Blog do
Marcelo Auler, 26/10/16
Porque a presidente do CNJ
não deve entrar no jogo corporativo dos juízes
Por Eugênio José Guilherme de Aragão*
A
liturgia do cargo público não é mero exercício de vaidade e de ego. Ela é um
marco do republicanismo, que determina ser o exercício de função pública uma
atividade impessoal. Quem está investido nela não deve a enxergar como um
galardão adquirido em razão de qualidades pessoais, mas precisamente porque foi
chamado a servir ao público. A liturgia lhe serve de proteção, para qualificar
a função e não a si.
Juízes,
por exemplo, lidam diariamente com conflitos. Ao decidirem sobre uma causa,
tornam um dos litigantes vencedor e outro perdedor. Aquilo que pode significar,
para o magistrado, apenas um número em sua estatística de produção mensal, na
alma do perdedor pode ser uma catástrofe pessoal. O que o leva a não ir às vias
de fato com aquele que vê como seu malfeitor? É a aura da liturgia que inspira
o respeito necessário a criar uma barreira de blindagem relativa.
Quando, porém, autoridades se comportam como
moleques, como moleques serão tratadas. Se adotarem discurso e comportamento de
botequim, não poderão se queixar quando começarem a voar garrafas e sopapos.
Temos
assistido quase diariamente comportamentos fora do script litúrgico por
parte de magistrados, a começar por alguns do andar de cima. Têm sido muito
cúpidos em dar entrevistas, falar fora dos autos, opinar sobre tudo e todos.
Têm adotado posturas controvertidas e, por vezes, até mesmo
político-partidárias em discursos públicos, seja nos tribunais ou fora deles.
A desfaçatez de mudar ostensivamente de opinião, conforme
o momento político e o alvo das ações jurisdicionais, chega a causar náusea
àqueles que assistem a esse circo quase cotidiano. Esse tipo de atitude cai bem
em conversa de bar, onde a inconsequência regada a álcool tudo permite, tudo
perdoa, mas não no exercício de função pública.
Dos
magistrados se espera autocontenção e não exibicionismo. Infelizmente há, entre
nós, magistrado que se fez notório e não é um bom exemplo de autocontenção.
A despeito de gozar de exclusividade para cuidar só
de um universo de processos supostamente conexos, decretada por seu tribunal,
aparentemente em virtude de sobrecarga que esse universo representa, esse juiz
tem viajado Brasil e mundo afora para dar palestras, receber prêmio de
bom-mocismo e participar de talk-shows.
Tem tido
tempo de sobra para difundir seu moralismo obsessivo sobre os fins da
persecução penal de “corruptos”, a ponto de virar super-herói de uma parte
desorientada da sociedade, cuja bronca turva sua visão sobre o crítico momento
político vivido pelo País. Para fugir das garrafadas e dos sopapos, anda com
séquito de seguranças e deles vive cercado no trabalho e em casa. Torna-se,
assim, personagem controvertido, agente de disseminação de incertezas, ao invés
de se limitar a oferecer segurança jurídica a seus jurisdicionados.
Isso não é vida de juiz. Mas, ainda que não faça
sentido, no sadio senso comum, essa imagem distorcida que se oferece de um
magistrado, tem sido exemplo para muitos outros de sua corporação, que também
querem compartilhar desse espaço de afago público a egos jurisdicionais.
Para
tanto, assinam até abaixo-assinado de defesa do colega premiado de bom-mocismo,
quando se torna alvo de críticas mais ou menos acerbas. Alguns foram às
manifestações “contra a corrupção” convocadas para derrubar governo,
manifestam-se cheio de emoção em perfis de Facebook e, depois, deram
provimento liminar para impedir posse de ministro de estado.
Num ambiente desses, a reação de veemente indignação
pública do Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, contra o “jabaculê”
determinado nas dependências daquela Casa Legislativa por juiz de primeiro grau
de Brasília, não deve causar surpresa.
Expressou
nada mais que seu protesto institucional contra aquilo que entendeu ser um
abuso de magistrado incompetente para tanto, pois o alvo da diligência da
polícia judiciária eram agentes da polícia legislativa que tinham procedido a
varreduras eletromagnéticas em locais de trabalho e residência de Senadores que
seriam alvos de investigação criminal.
