CartaCapital,
11/10/16
Projeto permite exposição de adolescentes suspeitos de ato infracional
Por
Helena Martins*
A Comissão de Ciência e
Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL)
7.553/2014, que pode significar um grande retrocesso no campo dos
direitos humanos no Brasil.
Isso
porque a proposta objetiva alterar o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), a fim de permitir a divulgação de imagem de
criança e adolescente a quem se atribua ato infracional.
Relator
do projeto, o deputado Cláudio Cajado (DEM/BA) defendeu, em parecer, que a
exposição das imagens, inclusive de suspeitos, pode facilitar “a detenção e
punição do menor infrator”.
Em
substitutivo apresentado à CCTCI, ele acrescentou apenas que a mudança
legislativa deverá ser gradual, sendo a exposição permitida para casos
envolvendo jovens com pelo menos 14 anos e que tenham se envolvido em crimes
com pena privativa de liberdade igual ou superior a dois anos.
O deputado argumenta que a
exposição de imagens de câmeras, por exemplo, pode garantir maior segurança da
comunidade, pois a proibição estaria impedindo a apuração dos fatos.
A argumentação obviamente é uma falácia populista.A vedação à exposição pela imprensa
em nada impede que as imagens sejam utilizadas em procedimentos de investigação
pelos órgãos competentes.
O que a regra atual impede, sim,
é o desrespeito à presunção de inocência, princípio garantido em nossa
Constituição, bem como a condenação midiática.
Hoje, o
ECA estabelece como infração administrativa a exibição, total ou parcial, de
fotografia de criança ou adolescente suspeito de envolvimento em ato
infracional.
A
identificação por meio de referência a nome, apelido, filiação, parentesco,
residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome, também é vedada. Vale
ressaltar que o direito à imagem é garantido a toda a população brasileira.
Nas
situações em questão, ela se reveste de maior legitimidade, tendo em vista que
toda a legislação produzida no Brasil sobre crianças e adolescentes tem
especial preocupação com a proteção desses segmentos, dada sua condição
peculiar de desenvolvimento, a proteção integral e a busca por se considerar,
sempre, o melhor interesse deles.
Fruto de
um processo de amplo debate, participação da sociedade civil e avanços na
compreensão sobre os direitos, o ECA não apenas protege a personalidade; sua
redação busca evitar que as imagens sirvam para reforçar estigmas como o de
marginal, historicamente presentes nas narrativas sobre o universo
infanto-juvenil.
Não à toa, esse mesmo instrumento
tem sido frequentemente atacado ou desrespeitado por setores conservadores,
inclusive da própria mídia, peça fundamental do jogo de criminalização e exclusão
de determinados setores, bem como de legitimação de propostas regressivas no
campo dos direitos humanos.
Um
exemplo é elucidativo. Em 2015, na semana em que o Congresso Nacional discutia
a proposta de redução da maioridade penal, a
revista Veja trouxe como matéria principal o “Especial Maioridade Penal”.
Logo na
capa, a publicação, que naquela edição teve uma tiragem de mais de um milhão de
exemplares, apresentava fotos embaçadas de quatro adolescentes suspeitos de
terem participado de estupro e tentativa de homicídio em Castelo, Piauí. As iniciais dos nomes de todos eles eram,
então, seguidas das frases: “Eles estupraram, torturaram,
desfiguraram e mataram. Vão ficar impunes?”.
No
interior daquela edição (de número 2.430), as
fotos e as iniciais dos nomes dos adolescentes também foram apresentadas,
facilitando a identificação dos mesmos. O título sugeria impunidade:
“Justiça só para maiores”.A chamada da
matéria antecipava o julgamento e a condenação: “Os jovens que participam do
estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no
máximo, três anos internados. Isso é justo?”.
A exposição dos adolescentes
motivou representação do Intervozes
junto ao Ministério Público Federal (MPF), que considerou que o caso não estava
dentro de suas atribuições, pois a reportagem foi feita por empresa privada,
que não presta serviço público federal, embora a vedação à divulgação da imagem
conste em legislação federal. O MPF encaminhou ao MP estadual. Até hoje, nada foi feito.
Impune, a
revista Veja utilizou toda sua capilaridade para promover verdadeira
campanha em defesa da redução da maioridade penal, utilizando-se, para tanto,
de caso com forte apelo junto à sociedade que envolvia adolescentes – e também um
adulto que, como em outras matérias, teve sua participação no crime
relativizada.
O impacto da veiculação
dificilmente poderia ser revertido mesmo com decisão judicial, dado o lapso
temporal e a dificuldade de um direito de resposta, por exemplo, atingir e
convencer as mesmas pessoas que leram o conteúdo original e violador de
direitos.
Essa dinâmica da recepção da
comunicação exige que a publicação das notícias seja absolutamente cuidadosa,
sob o risco de condenar socialmente, para sempre, pessoas que podem ser
inocentes.
É preciso
deixar nítido o real impacto de uma medida como a proposta, no momento em que
vivemos de avanço do conservadorismo no Brasil e, especificamente, em relação à
garantia dos direitos de crianças e adolescentes, como exemplifica recente decisão do Supremo Tribunal Federal
(STF) de derrubar o mecanismo de vinculação do horário da programação da
televisão à Classificação Indicativa.
O que os legisladores brasileiros
estão fazendo é preparar o terreno para maior exploração comercial desses
públicos, seja como consumidores ou como “atrações” que geram audiência e lucros.
Mas o
impacto é ainda maior. O interesse comercial caminha ao lado do interesse
político de criminalizar a juventude negra e periférica, que é
insistentemente representada em programas policialescos como criminosa e
passível das penas mais duras, como a de privação de liberdade ou, por fora do
sistema de justiça formal, da ação repressiva das forças policiais ou mesmo do
extermínio.
Essa
lógica tem sido denunciada pela campanha
Mídia Sem Violações de Direitos, articulada,
neste ano, com o objetivo de denunciar os programas policialescos e lutar pelo
respeito aos direitos humanos. É preciso que ela seja compreendida por toda
a sociedade para que possamos unir forças para enfrentar interesses tão fortes
e protegidos pelo status quo.
Se
aprovado o PL 7.553/2014, a caçada que hoje assistimos contra os “menores” será
ampliada, assim como a oferta de falsas saídas para o problema da segurança
pública em nosso país. Para evitar que isso ocorra, precisamos organizar a
resistência e incidir no processo legislativo, apesar das dificuldades de
obtermos conquista naquele espaço.
Os
próximos passos do projeto já estão definidos. Ele será objeto de deliberação
na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, onde será
relatado pelo deputado Paulo Martins (PSDB-PR). Depois, deve ser discutido pela
Comissão de Seguridade Social e Família e pela Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania para, então, ser votado em plenário.
A sociedade
brasileira, que há poucas décadas foi capaz de produzir uma das legislações
mais avançadas do mundo em termos de garantia dos direitos das crianças e dos
adolescentes, tem que ser capaz de resistir à destruição desse patrimônio
coletivo, o que tem ocorrido por meio do discurso midiático e de projetos que
fragilizam o ECA. E mais: ela tem que
ser capaz de enfrentar a criminalização de uma geração inteira.
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