Sábado, 29 de Janeiro de 2011ORIENTE EM CHAMAS
MANIFESTANTES ENFRENTAM TROPAS E TANQUES DO EXÉRCITO NO CAIRO E SUEZ
ORIENTE EM CHAMAS
MANIFESTANTES ENFRENTAM TROPAS E TANQUES DO EXÉRCITO NO CAIRO E SUEZ
Colar de ditaduras e semi-ditaduras obscenas sustentadas pelos EUA e por Israel no Oriente Médio desmorona sob protestos de massa contra a opressão e o desemprego.
No Egito, onde o desemprego entre os jovens chega a 20%, forças policiais foram incapazes de deter as grandes manifestações. Apesar da dura represssão, combinada com censura à internet e bloqueio da telefonia celular, o policiamento convencional perdeu o controle da situação. O Exército foi chamado e o país encontra-se sob toque de recolher, mas os enfrentamentos não cessam.
As próximas horas serão decisivas. Já há notícias de diveros mortos e mais de 1000 feridos. Pode ocorrer um banho de sangue se o governo falido de Hosni Mubarak, apoiado e armado pelos EUA, insistir em ignorar a nova realidade das ruas.
Defensores seletivos dos direitos humanos, sempre alertas contra o Irã, Cuba e a Venezuela, tem a palavra. A ver.
O Egito a caminho da revolução. O que fazer?
Reginaldo Nasser (*)
As mobilizações populares na Tunísia, Egito, Iêmen e em outros lugares são um alerta para o chamado mundo desenvolvido e seria uma grande avanço para a democracia se esta região que permanece imersa na violência, em fraudes eleitorais e miséria crescente da população recebesse o devido apoio internacional nesse momento.
O porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, disse que os EUA poderão revisar a ajuda ao Egito. O presidente Obama solicitou às autoridades egípcias que evitem o uso de qualquer tipo de violência contra manifestantes pacíficos, alertando que "aqueles que protestam nas ruas têm uma responsabilidade de expressar-se pacificamente. Já a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que a “estabilidade do país é muito importante, mas não a qualquer preço”. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu que "os líderes do Egito escutem as preocupações legítimas e os desejos de seus cidadãos”. O primeiro ministro britânico David Cameron declarou: “Eu acho que precisamos de reformas. Quero dizer que nós apoiamos o progresso e o reforço da democracia”.
Como avaliar a atitude desses líderes mundiais? Patética, cínica, hipócrita, irresponsável? Talvez devêssemos recorrer a um grande pensador liberal do século XIX, Aléxis de Tocqueville, e ouví-lo a respeito dos períodos revolucionários na França. Tocqueville alertava para o fato de líderes, que adquiriram experiência em lidar com a política em ambiente de ausência de liberdade, quando se encontraram diante de uma revolução que chegou “inesperadamente”, se assemelhavam aos remadores de rio que, de repente, se vêem instados a navegar no meio do oceano. Os conhecimentos adquiridos em suas viagens por águas calmas vão proporcionar mais problemas do que ajuda nessa aventura, e na maioria das vezes exibem mais confusão e incerteza do que os próprios passageiros que supostamente deveriam conduzir.
Já havia sinais reveladores dessas turbulências, mas o Ocidente preferia se preocupar com burcas, minaretes e terrorismo. Um relatório do Banco Mundial, publicado em 2009, informava que os países árabes importavam cerca de 60% dos alimentos que consomem e já são os maiores importadores de cereais no mundo, dependendo de outros países para a sua segurança alimentar. A elevação dos preços nos mercados mundiais, desde 2008, já causou ondas de protestos em dezenas de países e milhões de desempregados e pobres nos países árabes, como foram os casos da Argélia , em 1988, e da Jordânia em 1989. Um exemplo mais recente, além da região árabe, é o Quirguistão onde um aumento da eletricidade e tarifas de celulares causaram manifestações com dezenas de mortos e milhares de feridos.
