Folha.com, 28/10/16
Ensino mutilado
Por Vladimir Safatle*
Na semana passada, o relator da medida provisória sobre as modificações do ensino médio, editada por aquilo que alguns chamam de "governo", fez algumas considerações a respeito de suas preferências. Dentre elas, ele sugere que as disciplinas de filosofia e sociologia deixem de ser disciplinas de fato e se transformem em "conteúdos transversais" lecionados em aulas de história. Ou seja, mesmo que seus filhos escolham seguir uma concentração em ciências humanas, tais conteúdos não seriam mais oferecidos como disciplinas autônomas, o que vai contra todo o discurso a respeito de oferecer mais condições para os alunos aprofundarem seus interesses efetivos.
Essa consideração do senhor relator nos leva, no entanto, a colocar questões a respeito da importância do ensino de filosofia e sociologia para adolescentes. Afinal, devem nossos adolescentes aprender filosofia e sociologia? Pois é claro que a proposta de reduzi-las a "conteúdos transversais" é apenas uma maneira um pouco mais cínica de retirá-las. Um professor de história, embora possa e deva conhecer questões de filosofia e sociologia que são pertinentes a seu objeto de estudo, não teria condições de tratar de tais conteúdos com a profundidade devida à docência.
Na verdade, o que procura se colocar é que filosofia e sociologia não são tão relevantes assim e poderiam muito bem ser eliminadas como disciplinas. Seus filhos poderiam muito bem viver sem elas. Mas coloquemos a questão implícita neste debate na sua forma correta, a saber: por que há setores da sociedade brasileira que se incomodam tanto com seus filhos aprendendo filosofia e sociologia?
Poderíamos contra-argumentar dizendo não se tratar de incômodo, mas de uma simples análise de prioridades. A prioridade na formação seria garantir a empregabilidade e a qualificação técnica. Nesse sentido, há de se cortar o que é supérfluo. Por outro lado, os estudantes brasileiros são sempre mal avaliados em disciplinas básicas, como línguas e matemática. Melhor então focar o essencial.
No entanto, tais argumentos não se sustentam. Limitar nossos alunos ao básico não é o melhor caminho para levá-los a lidar com realidades complexas e em mutação, como são nossas sociedades contemporâneas. Eles não conseguirão tomar melhores decisões com uma formação mais limitada. Por outro lado, se seus conhecimentos de línguas e matemática são deficitários, não é por alguma forma de "excesso" de disciplinas, mas pela péssima qualidade de nossas escolas, pela precarização de nossos professores (só o Estado de São Paulo perdeu 44.500 professores apenas nos últimos dois anos) e pela ausência de cultura literária de muitas famílias.
Nesse sentido, há de se lembrar o que significa aprender filosofia e sociologia. O ensino da filosofia, por exemplo, pressupõe o desenvolvimento de algumas habilidades fundamentais. Lembremos de ao menos três: a capacidade de constituir problemas a partir da crítica a pressupostos aparentemente naturalizados, a capacidade de articular problemas em campos aparentemente dispersos, desenvolvendo assim um forte pensamento de relações e quebrando a tendência atual em isolar o pensamento em especialidades incomunicáveis. Isto significa ser capaz, por exemplo, de compreender como questões éticas têm relações com questões de teoria do conhecimento, de estética, de política e de lógica, entre outras.
Por fim, e esta é sua característica mais impressionante, o aprendizado da filosofia pressupõe a capacidade de pensar como um outro. Lembro-me de um professor que, ao ver muita pressa em "refutar" Descartes, olhou para mim com sua sabedoria costumeira e disse: "Veja, não é possível ler um filósofo com luvas de boxe". Ou seja, é necessário saber, por um momento, pensar como um outro, até para poder se contrapor com mais propriedade.
