Joaõ Goulart e Leonel Brizola
Memória de Jango
Por Mauro Santayana
Não tive ainda a oportunidade de ler o livro do professor Jorge Ferreira sobre o Presidente João Goulart, mas a simples evocação do grande brasileiro me conduz a algumas lembranças pessoais de um homem solidário com seu povo e que conquistava todos os que o conheciam.
Em 1953, logo depois de nomeado Ministro do Trabalho, Jango visitou Belo Horizonte. Fui encarregado pelo Diário de Minas, onde trabalhava, de acompanhá-lo, em seus contatos oficiais e com os líderes sindicais mineiros. Jango vestia um terno branco, de linho irlandês (S120, para os que ainda se lembram daquele tempo). Em determinado momento alguém lhe fez um pedido, ele não encontrou caneta nem papel em seus bolsos e apelou para o jovem repórter que se encontrava ao lado. Ofereci o que tinha, uma folha de papel e uma caneta Sheaffers, de tinta azul. Por uma dessas imprevisíveis fatalidades, a caneta começou a soltar a tinta, sujando as mãos do Ministro. Jango, em ato contínuo, limpou suas mãos no próprio paletó, até então imaculadamente limpo. Fiquei constrangido, e ele me disse que não me incomodasse – continuaria usando a caneta – e retirou do bolso um lenço, passando a usá-lo para limpar os dedos, a cada vez que escrevia.
Em 1975, estive em Buenos Aires para redigir um livro sobre a Argentina. Visitei o escritório comercial de Jango, instalado no centro da cidade. Conversamos sobre os dois países e a situação política. O presidente se lembrou do nosso exílio em Montevidéu – quando nos vimos algumas poucas vezes – de Belo Horizonte e de minha caneta esbodegada.
– Tu me deves um terno de linho irlandês, lembrou para o meu desconforto, e sorriu. Como eu estivesse em companhia de Wania, minha mulher, cujo sofrimento nos meses que se seguiram ao golpe ele conhecia, bateu-me afetuosamente no ombro, enquanto a olhava, e disse:
Por Mauro Santayana
Não tive ainda a oportunidade de ler o livro do professor Jorge Ferreira sobre o Presidente João Goulart, mas a simples evocação do grande brasileiro me conduz a algumas lembranças pessoais de um homem solidário com seu povo e que conquistava todos os que o conheciam.
Em 1953, logo depois de nomeado Ministro do Trabalho, Jango visitou Belo Horizonte. Fui encarregado pelo Diário de Minas, onde trabalhava, de acompanhá-lo, em seus contatos oficiais e com os líderes sindicais mineiros. Jango vestia um terno branco, de linho irlandês (S120, para os que ainda se lembram daquele tempo). Em determinado momento alguém lhe fez um pedido, ele não encontrou caneta nem papel em seus bolsos e apelou para o jovem repórter que se encontrava ao lado. Ofereci o que tinha, uma folha de papel e uma caneta Sheaffers, de tinta azul. Por uma dessas imprevisíveis fatalidades, a caneta começou a soltar a tinta, sujando as mãos do Ministro. Jango, em ato contínuo, limpou suas mãos no próprio paletó, até então imaculadamente limpo. Fiquei constrangido, e ele me disse que não me incomodasse – continuaria usando a caneta – e retirou do bolso um lenço, passando a usá-lo para limpar os dedos, a cada vez que escrevia.
Em 1975, estive em Buenos Aires para redigir um livro sobre a Argentina. Visitei o escritório comercial de Jango, instalado no centro da cidade. Conversamos sobre os dois países e a situação política. O presidente se lembrou do nosso exílio em Montevidéu – quando nos vimos algumas poucas vezes – de Belo Horizonte e de minha caneta esbodegada.
– Tu me deves um terno de linho irlandês, lembrou para o meu desconforto, e sorriu. Como eu estivesse em companhia de Wania, minha mulher, cujo sofrimento nos meses que se seguiram ao golpe ele conhecia, bateu-me afetuosamente no ombro, enquanto a olhava, e disse:
– Se os militares te fazem a vida impossível, vem com tua família. Na estância haverá um lugar para todos, e não faltará uma ovelha para carnear.
Foi a última vez que o vi. Fiquei preocupado porque ele mantinha sempre à mão comprimidos de trinitrina: sofria de cardiopatia, e o remédio, poderoso, serviria para, em caso de urgência, dilatar os vasos até o socorro médico. No ano seguinte, em dezembro de 1976, quatro meses depois de Juscelino, Jango morreria no exílio. Cinco meses mais tarde, em maio de 1977, seria a vez de Lacerda. Tancredo duvidava daquela coincidência: em menos de um ano, os três morreriam, a seu ver, de forma estranha. Segundo informações posteriores, um agente, a serviço da Operação Condor, teria trocado o vasodilatador por outra droga, o que o teria matado em sua estância argentina.
Jango não escolhera seu destino. Filho de rico estancieiro, ao aproximar-se de Vargas, comoveu-se com a vida austera e discreta do ex-presidente, confinado em sua fazenda do sul. Não era um intelectual, como Lacerda, nem um visionário, como foi Juscelino, com os quais tentou a famosa Frente Ampla contra a ditadura. Aprendera, com Getúlio, a respeitar os trabalhadores e dava real importância às organizações sindicais, como contraponto às sólidas e poderosas instituições patronais.
