Carta Maior, 28/10/2016
Lula, 71 anos
de uma criação coletiva do povo brasileiro
Por Saul Leblon
Lula não começa nem termina nele
mesmo.
Num dos comícios da campanha de 2002, o então
candidato Luís Inácio Lula da Silva assim se definiu: ‘Eu sou uma criação das
lutas sociais do povo brasileiro’.
Essa síntese completa agora 71 anos.
Quantos setenta e um anos serão necessários para
surgir uma outra personificação do geral no particular que expresse o conjunto
e ainda seja capaz de ter a intuição, a vivacidade, a força e a singularidade
cativante de carne e osso de um Lula?
Com todas as fraquezas da carne e
do osso ele é o maior líder popular da história brasileira.
Com todas as adversidades e equívocos de um regime
político que sonegaria a sua presidência a maioria no Congresso – ao custo
sabido e agora cobrado - fez o melhor ciclo de governos da história
brasileira, ombreando-se a outro gigante, este vindo da elite, Getúlio Vargas.
Agora que a propaganda do golpe desidrata na fornalha de uma economia que borbulha e regurgita catástrofes nos seus próprios termos, fica evidente a importância de se ter um Lula no patrimônio das ferramentas necessárias à reordenação da sociedade e do desenvolvimento brasileiros.
A crise na qual a restauração neoliberal afoga a
população, o emprego, as contas públicas e a produção escancarou a fraude que
atribuía ao PT o desmanche do Brasil.
Constatar a farsa do que prometia o golpe, porém, não
basta mais.
Não é um fim em si apontar o desastre da restauração
conservadora no país.
O mais urgente é superá-la antes que condene essa e a
próxima geração.
É preciso dialogar com os que foram seduzidos pelo
monólogo diuturno da fatalidade elitista e oligárquica.
Se Lula será candidato ou cabo eleitoral em 2018, se
Moro terá ou não a audácia crepuscular de liquidar seus direitos políticos antes
que desabe o regime ao qual pertence, são conjecturas.
Mas há uma certeza no centro da qual o nome de Luís
Inácio Lula da Silva se inscreve encastoado como a pedra angular de todo o
edifício.
É preciso repactuar o futuro do Brasil e ninguém – nem
Moro, na sua megalomania - imagina que isso é factível sem ter na mesa a
cadeira cativa daquele que é capaz de conversar com o povo e com a juventude,
com o trabalhador, o desempregado e o empresário produtivo, com o
investidor internacional e com o pai de família que luta por um teto nas
periferias do país, ou por um pedaço de terra nos confins do Brasil.
Lula é uma síntese da luta social que acredita no
diálogo como parte da luta.
E na luta como parte do diálogo.
Por certo amadureceu esse ponto de equilíbrio nas
lições da experiência recente.
Hoje, e talvez mais que nunca, personifica uma
singular área de porosidade política de valor inestimável na superação
progressista do impasse vivido pela democracia brasileira.
Para evitar a força de atração desse magnetismo
mediador no palanque de 2018, como candidato ou cabo eleitoral, o que sobrou ao
golpismo?
Sobrou a última carta na mesa: decidir 2018 em 2017.
Um golpe dentro do golpe precificado desde já na
conflagração entre milícias, grupos, trânsfugas, oportunistas e desesperados.
Para isso será necessário consumar aquilo que hoje tem
menor probabilidade de êxito do que ontem e, por certo, guarda mais chances do
que amanhã.
Ou seja, matar, picar, salgar, espalhar partes
do carisma e da credibilidade de Lula pelas ruas, praças, vilas, periferias,
vizinhanças e campos de todo o país.
'Esse homem não pode ser candidato; se for é capaz de vencer; se vencer será impossível impedi-lo de assumir; se assumir pode fazer outro grande governo.’
'Esse homem não pode ser candidato; se for é capaz de vencer; se vencer será impossível impedi-lo de assumir; se assumir pode fazer outro grande governo.’
Essa é a versão corrente para o que dizia Lacerda em
junho de 1950.
O ‘Corvo’, no afetuoso apelido que lhe deu, então, o
jornalista Samuel Wainer, tentava igualmente abortar a candidatura de
Vargas à presidência da República, alvejada à queima roupa e à luz do dia:
‘Esse homem não pode ser candidato; se candidato não pode ser eleito; se
eleito não deve tomar posse; se tomar posse não deve governar’.
A caçada a Lula reflete a velocidade vertiginosa da
urgência conservadora antes que ele retome o fôlego e o fôlego tome de vez as
ruas.
Vale tudo não é força de expressão.
É o nome da pauta interativa que conecta o desespero
das redações a fileiras do judiciário partidarizado.
De onde virá a pá de cal?