Aqueles que temem o crescimento do “islamismo radical” como fator de instabilidade nessa região, deveriam estar mais atentos em relação às “ditaduras amistosas” que, na verdade, são as principais responsáveis pela insegurança no mundo. Desemprego em massa, preços dos alimentos e repressão política é uma combinação explosiva mais perigosa do que os homens bomba.
O porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, disse que os EUA poderão revisar a ajuda ao Egito. O presidente Obama solicitou às autoridades egípcias que evitem o uso de qualquer tipo de violência contra manifestantes pacíficos, alertando que "aqueles que protestam nas ruas têm uma responsabilidade de expressar-se pacificamente. Já a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que a “estabilidade do país é muito importante, mas não a qualquer preço”. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu que "os líderes do Egito escutem as preocupações legítimas e os desejos de seus cidadãos”. O primeiro ministro britânico David Cameron declarou: “Eu acho que precisamos de reformas. Quero dizer que nós apoiamos o progresso e o reforço da democracia”.
Como avaliar a atitude desses líderes mundiais? Patética, cínica, hipócrita, irresponsável? Talvez devêssemos recorrer a um grande pensador liberal do século XIX, Aléxis de Tocqueville, e ouví-lo a respeito dos períodos revolucionários na França. Tocqueville alertava para o fato de líderes, que adquiriram experiência em lidar com a política em ambiente de ausência de liberdade, quando se encontraram diante de uma revolução que chegou “inesperadamente”, se assemelhavam aos remadores de rio que, de repente, se vêem instados a navegar no meio do oceano. Os conhecimentos adquiridos em suas viagens por águas calmas vão proporcionar mais problemas do que ajuda nessa aventura, e na maioria das vezes exibem mais confusão e incerteza do que os próprios passageiros que supostamente deveriam conduzir.
Já havia sinais reveladores dessas turbulências, mas o Ocidente preferia se preocupar com burcas, minaretes e terrorismo. Um relatório do Banco Mundial, publicado em 2009, informava que os países árabes importavam cerca de 60% dos alimentos que consomem e já são os maiores importadores de cereais no mundo, dependendo de outros países para a sua segurança alimentar. A elevação dos preços nos mercados mundiais, desde 2008, já causou ondas de protestos em dezenas de países e milhões de desempregados e pobres nos países árabes, como foram os casos da Argélia , em 1988, e da Jordânia em 1989. Um exemplo mais recente, além da região árabe, é o Quirguistão onde um aumento da eletricidade e tarifas de celulares causaram manifestações com dezenas de mortos e milhares de feridos.
Aqueles que temem o crescimento do “islamismo radical” como fator de instabilidade nessa região, deveriam estar mais atentos em relação às “ditaduras amistosas” que, na verdade, são as principais responsáveis pela insegurança no mundo. Desemprego em massa, preços dos alimentos e repressão política é uma combinação explosiva mais perigosa do que os homens bomba.
A demografia no mundo árabe é também um grande problema. A população cresceu cinco vezes durante o século XX, e o crescimento continua a uma média anual de 2,3%. A população do Egito está em torno de 80 milhões. Em 2050 (de acordo com projeções da ONU) deverá ter 121 milhões. A população da Argélia irá crescer de 33 milhões em 2007 para 49 milhões em 2050; a do Iêmen de 22 a 58 milhões. Isso significa que mais empregos precisam ser criados - e mais alimentos importados, ou aumentar a capacidade para produzir mais. No caso do Egito dois terços da população são jovens abaixo de 30 anos, dos quais 90% estão desempregados.
Baseada no turismo, na agricultura e na exportação de petróleo e algodão, a economia é incapaz de sustentar a taxa de crescimento demográfico. 40% da população vive com menos de US$ 2 (R$ 3,30) por dia, o país está na 101ª posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)
De certa forma a auto-imolação do jovem tunisiano, Mohamad Bouazizi, que deflagrou a onda de protestos na Tunisia revela, no nível individual, aquilo que está acontecendo nas sociedades daquela região como um todo. Ele não se rebelou, apenas porque não encontrou trabalho que refletisse suas ambições profissionais, mas sim quando um oficial da polícia confiscou as frutas e legumes que estava vendendo sem autorização. Quando foi fazer uma reclamação para buscar justiça, sua demanda foi rejeitada.