Essas varreduras tinham sido determinadas pela
administração do Senado a pedido dos próprios Senadores alvejados. Se as
varreduras foram pedidas por estes e se entenda que elas constituem embaraço a
justiça, em tese são os Senadores objeto da escuta ambiental que deveriam ser
questionados sobre a iniciativa. Isso, evidentemente, atrairia a competência do
foro por prerrogativa de função que é o Supremo Tribunal Federal.
Tanto
mais é surpreendente, isto sim, que a Presidente do Conselho Nacional de
Justiça vá à imprensa, não para admoestar magistrados que ultrapassam a linha
do bom senso em suas atitudes e decisões, mas para se dirigir com dedo em riste
ao Presidente do Senado Federal, com discurso não menos surpreendente de se ver
como destinatária de cada crítica que se faça em tom mais ou menos contundente
a magistrados que procedem de forma, no mínimo, controvertida.
O Conselho Nacional de Justiça é órgão de controle
externo da magistratura e tem, também, uma atuação correcional em relação a
estes. Não deve a dirigente do órgão se confundir com aqueles que deve
disciplinar, pois assim fazendo, reforça os desvios de conduta e se porta feito
porta-voz de uma corporação e não de uma instituição.
Não é
mais novidade para ninguém que certos padrões de comportamento de elevado risco
para o governo das instituições no País têm fundo corporativo. É mostrando os
dentes que as mais poderosas categorias do serviço público se alavancam para
negociar vantagens.
Não é à
toa que suas associações de classe são recebidas nos gabinetes parlamentares e
em órgãos de gestão financeira do executivo com tapete vermelho, água gelada e
café, enquanto aos servidores comuns e mortais só resta a via da greve e das
manifestações públicas.
Não é à toa que essas categorias musculosas estão no
topo da cadeia alimentar do Estado brasileiro, recebendo ganhos
desproporcionalmente superiores a outros servidores que exercem suas funções
com igual ou maior denodo e risco pessoal que Suas Excelências. Trata-se de
grave distorção no sistema de remuneração do setor público brasileiro, que em
nada contribui para sua eficiência.
Ao invés
de querer colocar limites aos reclamos do Presidente do Senado Federal, a
Senhora Presidente do CNJ faria melhor em dar sua contribuição para a contenção
de atitudes de risco dos magistrados e buscar diálogo entre poderes para impor
ordem ao sistema remuneratório do serviço público federal.
O melhor
caminho para isso seria a desvinculação de todos os ganhos de servidores
daqueles de atores que estão em posição de puxar o trem e gastos com aumentos a
seu favor: Presidente e Vice-Presidente da República, Ministros de Estado,
Ministros do Supremo Tribunal Federal, Deputados e Senadores.
Norma constitucional deveria vedar essa vinculação e
dispor que o teto do serviço público (excluídos o dos atores políticos
mencionados) fosse estabelecido pela Lei de Diretrizes Orçamentárias e o ganho
de cada categoria devesse guardar proporção, com base nos vetores de risco e
complexidade, com as demais, de sorte que não se admita que um general de
exército ganhe brutos em torno de 14.000 reais mensais, um professor titular de
universidade receba cerca de 12.000 reais, quando um jovem membro do ministério
público seja remunerado com quase 30.000 reais no mesmo período.
Para
articular essa revolução de ganhos, que seja capaz de neutralizar condutas de
risco de categorias por prestígio, é fundamental o consenso entre os poderes da
República, para constituir o SINAGEPE – Sistema Nacional de Gestão de Pessoal,
integrando os três poderes e, aos poucos, as administrações estaduais e
municipais através de matriz única de ganhos, quiçá regionalizando-a e
submetendo-a a um fundo solidário de compensação de debilidades financeiras dos
entes que compõem a Federação.
Só assim
se coloca cada agente do Estado em seu quadrado. Zela-se pelo controle
universal de gastos de pessoal e se moraliza a atuação dos diversos atores nos
três poderes de modo a se estabelecer, no Brasil, pela primeira vez, um “Berufsbeamtentum”,
um funcionalismo profissional como existe em outras economias mais fortes deste
planeta.
*Ex-Ministro da Justiça e Professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Brasília
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