sábado, 16 de julho de 2011

Idiomas indígenas desaparecendo antes de serem estudados





Idiomas indígenas com poucos ou apenas um falante correm risco de desaparecer antes de serem estudados


Fabíola Ortiz


A frase "Iyã u-aetabïi; kiwi iyã anu", em xipaya, quer dizer: "Estão mortos; todos os meus parentes estão mortos". É com ela que Maria Augusta Xipaya, de 80 anos, costuma contar a saga da cobra grande, uma das histórias do povo xipaya que habita a região do Xingu no Pará. Maria é a única sobrevivente de sua etnia a ter fluência na língua.

Os xipaya somam pouco mais de 500 índios em Altamira (PA). Só quatro deles falam algo do idioma e só Maria é fluente. A idosa é a grande fonte com que a linguista Carmen Lúcia Reis Rodrigues, da Universidade Federal do Pará, conta para fazer o idioma renascer das cinzas.

Após duas décadas de pesquisa e a ajuda de Maria, Carmen já desenvolve o estudo gramatical do xipaya. Considerado por muito tempo extinto, foi redescoberto em 1988, quando a linguista ainda era estagiária do Museu Paraense Emílio Goeldi. Na época, Maria foi encontrada em Altamira, a 900 quilômetros de Belém (PA).

Há hoje cerca de 200 línguas indígenas brasileiras, das quais 45 estão em situação crítica e 81 correm perigo, como o xipaya, porque as novas gerações não aprendem mais o idioma materno. Os dados são da Unesco e do linguista Aryon Rodrigues, um de nossos maiores especialistas no assunto.

- Há pressão para ensinar as crianças indígenas a falar o português e, com isso, a língua indígena deixa de ser falada - diz Aryon.

Fundador do Laboratório de Línguas Indígenas (Lali), da Universidade de Brasília, Aryon Rodrigues realiza pesquisas desde 1945.

- O Brasil é reconhecido como o país de maior diversidade linguística no mundo, mas só agora começamos a tomar consciência - avalia.



Balanço


De metade de nossos idiomas indígenas só se conhecem palavras ou vocabulários, não a gramática. Cerca de 1/3 (60 línguas) é conhecido gramaticalmente, mas há 20% (40) em que não há estudos nem sobre os termos que possuem. Segundo Aryon, há casos em que não se sabe nem a situação atual dos falantes de uma dada língua ameaçada. É o caso do juma, do tronco linguístico tupi-guarani no Amazonas, do qual há só 5 falantes; de Rondônia há o lakondê do tronco nambikwára, com só 1, e o mondé da família linguística tupi, de que não se sabe nem se há falantes. Entre as línguas seriamente em perigo, que só idosos dominam, há o ajuru, wayuru ou wayoró, de Rondônia. Para a Funasa e o Isa (Instituto Socioambiental), falam essa língua só 8 índios que vivem perto do rio Guaporé, sudoeste do Estado.

O kaixána só é falado por Raimundo Avelino, de 78 anos, que vive em Limoeiro (AM), às margens do rio Japurá. A população dos kaixana é de 500 pessoas e a sua língua nativa pertence à família aruák. No entanto, a informação de que só Avelino falava a língua é de 2006, da Funasa. Atualmente, não se sabe se ele está vivo.

Os bares têm só dois falantes na fronteira do Brasil com a Venezuela, assim como os kanoês e os akuntsu, de Rondônia, estado em que o puruborá é falado por duas pessoas. Hoje, a etnia puruborá reúne 60 pessoas nas cidades de Costa Marques e Guajará-Mirim. Contudo, a informação da linguista Ana Vilacy Galucio, do Museu Goeldi, é que ambos são semifalantes (lembram só parte do idioma).

- Todos os povos com até 6 falantes estão em casos terminais em que é impossível reverter o quadro. Estão no seu fim. Quando há uma comunidade com pelo menos 12 ou 15 falantes, é possível reverter a situação - diz Aryon.