Provavelmente foi este sentimento de injustiça que levou Mohamed Bouazizi e milhares de pessoas às ruas, empenhados em quebrar o ciclo da miséria e opressão.
Talvez seja mais confortável para a chamada comunidade internacional lidar com um mundo árabe dividido entre nacionalistas, relativamente seculares, de um lado e islamismo radical, de outro, do que um mundo mais complexo, com problemas econômicos, sociais e políticos que conta com sua cumplicidade.
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP
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A Revolução dos Jasmins contra as autocracias
Eduardo Febbro - Página/12
A chamada Revolução dos Jasmins que iniciou na Tunísia há algumas semanas se estendeu como um rastilho de pólvora para vários países árabes, e não os menores. O Iêmen e, sobretudo, o Egito, vivem hoje revoltas que têm características revolucionárias. Trata-se de um fenômeno tanto mais único na medida em que o discurso ocidental sempre tratou os países árabes como incapazes de assumir coletivamente um destino democrático. Tunísia, Argélia, Mauritânia, Iêmen e Egito não só desmentem esses argumentos como também abalam desde a raiz as ditaduras que governam esses países há décadas com mão de ferro e privilégios exorbitantes.
Alguns analistas asseguram hoje que já não se trata de saber que regime cairá primeiro, mas sim qual se salvará dessa onda de aspirações democráticas cujos protagonistas são as classes médias, os setores menos favorecidos e os jovens, que se organizam por meio da internet e das redes sociais. O mais moderno do mundo irrompe como instrumento de comunicação e protesto contra poderes dinossáuricos. Os protestos revelam também a ruptura sem remédio entre autocracias longevas, respaldadas historicamente pelo Ocidente, e a legitimidade popular.
O sociólogo e filósofo Sami Naïr, professor de Ciências Políticas na Universidade Paris VIII, presidente do Instituto Magreb-Europa da mesma Universidade, analisa em entrevista ao jornal Página/12 a originalidade e as causas desta revolução árabe. Autor de ensaios e análises sobre política internacional, Naïr aponta como primeiro fator alimentador da revolta o fato central de que o medo mudou de campo. É o poder que enfrenta agora um povo que perdeu o medo.
A entrevista
A Revolução dos Jasmins iniciou na Tunísia com a imolação de um jovem e logo se alastrou para outros países. Agora, a revolta chega ao Egito e ao Iêmen. Você dizia em uma análise que, assim como ocorreu primeiro na América Latina e depois nos países do leste europeu, certa parte do mundo árabe está despertando para a história.
- Sempre prensei que, ao menos no século XX, o laboratório dos povos foi a América Latina. A Revolução Russa não pode ser entendida sem a Revolução Mexicana. Os latino-americanos inventaram todas as formas de luta possíveis e imagináveis. Na América Latina, se experimentaram as guerrilhas, as lutas políticas, os despotismos, as ditaduras. A partir dos anos 80 e 90, as ditaduras caíram em quase todos os países da América Latina. Esse movimento contra as ditaduras se desenvolveu em outros lugares do mundo, por exemplo, nos países do leste europeu a partir da queda do Muro de Berlim. Agora, esse movimento de fundo que iniciou na América Latina está atingindo todos os países da orla árabe do Mediterrâneo e mesmo além, na península arábica, como está acontecendo no Iêmen.
O problema reside em que, contrariamente ao que ocorreu na América Latina, o movimento que eclodiu nestes países árabes não tem direção, nem organização, nem programa. É um movimento totalmente espontâneo com duas características fundamentais: em primeiro lugar, trata-se de um movimento que destrói definitivamente a ideia de que estas sociedades estão condenadas a viver com o perigo extremista e fundamentalista, por um lado, e, por outro, com a ditadura, que seria uma suposta garantia necessária contra esse perigo fundamentalista. Agora está se demonstrando que o problema é muito mais complexo e que estes países não querem experimentar nem o islamismo nem o fundamentalista, mas sim que, basicamente, desejam a democracia.
