Folha.com, 10/10/16
Trump é menos uma anomalia do que a destilação da essência de seu partido
Por Paul Krugman*
Como muita gente vem apontando, os republicanos que agora estão tentando se
distanciar de Donald Trump precisam explicar por que "a gravação" [de
Trump fazendo comentários lascivos sobre mulheres antes de uma entrevista na
TV, em 2005] é causa para abandoná-lo quanto tantos incidentes anteriores não o
foram. No sábado (8), explicando o motivo para retirar seu apoio a Trump, o senador John McCain, do Arizona, mencionou "comentários sobre prisioneiros de guerra, o caso da família Khan, o juiz Curiel e comentários inapropriados sobre mulheres, no passado" — sem incluir a descrição de mexicanos como estupradores, o apelo pela proibição à entrada de muçulmanos e muitos outros comentários de Trump. Bem, McCain, por que você demorou tanto?
Uma desculpa que estamos ouvindo agora é que as novas revelações são qualitativamente diferentes — que desrespeito às mulheres é uma coisa, mas que se vangloriar de agressões sexuais representa um nível completamente diferente. A defesa é fraca, porque Trump na prática vem prometendo violência contra minorias desde que começou a campanha. Sua insistência, na semana passada, em que os chamados "Central Park Five" [cinco jovens negros e hispânicos condenados por um estupro nos anos 90] eram culpados, mesmo que inocentados por testes de DNA, e deveriam ter sido executados, é pior do que a gravação de suas declarações lascivas, mas não gerou denúncias de parte de seu partido.
E mesmo que você considere comportamento sexual predatório como algo de especialmente inaceitável, é preciso perguntar onde estavam todos esses republicanos, hoje chocados, em agosto, quando Roger Ailes — que foi demitido há pouco tempo pela rede noticiosa Fox News por conta de provas horripilantes de que usou seu posto como presidente-executivo para forçar mulheres a fazerem sexo com ele — se uniu à campanha de Trump, e se tornou um dos principais assessores do candidato. Houve algum protesto de parte dos mais importantes líderes republicanos?
É claro que sabemos a resposta. O mais recente escândalo incomodou os republicanos, mesmo que exemplos anteriores não o tenham feito, porque a campanha do candidato já estava em queda livre.
O motivo está visível nos números. A probabilidade de que um deputado federal republicano abandone a campanha de Trump apresenta forte correlação com a porcentagem de votos conquistada por Obama em 2012 no distrito eleitoral que ele representa. Ou seja, os republicanos que representam distritos onde a eleição será apertada estão indignados com o comportamento de Trump; aqueles em que a vitória está garantida parecem estranhamente indiferentes.
Enquanto isso, o eixo de abuso Trump-Ailes desperta uma nova questão: comportamento sexual predatório por parte de figuras políticas importantes — o que Ailes certamente sempre foi, mesmo que fingisse que seu negócio era o jornalismo — é um fenômeno restrito a um só partido?
Para ser claro, não estou falando de mau comportamento em geral, que ocorre entre políticos (e pessoas) de todas inclinações políticas. Sim, Bill Clinton foi infiel, mas existe um mundo de diferença entre sexo consensual, por menos apropriado que tenha sido, e praticar abuso de poder a fim de forçar outras pessoas a servir as necessidades de um homem poderoso. Isso é infinitamente pior — e acontece com muito mais frequência do que gostaríamos de imaginar.
Veja, por exemplo, o que estava acontecendo politicamente em 2006, ano que Nate Cohn, o especialista em pesquisas eleitorais do New York Times', acredita oferecer algumas lições para a eleição de 2016. Como aponta Cohn, em setembro daquele ano ainda parecia que os republicanos conseguiriam reter o controle do Congresso, a despeito da repulsa pública ao governo de George W. Bush. E então veio o escândalo de Mark Foley. O então congressista Foley, republicano da Flórida, costumava enviar mensagens sexualmente explícitas a estagiários do Congresso, alguns dos quais menores de idade, e seu partido não agiu a respeito apesar de ter recebido muitas denúncias. Como aponta Cohn, o escândalo parece ter sido o fator que levou a uma vitória democrata nas eleições legislativas.
Mas pense sobre o quanto maior poderia ter sido essa vitória se os eleitores soubessem então o que sabemos agora: que Dennis Hastert, do Illinois, outro ex-deputado federal republicano e presidente da Câmara dos Deputados de 1999 a 2007, tinha um longo histórico de assédio a meninos adolescentes.
Por que todas essas histórias envolvem republicanos? Uma resposta pode ser estrutural. O Partido Republicano é, ou era até a atual eleição, uma instituição monolítica, hierárquica, na qual homens poderosos podiam acobertar seus pecados muito melhor do que seria possível no Partido Democrata, uma coalizão muito mais frouxa. Há também, eu gostaria de sugerir, a questão do cinismo implícito da elite republicana. Estamos falando de um partido que há muito explora a reação hostil dos brancos aos avanços das minorias para mobilizar os eleitores de classe trabalhadora, e ao mesmo tempo impõe políticas que prejudicam esses eleitores e beneficiam só os ricos.
Qualquer pessoa que participe dessa arapuca — e esse é o nome que o processo merece — tem de acreditar que a política é uma esfera na qual você pode se safar dos muitos pecados que comete, se conhecer as pessoas certas. Assim, de certa maneira não surpreende que número desproporcional de líderes importantes acredite que é normal abusar das posições que ocupam.
O que nos leva de volta ao homem que quase todos os republicanos importantes apoiavam como candidato à presidência até um ou dois dias atrás.
Presumindo que Trump seja derrotado, muitos republicanos ainda tentarão fingir que ele foi um caso completamente excepcional, e que não era verdadeiramente representativo do partido. Mas isso não procede. Ele conquistou a indicação jogando pelas regras, e foi escolhido por eleitores que faziam uma boa ideia de quem ele é. Trump contava com forte apoio da elite até quase o fim do jogo. E seus vícios, seria justo dizer, estão bem alinhados à recente tradição de seu partido.
Trump, em outras palavras, é menos uma anomalia do que uma destilação pura da essência moderna de seu partido.
*Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.
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