Em 1954, ao cobrir os fatos que se seguiram à morte de Vargas, vi quando Jango – que morava em um hotel de Copacabana – chegou ao Catete, tirou do bolso um documento e leu em silêncio, o rosto tenso. Provavelmente se tratava de cópia da carta-testamento que Getúlio lhe entregara antes de terminar a reunião ministerial, da noite anterior, com a observação de que se tratava de um assunto a ser resolvido no dia seguinte – como se soube depois. Essa foto ilustrou, se não me falha a memória, a matéria que redigi sobre os fatos, e foi publicada na edição de 26 de agosto do Diário de Minas.
Ele estava desolado, como o filho que perde o pai, o viajante que perde o caminho. Mas, no dia seguinte, logo depois do sepultamento de Getúlio, em São Borja, reuniu-se a Oswaldo Aranha e a Tancredo Neves. Os três avaliaram a situação e concluíram que era necessário colocar nas ruas uma candidatura presidencial, a fim de coibir o golpe antinacional que estava em marcha, sob o governo frouxo e cooptado de Café Filho. Ali se decidiu que a candidatura de Juscelino – um dos favoritos de Vargas – fosse lançada em seguida.
Jango tinha uma visão de Estado que continua válida até hoje. Se ele houvesse conseguido realizar as reformas de base – principalmente a agrária e a bancária – o Brasil teria chegado a seu futuro mais cedo. Os trabalhadores do campo escapariam das brutais condições impostas pelo latifúndio, aumentaria a produção de alimentos e, como ocorreu em outros países, seria ampliado o mercado interno para a indústria nacional. A reforma bancária colocaria ordem no sistema financeiro – providência a cada dia mais necessária, aqui e em todas as partes. O golpe de 1964 atrasou o processo de construção nacional, que só foi retomado com Itamar, para em seguida frustrar-se durante oito anos, e ser retomado por Lula, com sua política social que libertou milhões de brasileiros da miséria.
Jango, estancieiro rico, que chegara à política pela solidariedade pessoal para com Vargas, tornou-se, pelos seus atos, corajosos e patrióticos, um homem de seu povo.
Foi a última vez que o vi. Fiquei preocupado porque ele mantinha sempre à mão comprimidos de trinitrina: sofria de cardiopatia, e o remédio, poderoso, serviria para, em caso de urgência, dilatar os vasos até o socorro médico. No ano seguinte, em dezembro de 1976, quatro meses depois de Juscelino, Jango morreria no exílio. Cinco meses mais tarde, em maio de 1977, seria a vez de Lacerda. Tancredo duvidava daquela coincidência: em menos de um ano, os três morreriam, a seu ver, de forma estranha. Segundo informações posteriores, um agente, a serviço da Operação Condor, teria trocado o vasodilatador por outra droga, o que o teria matado em sua estância argentina.
Jango não escolhera seu destino. Filho de rico estancieiro, ao aproximar-se de Vargas, comoveu-se com a vida austera e discreta do ex-presidente, confinado em sua fazenda do sul. Não era um intelectual, como Lacerda, nem um visionário, como foi Juscelino, com os quais tentou a famosa Frente Ampla contra a ditadura. Aprendera, com Getúlio, a respeitar os trabalhadores e dava real importância às organizações sindicais, como contraponto às sólidas e poderosas instituições patronais.
Em 1954, ao cobrir os fatos que se seguiram à morte de Vargas, vi quando Jango – que morava em um hotel de Copacabana – chegou ao Catete, tirou do bolso um documento e leu em silêncio, o rosto tenso. Provavelmente se tratava de cópia da carta-testamento que Getúlio lhe entregara antes de terminar a reunião ministerial, da noite anterior, com a observação de que se tratava de um assunto a ser resolvido no dia seguinte – como se soube depois. Essa foto ilustrou, se não me falha a memória, a matéria que redigi sobre os fatos, e foi publicada na edição de 26 de agosto do Diário de Minas.
Ele estava desolado, como o filho que perde o pai, o viajante que perde o caminho. Mas, no dia seguinte, logo depois do sepultamento de Getúlio, em São Borja, reuniu-se a Oswaldo Aranha e a Tancredo Neves. Os três avaliaram a situação e concluíram que era necessário colocar nas ruas uma candidatura presidencial, a fim de coibir o golpe antinacional que estava em marcha, sob o governo frouxo e cooptado de Café Filho. Ali se decidiu que a candidatura de Juscelino – um dos favoritos de Vargas – fosse lançada em seguida.
Jango tinha uma visão de Estado que continua válida até hoje. Se ele houvesse conseguido realizar as reformas de base – principalmente a agrária e a bancária – o Brasil teria chegado a seu futuro mais cedo. Os trabalhadores do campo escapariam das brutais condições impostas pelo latifúndio, aumentaria a produção de alimentos e, como ocorreu em outros países, seria ampliado o mercado interno para a indústria nacional. A reforma bancária colocaria ordem no sistema financeiro – providência a cada dia mais necessária, aqui e em todas as partes. O golpe de 1964 atrasou o processo de construção nacional, que só foi retomado com Itamar, para em seguida frustrar-se durante oito anos, e ser retomado por Lula, com sua política social que libertou milhões de brasileiros da miséria.
Jango, estancieiro rico, que chegara à política pela solidariedade pessoal para com Vargas, tornou-se, pelos seus atos, corajosos e patrióticos, um homem de seu povo.
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