O segundo elemento importante, e que pode lembrar o que ocorreu na América Latina, reside no fato de que há uma aliança circunstancial entre as camadas mais pobres e humildes, sem verdadeira inserção social, e as camadas médias empobrecidas nestes últimos anos. Na última década, todos esses países padeceram de um empobrecimento muito importante das classes médias e agora há uma fusão entre esses setores e a base popular, as classes pobres totalmente excluídas do processo de integração dentro da sociedade.
Se essas revoltas forem até o fim nestas autocracias árabes estaríamos vivendo uma autêntica revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa concepção dos sistemas políticos mundiais. Sempre se acreditou que os países árabes eram incapazes de assumir uma forma de democracia popular e participativa.
- Isso corresponde a um discurso muito depreciativo construído pelos países ocidentais, pelo capitalismo internacional cuja sede é a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), Estados Unidos e União Europeia. Esses atores querem que haja estabilidade nos países árabes e para isso necessitam de regimes fortes e ditatoriais, porque o que importa a eles são duas coisas: em primeiro lugar que essa gente não emigre e, em segundo, que as fontes de recursos petrolíferos sejam garantidas. Por isso desenvolveram esse discurso em total sintonia com os ditadores que sempre repetiram: “nossos povos carecem de maturidade política e cultural e, por conseguinte, não podem ter acesso à democracia”.
Sabemos que tudo isso é falso, que as aspirações democráticas são muito fortes nesta região do mundo. Creio que o que está acontecendo agora demonstra isso de maneira muito clara. Cada situação é específica. Não se pode misturar o que ocorreu na Tunísia, um país que tem uma tradição laica e elites ilustradas muito fortes, com camadas sociais muito coesas, com a situação do Iêmen, onde impera um sistema tribal baseado na dominação despótica de um clã. A única coisa similar é o grau de dominação e a forma de controle, apoiada na polícia e no exército.
A explosão social no Egito tem matizes inéditos. No Egito o exército desempenha um papel central, onde o presidente, Hosni Mubarak, pertence a ele e onde quem está chamado a substituí-lo, seu filho Gamal Mubarak, é um liberal que não é bem visto pelas forças armadas.
O caso egípcio é muito particular, em primeiro lugar porque o país é um velho Estado de direito. Provavelmente seja o Estado de direito mais antigo do mundo. O Estado de direito moderno foi constituído por Mohamed Ali entre o final do século XVIII e início do XIX, ou seja, antes que nós na Europa soubéssemos o que era isso. Mas esse Estado foi destroçado pelos ingleses no século XIX. Em todo o caso, o filho de Mubarak, Gamal, não representa a democracia. Gamal Mubarak é o elemento chave da nomenclatura que domina o país em sua vertente mais liberal. É indispensável evitar que o Egito se transforme em uma república hereditária onde o pai ditador nomeia seu filho como futuro ditador liberal. As pessoas estão buscando outra coisa.
Você assinala que o que começou a ocorrer na Tunísia e logo se espalhou para outros países é que o medo mudou de lado. O medo acabou.
- Isso foi muito importante neste processo. Eu estava na Tunísia quando tudo isso começou e vi como o medo mudava de campo. A revolta tunisiana estourou na localidade de Sidi Bouzid, com a imolação do jovem Mohamed Bouazizi. A partir dali, tudo se transtornou. Até esse momento, o regime tunisiano estava baseado no temor. Mas a morte de Mohamed Bouazizi mudou essa situação, sobretudo pela atitude do então presidente Bem Alí, que foi visitar a família da vítima. As pessoas se deram conta que quem tinha medo era o poder. O mesmo está ocorrendo no Egito. O mais importante nestas revoltas é a vitória do imaginário que significa que transformaram a relação com o poder: agora são os ditadores que devem temer os povos. Isso não significa que amanhã vamos ter uma revolução em todas as partes. Não. O movimento pode avançar, pode recuar, não sabemos o que vai acontecer. Mas o que sabemos, e isso já foi percebido pela população, é que os poderes podem mudar quando os povos querem mudar suas condições de vida e ousam enfrentar o poder para escolher seu próprio destino.