Bem, é isto que alguns querem que seus filhos não aprendam. Eles sabem muito bem por que querem isso. Temo que o verdadeiro objetivo não tenha relação alguma com o futuro profissional de seus filhos. Temo que, no fundo, queira-se calar, de uma vez por todas, o projeto de alguns de nossos maiores filósofos, como Condorcet, quem dizia: "A função da educação pública é tornar o povo indócil e difícil de governar".
*Professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo).
Na semana passada, o relator da medida provisória sobre as modificações do ensino médio, editada por aquilo que alguns chamam de "governo", fez algumas considerações a respeito de suas preferências. Dentre elas, ele sugere que as disciplinas de filosofia e sociologia deixem de ser disciplinas de fato e se transformem em "conteúdos transversais" lecionados em aulas de história. Ou seja, mesmo que seus filhos escolham seguir uma concentração em ciências humanas, tais conteúdos não seriam mais oferecidos como disciplinas autônomas, o que vai contra todo o discurso a respeito de oferecer mais condições para os alunos aprofundarem seus interesses efetivos.
Essa consideração do senhor relator nos leva, no entanto, a colocar questões a respeito da importância do ensino de filosofia e sociologia para adolescentes. Afinal, devem nossos adolescentes aprender filosofia e sociologia? Pois é claro que a proposta de reduzi-las a "conteúdos transversais" é apenas uma maneira um pouco mais cínica de retirá-las. Um professor de história, embora possa e deva conhecer questões de filosofia e sociologia que são pertinentes a seu objeto de estudo, não teria condições de tratar de tais conteúdos com a profundidade devida à docência.
Na verdade, o que procura se colocar é que filosofia e sociologia não são tão relevantes assim e poderiam muito bem ser eliminadas como disciplinas. Seus filhos poderiam muito bem viver sem elas. Mas coloquemos a questão implícita neste debate na sua forma correta, a saber: por que há setores da sociedade brasileira que se incomodam tanto com seus filhos aprendendo filosofia e sociologia?
Poderíamos contra-argumentar dizendo não se tratar de incômodo, mas de uma simples análise de prioridades. A prioridade na formação seria garantir a empregabilidade e a qualificação técnica. Nesse sentido, há de se cortar o que é supérfluo. Por outro lado, os estudantes brasileiros são sempre mal avaliados em disciplinas básicas, como línguas e matemática. Melhor então focar o essencial.
No entanto, tais argumentos não se sustentam. Limitar nossos alunos ao básico não é o melhor caminho para levá-los a lidar com realidades complexas e em mutação, como são nossas sociedades contemporâneas. Eles não conseguirão tomar melhores decisões com uma formação mais limitada. Por outro lado, se seus conhecimentos de línguas e matemática são deficitários, não é por alguma forma de "excesso" de disciplinas, mas pela péssima qualidade de nossas escolas, pela precarização de nossos professores (só o Estado de São Paulo perdeu 44.500 professores apenas nos últimos dois anos) e pela ausência de cultura literária de muitas famílias.
Nesse sentido, há de se lembrar o que significa aprender filosofia e sociologia. O ensino da filosofia, por exemplo, pressupõe o desenvolvimento de algumas habilidades fundamentais. Lembremos de ao menos três: a capacidade de constituir problemas a partir da crítica a pressupostos aparentemente naturalizados, a capacidade de articular problemas em campos aparentemente dispersos, desenvolvendo assim um forte pensamento de relações e quebrando a tendência atual em isolar o pensamento em especialidades incomunicáveis. Isto significa ser capaz, por exemplo, de compreender como questões éticas têm relações com questões de teoria do conhecimento, de estética, de política e de lógica, entre outras.
Por fim, e esta é sua característica mais impressionante, o aprendizado da filosofia pressupõe a capacidade de pensar como um outro. Lembro-me de um professor que, ao ver muita pressa em "refutar" Descartes, olhou para mim com sua sabedoria costumeira e disse: "Veja, não é possível ler um filósofo com luvas de boxe". Ou seja, é necessário saber, por um momento, pensar como um outro, até para poder se contrapor com mais propriedade.
