São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2011
ANÁLISE
Potência regional tem influência em diversos temas sensíveis do planeta
FÁBIO ZANINI
EDITOR DE MUNDO
Por que uma revolução no Egito é tão importante? Porque há poucos países que tocam em tantos nervos simultaneamente.
O Egito é quem manda no mundo árabe. Foi a inspiração para a Liga Árabe e sempre a controlou politicamente - seu ex-chanceler Amr Moussa é o atual secretário-geral da entidade, que reúne 22 países.
Em outro clube regional, a União Africana, sua influência é apenas um pouco menor. Mesmo não sendo um país negro, palpita na vida de milhões na África subsaariana, pela força econômica e pela pressão que exerce sobre o rio Nilo, vital para sua sobrevivência.
Há quem aposte que a próxima grande guerra africana ocorrerá se um dia Uganda, Etiópia ou Sudão, cortados pelo rio, tentarem alterar o curso ou o volume do Nilo, algo inaceitável para o Egito.
Regionalmente, o país mantém relação (ainda que tensa) com Israel e as facções palestinas rivais, Hamas e Fatah. É chave na diplomacia, portanto.
No âmbito da "guerra ao terror", Hosni Mubarak sempre foi fundamental aos EUA, por aceitar terceirizar a tortura de suspeitos presos e por perseguir a Al Qaeda. É egípcio o número 2 da rede, Ayman al-Zawahiri.
Por fim, o Egito desempenha papel relevante na rivalidade histórica entre sunitas e xiitas, embora o regime de Mubarak se declare laico.
O Cairo não tem o simbolismo de Meca ou Jerusalém para o islã, mas sua importância não é desprezível.
Fica lá, afinal, a universidade de Al-Azhar, que desde o século 10 é o principal centro mundial de estudo e doutrina sunita.Não é por acaso que autoridades do Irã, polo xiita por excelência, mal disfarçam o sorriso com o caos que vive o grande rival por influência no mundo islâmico.
Yannis Behrakis/Reuters |
Egípcios sobre um tanque após protesto no Cairo
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO
A rebelião que varre os países árabes começou em 17 de dezembro, quando Mohamed Bouazizi, de 26 anos, embebeu o corpo em solvente de tinta e se imolou em frente ao palácio do governo em Sidi Bouzid, capital provincial no centro da Tunísia.
Ambulante, sua banca de frutas havia sido confiscada. Ao protestar, foi espancado por dois guardas, segundo reconstituição feita na cidade pelo "New York Times".
O protesto que se seguiu provocou uma onda que levou milhares de pessoas às ruas de todo o país. O ditador Zine el Abidine Ben Ali caiu 27 dias depois.
Bouazizi personifica uma espécie de paradoxo árabe, evidenciado nos relatórios do Pnud (Programa da ONU para o Desenvolvimento) sobre os 22 países do grupo.
O paradoxo vem do fato de que a geração dele tem maior expectativa de vida e maior acesso à educação e à saúde do que as de seus pais e avós, mas as suas expectativas esbarram na falta de oportunidades provocada pelo controle oligárquico da política e da economia.
O grupo árabe, claro, não é homogêneo. No ranking do IDH (índice de desenvolvimento humano), que inclui indicadores de renda, educação e saúde, os Emirados Árabes Unidos, mais bem colocados, estão 104 posições à frente da Mauritânia.
Mas na média, aponta o Pnud, os países árabes tiveram um dos maiores avanços relativos no IDH entre 1970 e 2010, com cinco países, incluindo Tunísia e Argélia, entre os dez que mais evoluíram em todo o mundo.
AVANÇOS
A expectativa de vida no grupo subiu de 51 para 70 anos, a mortalidade infantil diminuiu de 98 para 38 mortes por mil nascimentos, e a proporção da população nesses países em idade escolar matriculada passou de 34% para 64%.
No Egito, por exemplo, a taxa de analfabetismo total é estimada em quase 40% , mas na faixa de 15 a 24 anos ela cai para 10% entre os homens e 18% entre as mulheres. Na Tunísia, a taxa nessa faixa é de menos de 6%, para os dois sexos.
A isso somam-se mais dois dados, visíveis nas imagens dos protestos: a população urbana dos países árabes foi de 38% para 60% de um total de 320 milhões de pessoas, e 60% delas têm menos de 25 anos. A média de idade é de 22 anos, contra a média global de 28.
Enquanto essas mudanças ocorriam, movimentos que no século passado conquistaram a independência ou lideraram revoluções nacionalistas se fossilizaram, assim como as dinastias monárquicas eleitas a dedo pelos antigos colonizadores.
O Egito vive há praticamente 30 anos sob lei de emergência que suspende direitos civis . Há países com mais ou menos liberdade, mas nenhuma democracia.
LIBERALIZAÇÃO
A liberalização econômica dos anos 1980 e 1990 reduziu os empregos no setor público e na indústria, que é hoje menor do que em 1970 , de acordo com o Pnud.