Tradução: Katarina Peixoto
Eduardo Febbro - Página/12
A chamada Revolução dos Jasmins que iniciou na Tunísia há algumas semanas se estendeu como um rastilho de pólvora para vários países árabes, e não os menores. O Iêmen e, sobretudo, o Egito, vivem hoje revoltas que têm características revolucionárias. Trata-se de um fenômeno tanto mais único na medida em que o discurso ocidental sempre tratou os países árabes como incapazes de assumir coletivamente um destino democrático. Tunísia, Argélia, Mauritânia, Iêmen e Egito não só desmentem esses argumentos como também abalam desde a raiz as ditaduras que governam esses países há décadas com mão de ferro e privilégios exorbitantes.
Alguns analistas asseguram hoje que já não se trata de saber que regime cairá primeiro, mas sim qual se salvará dessa onda de aspirações democráticas cujos protagonistas são as classes médias, os setores menos favorecidos e os jovens, que se organizam por meio da internet e das redes sociais. O mais moderno do mundo irrompe como instrumento de comunicação e protesto contra poderes dinossáuricos. Os protestos revelam também a ruptura sem remédio entre autocracias longevas, respaldadas historicamente pelo Ocidente, e a legitimidade popular.
O sociólogo e filósofo Sami Naïr, professor de Ciências Políticas na Universidade Paris VIII, presidente do Instituto Magreb-Europa da mesma Universidade, analisa em entrevista ao jornal Página/12 a originalidade e as causas desta revolução árabe. Autor de ensaios e análises sobre política internacional, Naïr aponta como primeiro fator alimentador da revolta o fato central de que o medo mudou de campo. É o poder que enfrenta agora um povo que perdeu o medo.
A entrevista
A Revolução dos Jasmins iniciou na Tunísia com a imolação de um jovem e logo se alastrou para outros países. Agora, a revolta chega ao Egito e ao Iêmen. Você dizia em uma análise que, assim como ocorreu primeiro na América Latina e depois nos países do leste europeu, certa parte do mundo árabe está despertando para a história.
- Sempre prensei que, ao menos no século XX, o laboratório dos povos foi a América Latina. A Revolução Russa não pode ser entendida sem a Revolução Mexicana. Os latino-americanos inventaram todas as formas de luta possíveis e imagináveis. Na América Latina, se experimentaram as guerrilhas, as lutas políticas, os despotismos, as ditaduras. A partir dos anos 80 e 90, as ditaduras caíram em quase todos os países da América Latina. Esse movimento contra as ditaduras se desenvolveu em outros lugares do mundo, por exemplo, nos países do leste europeu a partir da queda do Muro de Berlim. Agora, esse movimento de fundo que iniciou na América Latina está atingindo todos os países da orla árabe do Mediterrâneo e mesmo além, na península arábica, como está acontecendo no Iêmen.
O problema reside em que, contrariamente ao que ocorreu na América Latina, o movimento que eclodiu nestes países árabes não tem direção, nem organização, nem programa. É um movimento totalmente espontâneo com duas características fundamentais: em primeiro lugar, trata-se de um movimento que destrói definitivamente a ideia de que estas sociedades estão condenadas a viver com o perigo extremista e fundamentalista, por um lado, e, por outro, com a ditadura, que seria uma suposta garantia necessária contra esse perigo fundamentalista. Agora está se demonstrando que o problema é muito mais complexo e que estes países não querem experimentar nem o islamismo nem o fundamentalista, mas sim que, basicamente, desejam a democracia.
