sábado, 1 de janeiro de 2011

Meteorito inspirou mito grego

O mortal Faetonte (de manto dourado) dirigindo a carruagem do Sol, 
retratado pelo francês Nicolas Bertin (1667-1736)

São Paulo, sábado, 01 de janeiro de 2011


Meteorito inspirou mito grego, diz grupo

REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR DE CIÊNCIA

Foi um caso de barbeiragem de proporções cósmicas, diz a mitologia. O mortal Faetonte assumiu as rédeas da carruagem do Sol e quase derrubou o astro em cima da pobre Terra. Será que um evento astronômico real poderia ter inspirado a história?
Ao menos para pesquisadores da Alemanha e da Grécia, a resposta é "sim". Em estudo na revista científica "Antiquity", especializada em arqueologia, eles dissecam textos da Antiguidade clássica para tentar demonstrar que um meteorito de verdade está por trás do mito greco-romano de Faetonte.
O casal alemão Barbara e Michael Rappenglück, do Instituto de Estudos Interdisciplinares, coordenou o estudo. Eles são arqueoastrônomos -estudiosos do conhecimento astronômico antigo.

CICATRIZES NA TERRA

Barbara Rappenglück contou à Folha que seu interesse por Faetonte surgiu em 2005, quando estava estudando o chamado impacto de Chiemgau. Nessa região da Baviera (sudeste da Alemanha), o solo está salpicado de aparentes crateras. A maior delas hoje é o lago de Tüttensee, com diâmetro de 600 m e profundidade de 30 m.

http://www.chiemgau-impact.com/images/tuetten/image004.jpg
Lago de Tüttensee
É claro que o simples chão esburacado não é suficiente para comprovar a queda de um meteorito. Os pesquisadores citam outras pistas bem mais reveladoras, típicas de outros impactos.
Quando um bólido celeste despenca, é como se o calor e a energia da pancada "torturassem" as rochas vizinhas, deixando-as com feições características. Algumas derretem e se solidificam rapidamente; outras são vitrificadas (viram vidro); e surgem até minúsculos diamantes no sedimento. Todos esses detalhes estão presentes em Chiemgau, fortalecendo a hipótese do impacto.
"Muitos autores, nas últimas décadas, estavam associando o mito de Faetonte com a queda de um meteorito ou de fragmentos de um cometa", diz Rappenglück. "Mas essas interpretações não me convenceram."

ORIENTE E OCIDENTE

Porém, duas pesquisas mais caprichadas, do alemão Wolf von Engelhardt e do sueco Jerker Blomqvist, voltaram a inspirá-la na caça à cratera. Blomqvist chegou a propor candidatas: as crateras de Kaali, na Estônia.
Mas um detalhe não batia: a localização tradicional do mito. Conta-se que Faetonte, filho do deus solar Hélios e da mortal Climene, pede a seu pai para guiar a carruagem que leva o Sol pelo céu.
O deus cede aos desejos do filho, mas ele pilota tão mal que quase queima a Terra inteira. Para impedir o desastre, Zeus, o chefão dos deuses gregos, atinge o rapaz com um raio, e ele cai no rio Erídano
- que, na tradição grega, ficava em algum lugar da Europa Ocidental, e não Oriental (como a Estônia).
O diabo é saber onde. Alguns identificam o Erídano com o rio Pó, no norte da Itália, outros com o Danúbio.
O casal alemão defende a segunda interpretação, já que o rio é perto de Chiemgau. Por meios indiretos, também é possível datar o surgimento das crateras entre 2000 a.C. e 800 a.C. A data bate, em linhas gerais, com o período de formação da cultura e da mitologia gregas, e antecede a primeira menção escrita clara ao mito de Faetonte, na peça "Hipólito" (428 a.C.), de Eurípides.
Os pesquisadores citam ainda detalhes de narrativas antigas, como as do poeta romano Ovídio (43 a.C.-17 d.C.), que registrariam alguns detalhes muito parecidos com a queda de um objeto celeste "transfigurada" pelo mito.
Rappenglück admite que os relatos são muito posteriores ao impacto, mas diz que podem se basear em dados anteriores.

Poeta menciona "sombra" e árvore que parece chorar

DO EDITOR DE CIÊNCIA

Dependendo da interpretação, os versos dos antigos poetas gregos e latinos realmente parecem descrever um meteorito que desaba dos céus, diz o estudo.
Ovídio e outros autores dizem, por exemplo, que a carruagem do Sol foi estraçalhada pelo raio lançado por Zeus. É o que pode acontecer quando um bólido dos grandes explode e se fragmenta em atrito com a atmosfera da Terra.
Ovídio também fala em "cinzas fumegantes e uma profunda escuridão" envolvendo Faetonte - suposta forma poética de descrever a trilha de poeira escura deixada por um meteorito.
Após o impacto, uma nuvem de poeira teria enchido a atmosfera, o que é coerente com o dia inteiro de escuridão citado pelos poetas.
Finalmente, talvez o momento mais pungente da história, citado pelo grego Apolônio de Rodes e também por Ovídio, tem a ver com o choro das irmãs de Faetonte, que são transformadas em árvores e cujas lágrimas viram resina.
Acontece que, diante da ação de um meteorito, sabe-se que as árvores reagem produzindo resina em grande intensidade - como se estivessem "chorando".
"Não acho que só a tradição oral tenha trazido esses detalhes para Ovídio", diz Barbara Rappenglück. "Sabemos que ele se baseou em coleções escritas de mitos, deixadas por autores gregos muito anteriores. Muito desse material acabou se perdendo para nós."(RJL)

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