A dependência de petróleo, gás e turismo aumentou. A compra de excedentes europeus baratos reduziu a agricultura local.
Com exceção das monarquias do golfo Pérsico, a taxa de desemprego entre os jovens é o dobro da média mundial, de 14%. No Egito, ao menos 35% estão abaixo da linha nacional de pobreza; no Iêmen, são 59%.
Os protestos vieram de uma síntese de todos esses problemas.
"Antes, reivindicações políticas e econômicas estavam separadas. Agora, temas cotidianos alimentaram os chamados à reforma democrática", escreveu Amr Hamzawy, do Centro Carnegie para o Oriente Médio.
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO
A rebelião que varre os países árabes começou em 17 de dezembro, quando Mohamed Bouazizi, de 26 anos, embebeu o corpo em solvente de tinta e se imolou em frente ao palácio do governo em Sidi Bouzid, capital provincial no centro da Tunísia.
Ambulante, sua banca de frutas havia sido confiscada. Ao protestar, foi espancado por dois guardas, segundo reconstituição feita na cidade pelo "New York Times".
O protesto que se seguiu provocou uma onda que levou milhares de pessoas às ruas de todo o país. O ditador Zine el Abidine Ben Ali caiu 27 dias depois.
Bouazizi personifica uma espécie de paradoxo árabe, evidenciado nos relatórios do Pnud (Programa da ONU para o Desenvolvimento) sobre os 22 países do grupo.
O paradoxo vem do fato de que a geração dele tem maior expectativa de vida e maior acesso à educação e à saúde do que as de seus pais e avós, mas as suas expectativas esbarram na falta de oportunidades provocada pelo controle oligárquico da política e da economia.
O grupo árabe, claro, não é homogêneo. No ranking do IDH (índice de desenvolvimento humano), que inclui indicadores de renda, educação e saúde, os Emirados Árabes Unidos, mais bem colocados, estão 104 posições à frente da Mauritânia.
Mas na média, aponta o Pnud, os países árabes tiveram um dos maiores avanços relativos no IDH entre 1970 e 2010, com cinco países, incluindo Tunísia e Argélia, entre os dez que mais evoluíram em todo o mundo.
AVANÇOS
A expectativa de vida no grupo subiu de 51 para 70 anos, a mortalidade infantil diminuiu de 98 para 38 mortes por mil nascimentos, e a proporção da população nesses países em idade escolar matriculada passou de 34% para 64%.
No Egito, por exemplo, a taxa de analfabetismo total é estimada em quase 40% , mas na faixa de 15 a 24 anos ela cai para 10% entre os homens e 18% entre as mulheres. Na Tunísia, a taxa nessa faixa é de menos de 6%, para os dois sexos.
A isso somam-se mais dois dados, visíveis nas imagens dos protestos: a população urbana dos países árabes foi de 38% para 60% de um total de 320 milhões de pessoas, e 60% delas têm menos de 25 anos. A média de idade é de 22 anos, contra a média global de 28.
Enquanto essas mudanças ocorriam, movimentos que no século passado conquistaram a independência ou lideraram revoluções nacionalistas se fossilizaram, assim como as dinastias monárquicas eleitas a dedo pelos antigos colonizadores.
O Egito vive há praticamente 30 anos sob lei de emergência que suspende direitos civis . Há países com mais ou menos liberdade, mas nenhuma democracia.
LIBERALIZAÇÃO
A liberalização econômica dos anos 1980 e 1990 reduziu os empregos no setor público e na indústria, que é hoje menor do que em 1970 , de acordo com o Pnud.
A dependência de petróleo, gás e turismo aumentou. A compra de excedentes europeus baratos reduziu a agricultura local.
Com exceção das monarquias do golfo Pérsico, a taxa de desemprego entre os jovens é o dobro da média mundial, de 14%. No Egito, ao menos 35% estão abaixo da linha nacional de pobreza; no Iêmen, são 59%.
Os protestos vieram de uma síntese de todos esses problemas.
"Antes, reivindicações políticas e econômicas estavam separadas. Agora, temas cotidianos alimentaram os chamados à reforma democrática", escreveu Amr Hamzawy, do Centro Carnegie para o Oriente Médio.
Próximos passos do Exército egípcio podem decidir futuro do país
NEIL MACFARQUHAR
DO "NEW YORK TIMES"
Mesmo com veículos militares blindados mobilizados em torno de importantes instituições do governo egípcio, pela primeira vez em décadas foi difícil de prever o papel que as Forças Armadas poderia desempenhar.
"Eles estão do lado da nação ou do lado do regime?", perguntou um ex-diplomata ocidental que trabalhou no Cairo por muito tempo. "Nós agora estamos passando por um teste moderno de saber se existe uma separação entre os dois."
Os militares executaram o golpe de 1952 no país, que derrubou a monarquia, e se consideraram pastores da revolução desde então; todos os quatro presidentes nos anos seguintes foram generais militares.
Mas Mubarak, que comandou a Força Aérea antes de subir para o poder quando o presidente Anwar Sadat o nomeou vice-presidente em 1975, trabalhou duro para manter o Exército sob seu controle.