Bem, é isto que alguns querem que seus filhos não aprendam. Eles sabem muito bem por que querem isso. Temo que o verdadeiro objetivo não tenha relação alguma com o futuro profissional de seus filhos. Temo que, no fundo, queira-se calar, de uma vez por todas, o projeto de alguns de nossos maiores filósofos, como Condorcet, quem dizia: "A função da educação pública é tornar o povo indócil e difícil de governar".
*Professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo).
Folha.com, 27/10/16
A aula de resistência dos estudantes
Por Guilherme Boulos*
Começou no Paraná. Já se espraiou por vários Estados do país, de norte a sul. Os estudantes brasileiros ocupam mais de mil instituições de ensino contra a Medida Provisória do ensino médio e a PEC 241. Sim, mais de mil escolas ocupadas, sendo 850 delas no Paraná, que se tornou o coração da resistência estudantil.
Os ventos da primavera secundarista do ano passado, protagonizada pelos estudantes de São Paulo, voltam a soprar. Naquela ocasião, o movimento derrotou a famigerada proposta de "reorganização escolar" do governo Geraldo Alckmin (PSDB), vencendo as velhas tentativas de desmoralização e criminalização da luta.
Rebeldes sem causa? Ora, as causas são muitas. A MP do ensino médio, editada sem qualquer debate com a sociedade, é a primeira delas. Representa a perda da universalidade no currículo, na contramão das tendências à interdisciplinaridade. Exclui das disciplinas obrigatórias filosofia e sociologia, áreas mais abertas à reflexão social. É a lógica da escola funcional ao mercado de trabalho, sem espaço para a formação de sujeitos críticos. E isso sem qualquer discussão com os principais interessados, estudantes e professores.
As ocupações se insurgem ainda contra a PEC 241, aprovada na última terça (25) pela Câmara dos Deputados. Essa PEC representa o desmonte da rede de proteção social garantida pela Constituição de 1988. Ao propor o congelamento dos investimentos públicos pelos próximos vinte anos impõe um severo retrocesso nos direitos e ameaça colapsar os serviços públicos, em especial a saúde e a educação.
Receita inédita, jamais adotada em qualquer país do mundo, ainda menos como cláusula constitucional. Algo assim não passou sequer pela cabeça de um Carlos Menen, na Argentina, de Fujimori, no Peru, ou de FHC. Nem os magos da austeridade do FMI (Fundo Monetário Internacional) chegaram a tal atrevimento. Se aprovada, os ganhos do crescimento econômico nas próximas duas décadas não poderão ser destinados ao povo brasileiro. A saúde, a educação e o futuro estarão congelados.
Vale acrescentar que essas duas medidas são encampadas por um governo sem nenhuma legitimidade social, sem respaldo no voto popular. Como um rolo compressor, usando sua maioria parlamentar fisiológica, impõe à sociedade um programa que ninguém escolheu. E, afora as importantes iniciativas de mobilização dos movimentos populares, a maioria ainda reage com apatia ou perplexidade.
Neste cenário, as ocupações estudantis no Paraná e em todo o país são uma lição de resistência. Merecem a atenção e o apoio de todos aqueles que, compreendendo a gravidade dos retrocessos em curso, querem um Brasil mais justo e democrático.
Atenção que a imprensa recusa de modo espantoso. Mais de mil escolas ocupadas, um movimento de dimensões inéditas no país e nenhum destaque midiático. Por seu lado, o governador Beto Richa (PSDB), que já mostrou do que é capaz contra os professores paranaenses, incita a violência estimulando pais e outros alunos contra o movimento das ocupações.
No entanto, os estudantes resistem. Jovens que deixam a mensagem de que a esperança do futuro pode vencer o porrete e romper o silêncio. É preciso aprender com eles.
*Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.
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