Do pesqueiro que ele frequenta? Do estádio de futebol
que ele ‘ganhou de presente’ de uma empreiteira, como estampou a sofreguidão
conservadora impressa com o logotipo de um jornal paulista? Da canoa de alumínio
de R$ 4 mil reais? Do apartamento que, afinal, não comprou? De um delator
desesperado? De alguém coagido pela Califado de Curitiba, disposto a qualquer
coisa para proteger familiares retidos e ameaçados?
Eles não vão parar.
Desfrutáveis rapazes e moças denominados ‘jornalistas
investigativos’ inscrevem-se nas mais diferentes façanhas para antecipar o
desfecho ansiado, antes que resistência que se espalha aborte o
cronograma.
Procuradores procuram febrilmente a pauta da semana,
auxiliados por redações interativas.
Não há limites.
Como demonstra a invasão ilegal do Senado pela Polícia
Federal, a dinâmica é a do regime de exceção: adaptar a lei às necessidades de
manutenção no poder da coalizão que assaltou o mandato da Presidenta Dilma
Rousseff.
A narrativa geral do desespero vem adaptada ao sotaque
de cada público. Desde a mais crua, às colunas especializadas em conspirar com
afetação pretensamente macroeconômica ou jurídica.
A mensagem vibra a contagem regressiva em direção a
‘ele’.
‘Ele’ é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser
pendurada no espaço central da parede onde já figuram outras peças preciosas,
embalsamadas pela taxidermia conservadora.
A sentença de morte política foi lavrada em 2005/06,
quando se concluiu que pela via eleitoral Lula seria imbatível diante das
opções disponíveis.
A partir de então seu entorno e depois o seu próprio
pescoço seriam espremidos num garrote que agora range, acelera, hesita, derrapa
e ainda não conseguiu completar as derradeiras voltas do parafuso vil.
O assalto final será indolor à matilha que o conduz?
A contagem regressiva bateu na porta do imponderável.
A coalizão golpista ingressou precocemente naquela
etapa do entrudo em que ninguém é de ninguém.
Quem sobrará?
A pergunta política de resposta mais cobiçada nos dias
que correm sibila quatro letras abominadas pelo radicalismo golpista: ele pode
resistir?
Quem?
L-u-l-a.
Depende muito do discernimento das lideranças nascidas
dessa costela e até mesmo – ou quem sabe, principalmente - de algumas
referenciadas a marcos ideológicos que vão além dela.
São hoje as mais mobilizadas.
Amanhã serão as primeiras atingidas, se a ‘macrização’
do Brasil for bem sucedida.
Lula é refém da avaliação que o conjunto da esquerda
- e de setores democráticos e nacionalistas, bem como dos liberais
sinceros e de segmentos do empresariado produtivo - fizer de sua
importância para o futuro da democracia e do desenvolvimento do país.
É tão ou mais refém disso do que do sentenciamento
de Moro ou da mídia. Nestes já foi condenado.
Mas a intersecção de uma crise que irrompe mais grave
do que eles estavam preparados para enfrentar e a reação da rua diante dela
pode mudar o seu roteiro da guilhotina para o centro da repactuação brasileira.
Não é róseo o horizonte.
Há uma recidiva da crise mundial, cuja extensão e
profundidade o PT subestimou, Dilma subestimou, Lula subestimou.
Estamos a bordo desse túnel de horror escavado com a
ajuda dessa subestimação que jogou o Brasil abruptamente no liquidificador de
um acirramento da disputa pelo bolo mais magro, sem que se tivesse
preparado a população para isso.
O golpe penetrou nesse vazio. Mas também
subestimou o tamanho do vagalhão, crente de que satisfeitas as ‘expectativas’
dos mercados, com morte do ‘lulopopulismo’ e a violação da Carta de 88, o
crescimento saltaria etapas para coroar a legitimação do assalto ao poder.
Nada isenta Lula dos equívocos sabidos, que o tornaram
mais vulnerável nesse momento.
O embate, porém, vai muito além do que imagina o
bisturi (ambidestro) que resume a equação brasileira a lancetar o espaço do PT
e de Lula na urna eletrônica de 2018.
O passado continua a frequentar o presente na vida das
nações, através da sua gente, dos seus anseios, da memória que é um pedaço do
futuro.
O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de
milhões de brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na
pirâmide de renda.
Foi inconcluso porque atribuiu às gôndolas do
supermercado a tarefa de promover o salto de consciência que mudaria a
correlação de forças da sociedade.
A inclusão foi tão expressiva, porém, que sob a
cortina de fogo impiedosa do monopólio midiático, há quase uma década, acuado,
ferido, enxovalhado noite e dia, sem espaço de resposta, Lula ainda figura como
o nome que parte com 28% a 30% dos votos nas sondagens da corrida presidencial
para 2018.