O segundo elemento importante, e que pode lembrar o que ocorreu na América Latina, reside no fato de que há uma aliança circunstancial entre as camadas mais pobres e humildes, sem verdadeira inserção social, e as camadas médias empobrecidas nestes últimos anos. Na última década, todos esses países padeceram de um empobrecimento muito importante das classes médias e agora há uma fusão entre esses setores e a base popular, as classes pobres totalmente excluídas do processo de integração dentro da sociedade.
Se essas revoltas forem até o fim nestas autocracias árabes estaríamos vivendo uma autêntica revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa concepção dos sistemas políticos mundiais. Sempre se acreditou que os países árabes eram incapazes de assumir uma forma de democracia popular e participativa.
- Isso corresponde a um discurso muito depreciativo construído pelos países ocidentais, pelo capitalismo internacional cuja sede é a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), Estados Unidos e União Europeia. Esses atores querem que haja estabilidade nos países árabes e para isso necessitam de regimes fortes e ditatoriais, porque o que importa a eles são duas coisas: em primeiro lugar que essa gente não emigre e, em segundo, que as fontes de recursos petrolíferos sejam garantidas. Por isso desenvolveram esse discurso em total sintonia com os ditadores que sempre repetiram: “nossos povos carecem de maturidade política e cultural e, por conseguinte, não podem ter acesso à democracia”.
Sabemos que tudo isso é falso, que as aspirações democráticas são muito fortes nesta região do mundo. Creio que o que está acontecendo agora demonstra isso de maneira muito clara. Cada situação é específica. Não se pode misturar o que ocorreu na Tunísia, um país que tem uma tradição laica e elites ilustradas muito fortes, com camadas sociais muito coesas, com a situação do Iêmen, onde impera um sistema tribal baseado na dominação despótica de um clã. A única coisa similar é o grau de dominação e a forma de controle, apoiada na polícia e no exército.
A explosão social no Egito tem matizes inéditos. No Egito o exército desempenha um papel central, onde o presidente, Hosni Mubarak, pertence a ele e onde quem está chamado a substituí-lo, seu filho Gamal Mubarak, é um liberal que não é bem visto pelas forças armadas.
O caso egípcio é muito particular, em primeiro lugar porque o país é um velho Estado de direito. Provavelmente seja o Estado de direito mais antigo do mundo. O Estado de direito moderno foi constituído por Mohamed Ali entre o final do século XVIII e início do XIX, ou seja, antes que nós na Europa soubéssemos o que era isso. Mas esse Estado foi destroçado pelos ingleses no século XIX. Em todo o caso, o filho de Mubarak, Gamal, não representa a democracia. Gamal Mubarak é o elemento chave da nomenclatura que domina o país em sua vertente mais liberal. É indispensável evitar que o Egito se transforme em uma república hereditária onde o pai ditador nomeia seu filho como futuro ditador liberal. As pessoas estão buscando outra coisa.
Você assinala que o que começou a ocorrer na Tunísia e logo se espalhou para outros países é que o medo mudou de lado. O medo acabou.
- Isso foi muito importante neste processo. Eu estava na Tunísia quando tudo isso começou e vi como o medo mudava de campo. A revolta tunisiana estourou na localidade de Sidi Bouzid, com a imolação do jovem Mohamed Bouazizi. A partir dali, tudo se transtornou. Até esse momento, o regime tunisiano estava baseado no temor. Mas a morte de Mohamed Bouazizi mudou essa situação, sobretudo pela atitude do então presidente Bem Alí, que foi visitar a família da vítima. As pessoas se deram conta que quem tinha medo era o poder. O mesmo está ocorrendo no Egito. O mais importante nestas revoltas é a vitória do imaginário que significa que transformaram a relação com o poder: agora são os ditadores que devem temer os povos. Isso não significa que amanhã vamos ter uma revolução em todas as partes. Não. O movimento pode avançar, pode recuar, não sabemos o que vai acontecer. Mas o que sabemos, e isso já foi percebido pela população, é que os poderes podem mudar quando os povos querem mudar suas condições de vida e ousam enfrentar o poder para escolher seu próprio destino.
Tradução: Katarina Peixoto
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