio do dr. Abilio, restaurando seu DNA. Não é uma operação geradora de crescimento da economia. E, ao contrário do que declarou o ministro do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio, Fernando Pimentel, não gerará saldo comercial positivo. O ministro declarou que o grupo Carrefour iria, associado ao Pão de Açúcar, "ampliar exportações brasileiras" (?!). O atual Pão de Açúcar é uma rede varejista que importa muito mais do que exporta, gerando um saldo comercial negativo. O grupo Carrefour já participa da rede brasileira de varejo e não é exportador líquido para o varejo mundial; a entrada do Carrefour não ampliará a rede de varejo. O que amplia o varejo é a multiplicação de emprego e renda no interior da economia brasileira.
Alguém afirmou que a aplicação do BNDESPar em papéis do Pão de Açúcar é um ótimo negócio para o BNDES. A elevação de valor patrimonial passa por um aumento futuro de lucratividade do cogitado NPA - Novo Pão de Açúcar. Isso pode ser obtido por redução dos custos operacionais (inclusive massa de salários) ou pelo aumento da margem comercial na compra e venda das mercadorias que distribui como rede varejista. Cabe ao Cade julgar se essa concentração do varejo vai baratear o custo de vida ou a lucratividade maior será um jogo perverso em relação às famílias brasileiras. De qualquer forma, o BNDES não é vocacionado a maximizar seu lucro (não é um banco de investimento); é um banco de desenvolvimento cuja primeira função é ampliar o emprego e a renda dos brasileiros. Tenho a preocupação de que se produza um desgaste na imagem do BNDES, o que seria um subproduto perverso da cogitada operação.
O dr. Abilio diz que foram encomendados "estudos" a três consultorias para avaliar a operação. É óbvia a vantagem patrimonial privada de dispor de mais de US$ 2 bilhões de recursos públicos. As três consultorias devem estar construindo "argumentos" para seduzir o grupo Casino; outras deveriam mostrar "vantagens" para a sociedade brasileira.
CARLOS LESSA É ECONOMISTA. FOI PRESIDENTE DO BNDES E É PROFESSOR EMÉRITO DA UFRJ
São Paulo, segunda-feira, 11 de julho de 2011
Riscos sobre o BNDES
CARLOS LESSA
A veiculação da possível troca de bandeira que o grupo Pão de Açúcar faria, substituindo o grupo varejista francês Casino pelo grupo também varejista e também francês Carrefour, gerou perplexidade.
Seria megaoperação, pela qual o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) aplicaria mais de US$ 2 bilhões, permitindo que o grupo Pão de Açúcar se fundisse com a rede Carrefour já existente no Brasil. Ao vazar a informação, surgiram alguns defensores no governo.
A ministra Gleisi Hoffmann disse que a operação seria feita com os fundos do BNDESPar, argumentando que não comprometeria o BNDES, o que foi uma declaração estranha, pois o BNDESPar é uma empresa 100% do BNDES, e este é 100% do Tesouro Nacional.
O ministro Fernando Pimentel, inicialmente, afirmou que a operação interessava ao Brasil, pois "aumentaria a presença brasileira no varejo europeu" (!?). Ao que eu saiba, a associação Pão de Açúcar-Casino não gerou superavit comercial para o Brasil; a rede importa muito mais do que exporta.
Alguém disse que o BNDES iria lucrar muito financeiramente com a operação. O BNDESPar subscreveria um importante lote de ações do Novo Pão de Açúcar, e essas ações iriam se valorizar.
Certamente Abílio Diniz multiplicaria seu patrimônio, mas, para o Brasil, praticamente nenhuma vantagem. O setor varejista já está desnacionalizado. Não haveria ampliação significativa de emprego nem geração de renda para a massa de brasileiros.
Fui presidente do BNDES durante 23 meses, no primeiro mandato do presidente Lula. Assumi logo após um longo período de esvaziamento da proposta de um banco de desenvolvimento para o Brasil.
Na década de 90, o BNDES foi mutilado e convertido no "banco das privatizações", uma função totalmente distinta de sua tarefa histórica de desenvolver as forças produtivas brasileiras para ampliar a capacidade de produção, gerar emprego e renda e fazer avançar o nível tecnológico da economia.
Simultaneamente, fazendo eco ao Consenso de Washington, o BNDES foi preparado para se converter em vulgar banco de investimento. Esse tipo de banco, voltado para o mercado de capitais, é orientado por lucro financeiro, não por desenvolvimento de emprego e renda na economia nacional.
A vitória do presidente Lula interrompeu o processo que levaria o BNDES, inexoravelmente, à sua privatização. Ele me deu carta branca para repor a instituição em seu papel histórico, porque queria o banco como "o agente dos sonhos dos brasileiros", além de refazer seu papel de animador de uma retomada da trajetória nacional de desenvolvimento.
Conheço Luciano Coutinho, atual presidente do banco, e creio que atuou com presteza e visão, defendendo a presença pátria na produção e exportação de proteína branca e de celulose de fibra curta.
Foi estratégico ter o BNDES na Petrobras para o desenvolvimento da economia do petróleo. Não sei o que o conduziu a apoiar o projeto Pão de Açúcar; percebi que, agora, condicionou a presença do BNDESPar à concordância do grupo Casino. Provavelmente haverá uma batalha judicial entre Casino e o projeto de fusão de Carrefour e Pão de Açúcar, o que converteria a fusão em um péssimo negócio financeiro para o BNDESPar.
Com essa operação, mesmo se abortada, haverá desgaste da sua imagem. Para instituições públicas em tempos de neoliberalismo, debito à atual direção do banco ter chamado raios sobre o instrumento financeiro por excelência para o desenvolvimento futuro do país.
CARLOS LESSA é professor emérito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Foi presidente do BNDES (governo Lula).
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