Quando explodiu o caos na Tunísia neste mês, a decisão do chefe militar de não disparar contra os manifestantes foi vista como um fator decisivo na condução do presidente Zine El Abidine Ben Ali para fora do país.
O respeito do público pelo Exército contrasta com a visão predominante da polícia e outras forças do Ministério do Interior, conhecidos pelos egípcios por sua brutalidade.
O Exército egípcio, com cerca de 468 mil soldados, é uma instituição à parte, e pode fornecer um meio de promoção social, onde homens de famílias pobres podem ganhar prestígio e se juntar à classe média alta.
Analistas acreditam que o ponto de inflexão dos militares pode acontecer se eles forem obrigados a disparar contra manifestantes em grande número. Uma coisa é proteger edifícios do governo de saqueadores, outra é manchar a reputação do Exército matando cidadãos.
Ninguém pensa que uma pessoa leal a Mubarak, como o é Mohamed Tantawi, atrasado e impopular ministro da Defesa, desempenharia o papel de desafiar o presidente, o que não significa que seus subordinados não o fariam.
"Se os militares atirarem contra os civis depois de manifestações claramente populares, isso colocará em perigo a integridade dos militares", disse Samer Shehata, professor de política árabe da Universidade de Georgetown. "Desta vez o futuro da instituição está em risco."
Tal ação também poderia prejudicar o relacionamento dos militares com os EUA. Robert Gibbs, porta-voz do presidente Obama, disse que a ajuda ao Egito, que agora chega a US$ 1,3 bilhões por ano, será posta em análise, caso a violência continue.
Se os militares tirarem o presidente do poder, há dúvidas de que o Egito pode ser governado por um quinto militar por mais do que um período transitório.
"Esta é a hora do povo para uma transição democrática", disse Emad El-Din Shahin, professor da Universidade de Notre Dame.
Shahin observa que a consciência de que regimes não-democráticos são uma anomalia no mundo moderno é muito alta entre os jovens manifestantes. "Será que as pessoas toleram mais 60 anos de domínio militar?"
NEIL MACFARQUHAR
DO "NEW YORK TIMES"
Mesmo com veículos militares blindados mobilizados em torno de importantes instituições do governo egípcio, pela primeira vez em décadas foi difícil de prever o papel que as Forças Armadas poderia desempenhar.
"Eles estão do lado da nação ou do lado do regime?", perguntou um ex-diplomata ocidental que trabalhou no Cairo por muito tempo. "Nós agora estamos passando por um teste moderno de saber se existe uma separação entre os dois."
Os militares executaram o golpe de 1952 no país, que derrubou a monarquia, e se consideraram pastores da revolução desde então; todos os quatro presidentes nos anos seguintes foram generais militares.
Mas Mubarak, que comandou a Força Aérea antes de subir para o poder quando o presidente Anwar Sadat o nomeou vice-presidente em 1975, trabalhou duro para manter o Exército sob seu controle.
Quando explodiu o caos na Tunísia neste mês, a decisão do chefe militar de não disparar contra os manifestantes foi vista como um fator decisivo na condução do presidente Zine El Abidine Ben Ali para fora do país.
O respeito do público pelo Exército contrasta com a visão predominante da polícia e outras forças do Ministério do Interior, conhecidos pelos egípcios por sua brutalidade.
O Exército egípcio, com cerca de 468 mil soldados, é uma instituição à parte, e pode fornecer um meio de promoção social, onde homens de famílias pobres podem ganhar prestígio e se juntar à classe média alta.
Analistas acreditam que o ponto de inflexão dos militares pode acontecer se eles forem obrigados a disparar contra manifestantes em grande número. Uma coisa é proteger edifícios do governo de saqueadores, outra é manchar a reputação do Exército matando cidadãos.
Ninguém pensa que uma pessoa leal a Mubarak, como o é Mohamed Tantawi, atrasado e impopular ministro da Defesa, desempenharia o papel de desafiar o presidente, o que não significa que seus subordinados não o fariam.
"Se os militares atirarem contra os civis depois de manifestações claramente populares, isso colocará em perigo a integridade dos militares", disse Samer Shehata, professor de política árabe da Universidade de Georgetown. "Desta vez o futuro da instituição está em risco."
Tal ação também poderia prejudicar o relacionamento dos militares com os EUA. Robert Gibbs, porta-voz do presidente Obama, disse que a ajuda ao Egito, que agora chega a US$ 1,3 bilhões por ano, será posta em análise, caso a violência continue.
Se os militares tirarem o presidente do poder, há dúvidas de que o Egito pode ser governado por um quinto militar por mais do que um período transitório.
"Esta é a hora do povo para uma transição democrática", disse Emad El-Din Shahin, professor da Universidade de Notre Dame.
Shahin observa que a consciência de que regimes não-democráticos são uma anomalia no mundo moderno é muito alta entre os jovens manifestantes. "Será que as pessoas toleram mais 60 anos de domínio militar?"
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