Afobados colunistas cuidam de tranquilizar os patrões:
sua derrota é fatal diante de uma quase certa aliança conservadora no segundo
turno.
Em termos.
Com acesso diário à tevê que hoje lhe é sonegada, ao
rádio e ao debate, num cenário econômico que dificilmente será menos que
devastador, as alardeadas dianteiras dos seus principais adversários podem
derreter junto com o ‘crime’ de frequentar um pesqueiro em Atibaia ou de ter
sido favorecido por reformas em um ‘tríplex’ que, afinal, não lhe
pertence.
Em 1954, quando a direita já escalava as grades do
Catete e os jornais conservadores escalpelavam a reputação de quem quer que
rodeasse Vargas, sua morte política era comemorada por uma parte da
esquerda.
O varguismo era acusado, então, de ser um corredor
aberto ao imperialismo, um manipulador das massas.
Vargas não era um bolchevique. Nem Lula o é.
Tampouco detinha a representação de São Francisco de
Assis na terra.
Era um estancieiro.
Não fez a reforma agrária. Nunca viveu agruras, não
liderou greves, não leu Marx – perseguiu comunistas no seu primeiro governo.
Ao mesmo tempo, criou o salário mínimo, as leis
trabalhistas, peitou o imperialismo...
Vargas foi o que são líderes nacionais populares de
cada tempo concreto: seres contraditórios de carne e osso, exatamente por isso
magnéticos na personificação de um projeto de desenvolvimento em que o vórtice
selvagem do capital passa a ser domado pelas rédeas dos interesses sociais
organizados.
Vem de Varoufakis, o ex-ministro da Fazenda da Grécia,
a preciosa síntese do que está em jogo num mundo que é o avesso disso,
capturado pela desregulação dos mercados: ‘(a pedra de toque é) não deixar
nenhuma zona livre de democracia na sociedade’.
Nenhuma zona livre de democracia significa, sobretudo,
vetar ao mercado a prerrogativa de determinar o futuro da sociedade.
Lula tem seu espaço nesse enredo, do qual a emergência
luminosa das ocupações estudantis é só um exemplo daquilo que a participação
pode fazer para reformar de fato as bases do país, sem excluir sua razão de
ser: o povo brasileiro.
Quantas vozes arrebatadoras, como a de Ana Júlia, que
hipnotizou a rede social com seu discurso no legislativo de Curitiba em defesa
da participação dos estudantes, não estão à espera de uma oportunidade
para fulminar o fatalismo com o frescor e o desassombro, capazes de fazer
do Brasil o país que ele poderia ser mas ainda não é?
Em abril de 1953 uma parte da esquerda brasileira
considerava que Vargas não tinha mais espaço em um mutirão desse tipo.
Simultaneamente, uma ciranda de ataques
descomprometidos de qualquer outra lógica, que não a derrubada de um projeto de
desenvolvimento soberano, sacudia o entorno do governo que criara a Petrobras,
o BNDES e uma política de fortalecimento do mercado interno com forte
incremento do salário mínimo.
Lembra algo?
A dramaticidade do suicídio político mais devastador
da história iluminaria o discernimento popular gerando revolta diante do ódio
golpista que tirou a vida de Vargas.
Quem dispensava a Getúlio o tratamento dado a um
cachorro morto teve que reinventar a sua agenda com ligeireza para não ser
atropelado.
Sessenta e dois anos e dois meses depois do tiro que
sacudiu o país, a pressão atual do cerco conservador permite aquilatar a
virulência que foi aquele momento.
O Brasil está de novo submetido ao encalço de cascos
especializados em escoicear a nação, seu patrimônio e os direitos, poucos, de
sua gente miúda.
Dispara-se contra a nação o mesmo arsenal para alvos e
objetivos correlatos.
A mesma elasticidade ética reveste a ação da mídia
determinada a calafetar cada poro do país com uma gosma de nojo e
prostração.
Persiste, enfim, o cerco ao Catete.
A qualquer Catete – como já se disse neste espaço -
dentro do qual políticas públicas tentem pavimentar mais um trecho da
estrada inconclusa que leva à construção de uma democracia social no coração da
América Latina.
Esse é o tabuleiro da história no qual um peão
completa agora 71 anos sob o xeque mate de reis e rainhas que ameaçam
empurrá-lo para fora da mesa.
Mas que tem um trunfo não negligenciável: ser uma
síntese de representatividade capaz reorganizar o jogo, sem o quê o xadrez
brasileiro pode se converter em uma devastadora derrocada de peças de dominó.
Da qual nenhum deles escapará.
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