O caso da recuperação do xipaya é incomum, pois está para ser dicionarizado por Carmen Lúcia, da UFPA. O xipaya é da família linguística juruna, do tronco tupi, e grande parte desse povo fala o português. Alguns idosos compreendem o xipaya, mas poucos pronunciam suas palavras. Maria é quem guarda as maiores lembranças do idioma. Sua prima Isabel praticamente o esqueceu, e o fala apenas quando estimulada.

Carmen sabe da existência de um falante do xipaya que mora a grande distância do garimpo no Xingu. Há quatro anos, a linguista da UFPA conheceu uma outra índia xipaya que vive numa localidade afastada de Altamira. Mas Odete Xipaya, de 66 anos, tem "vergonha" de falar porque não tem ninguém com quem conversar. Maria Izabel também se envergonha e não quer ser vista conversando em xipaya ao lado da prima.

- Maria e Izabel pouco se encontram e só conversam em xipaya quando não há ninguém por perto. É a vergonha de falar a língua. Elas sofrem preconceito por não só serem índias, mas falarem uma língua diferente - lamenta a linguista.

Picuinha
Ter últimos falantes que não falam entre si foi o motivo da repercussão mundial de dois mexicanos, em abril. Manuel Segovia, 75 anos, e Isidro Velazquez, 69 anos, são os únicos, entre oito remanescentes de sua etnia, que falam com fluência o ayapaneco ou numte oote. Os dois são irmãos. Vivem a menos de 500 metros um do outro, em Ayapa, vilarejo da cidade de Jalpa de Méndez, no estado mexicano de Tabasco. Mas se odeiam, não se visitam, nunca conversam. A língua e seu povo sofreram o genocídio, guerras e doenças. Agora, chega ao ponto de definhar por mera picuinha.

Do mesmo modo, a intimidação cultural pode ser fatal ao xipaya.

- Sei que o xipaya vai desaparecer, e já faz tempo que digo a Maria para que ensine às crianças e aos netos, mas é difícil, ela só fala a língua no seu meio - ressalta a linguista

Resistência
 
Maria Xipaya não foi alfabetizada em português, sabe o básico só para comunicar-se. Filha de pai xipaya e mãe de etnia kuruaya, não se esforçava para falar a própria língua. Mas nos encontros com Carmen a idosa passou a contar histórias e mitos de sua cultura, que seu pai lhe contava quando criança.

- Uma vez Maria me falou que começou a fazer esforço para lembrar de aspectos que eu perguntava nos nossos encontros. E assim foi despertando para a língua. Ela me dizia que à noite estudava para me contar no outro dia. São lembranças do pai, como se ela quisesse ter alguém para falar - relata Carmen.

Segundo a Unesco, 231 línguas foram extintas no mundo desde os anos 50. Dessas, 12 eram do Brasil. O máku desapareceu em Roraima, assim como o múra e o tora, da família linguística txapakúra, no Amazonas. Em 1981, só havia um sobrevivente do krenjê ou krem-ye que sabia falar a língua dos timbiras, perto do rio Guamá, em Paragominas (PA). Para os pesquisadores Henri Ramirez e Kristine Stenzel, apesar de haver 569 indígenas da etnia arapáso no Amazonas (segundo o Dsei - Departamento de Saúde Indígena, 2005), não há informações de falantes do arapáso.

A língua umutina do povo que habita, ao longo do rio Bugres, a região de Barra dos Bugres, a 200 quilômetros de Cuiabá (MT), também desapareceu após a morte, em 2005, do índio Julaparé. Quando sofreu um ataque cardíaco fulminante, ele tinha 80 anos, vinte dos quais na condição solitária de falante do umutina.

Linguistas como Carmen e Aryon sabem que, em casos assim, morrendo os velhos, morre com eles o idioma. O trabalho de transcrição dos fonemas de uma língua é longo e pode ser paralisado pela morte dos pouquíssimos falantes que sobreviveram.

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