terça-feira, 11 de outubro de 2016

Retorno dos tempos das primeiras-damas é projeto de retrocesso





Justificando, 11 de outubro de 2016



Retorno dos tempos das primeiras-damas é um projeto de retrocesso


 

Por Sinara Gumieri*



Em maio, o presidente não-eleito Michel Temer anunciava o retorno dos tempos das primeiras-damas: dizia que, se assumisse definitivamente a presidência, Marcela Temer iria trabalhar na “área social, (…) porque tem muita preocupação com as questões sociais”. Há poucos dias, Marcela Temer discursou no lançamento oficial do Programa Criança Feliz, vagamente descrito no Decreto n. 8.869/2016 como estratégia de integração de políticas públicas para mulheres grávidas, crianças de até seis anos e famílias beneficiárias de programas de assistência social.  

Marcela Temer não é gestora do programa, tem um título não-oficial de embaixadora. Em suas próprias palavras, “quem ajuda os outros, muda histórias de vida. Por isso, fico feliz por colaborar com causas sociais do nosso país”. Descreveu sua atuação como “trabalho voluntário de sensibilização e mobilização” para melhoria de vida das pessoas.

O primeiro-damismo é um projeto de retrocesso, tanto para a participação política de mulheres quanto para a política social. Marcela Temer não é servidora pública, não foi eleita para nenhum cargo, não trabalha com políticas públicas, mas fala em nome do governo e mobiliza recursos, e sem o dever de prestar contas. Sua função de legitimar a atuação política do marido Temer é evidente. Em meio à desigualdade política que faz com que mulheres sejam mais da metade da população e menos de 10% no Congresso Nacional, e em uma presidência que só escolheu homens para altos cargos do executivo.

O próprio Michel Temer quem explica o que se espera da primeira-dama: “Marcela como embaixadora visa exatamente incentivar as senhoras mulheres do país”. Aparentemente, incentivar que mulheres saibam que seu lugar na política é fora dela, mas sempre apoiando e emprestando sua imagem caridosa ao governo dos homens.

A vagueza do termo “área social” como domínio de primeiras-damas é adequada para demarcar o que é secundário na agenda política atual, entregue à boa vontade do voluntarismo das damas. No discurso de Marcela Temer, a política social perdeu seu vocabulário constitucional: não se fala em garantia de direitos sociais de crianças e adolescentes, ou da assistência social que deve ser prestada a quem dela necessitar. Em vez disso, a embaixadora baseou-se em seu instinto materno para apostar no carinho durante a primeira infância – frequentemente tratado como responsabilidade exclusiva de mulheres cuidadoras sobrevivendo em trabalhos precarizados – como estratégia para “inibir comportamentos agressivos e violentos na adolescência”. 

Sobre o Programa Crianças Feliz, no entanto, faltou saber se a felicidade virá só do afeto por decreto, ou se vai haver escolas de qualidade, segurança alimentar, acesso a bons hospitais e postos de saúde, opções de lazer, moradia e espaços para brincar e crescer em segurança.

Marcela Temer não está só entre mulheres embaixadoras de governos dos maridos: Bia Dória, futura primeira-dama da cidade de São Paulo, acaba de dizer em entrevista que se sente do povo, e que a redução da desigualdade social seria ótima para que trabalhadoras domésticas chegassem a sua casa “já sabendo fazer as coisas”. Mas o discurso de Marcela Temer é coerente: o fundamento do Programa Criança Feliz é carinho, e carinho é de graça. Precisa mesmo ser, já que um dos principais projetos de Michel Temer no momento é a aprovação da PEC 241, que pretende congelar investimentos sociais em saúde e educação por 20 anos.  


*Advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.

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