Henry Darger
Caliban, 13/10/16
Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo
Por Marcia Tiburi e Rubens R R Casara
Os
preconceitos não são inúteis. Eles tem uma função importantíssima na
economia psíquica do preconceituoso. Sem os preconceitos, a vida do
preconceituoso seria insuportável. Os preconceitos servem na prática
para favorecer uns e desfavorecer outros, para confirmar certezas
incontrastáveis, manter a ordem e descontextualizar os fenômenos. São
parte fundamental dos jogos de dominação e de poder, servem para
mistificar, para manipular, mas servem sobretudo para sustentar um ideal
falso na pessoa do preconceituoso, ideal acerca de si mesmo, um ideal
de “superioridade”, sem o qual os preconceitos seriam eliminados porque
perderiam, aí sim, a sua função fundante.
Ainda
que sejam psicológicos e não lógicos, daí a aparência de
irracionalidade, os preconceitos funcionam a partir de uma lógica
binária, bem simples, uma espécie de “lógica da identidade”, mas em um
sentido muito elementar, a lógica da medida que reduz tudo, seja a vida,
as culturas, as sociedades, as pessoas, ao parâmetro
“superior-inferior”. Preconceitos não funcionam fora de jogos de
linguagem que são jogos psíquicos, que produzem algum tipo de
compensação psíquica.
Vivemos
tempos de descompensação emocional profunda, em uma espécie de vazio
afetivo (junto com um vazio do pensamento e um vazio da ação que se
resolve em consumismo acrítico tanto de ideias quanto de mercadorias).
Nesses tempos, a oferta de preconceitos se torna imensa. No sistema de
preconceitos, o objeto do preconceito varia, conforme uma estranha
oferta: se há muitos judeus, pode-se dirigir o ódio, que é o afeto
básico do preconceito, contra eles. Se há mulheres, homossexuais,
negros, indígenas, lésbicas ou travestis, o ódio será lançado sobre
eles, conforme haja oportunidade. Verdade que o ódio é sempre dirigido
àquele que ameaça, ou seja, no fundo do ódio há muito medo. O
preconceituoso é, na verdade, em um sentido um pouco mais profundo,
alguém que tem muito medo, mas em vez de enfrentar seu medo com coragem,
ele usa a covardia, justamente porque é impotente para enfrentar seu
próprio medo.
O preconceituoso é, basicamente, um covarde.
Tendo
isso em vista, é importante falar de um preconceito que está em voga
nesse momento: o anti-intelectualismo. Há um ódio que se dirige
atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência, ao
esclarecimento, ao discernimento. Ao mesmo tempo, esse ódio é velado,
pois o lugar do saber é um lugar de poder que é interessante para
muitos. Se podemos falar em “coronelismo intelectual” como um uso
elitista do conhecimento, e de “ignorância populista”, como um uso
elitista da ignorância, como duas formas de exercer o poder manipulando o
campo do saber, podemos falar também de um ódio à inteligência, do seu
apagamento.
Há,
dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho
ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se
relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de
desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que
serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia
intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um
nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo
criminalizados.
Diversos
exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade
brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos
pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador
de políticas públicas do Ministério da Educação ao projeto repleto de
ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da
“negação do saber”) da “Escola sem partido”. Do silêncio em torno da
exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino
médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da
força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados
problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) ao
tratamento conferido aos professores em todo Brasil (na cidade do Rio de
Janeiro, uma das mais constantes críticas direcionadas ao candidato
Marcelo Freixo, que disputa o segundo turno das eleições municipais
contra o pastor licenciado da IURD Marcelo Crivella, é de que por ser
professor não falaria “a linguagem do povo”).
O
alto índice de abstenções, votos nulos e brancos (bem como a expressiva
votação de políticos que se apresentavam como não-políticos) também é
um sintoma do anti-intelectualismo, na medida em que o eleitor
identifica o político como aquele que detém o “saber político”, um
“saber” que foi demonizado pelos meios de comunicação de massa.
No
sistema de justiça ocorre o mesmo. O bom juiz é aquele que julga da
forma que o povo desinformado julgaria, mesmo que para isso seja
necessário ignorar a doutrina, as leis e a própria Constituição da
República. Por outro lado, não são raros os casos de juízes e promotores
de justiça que respondem a procedimentos administrativos acusados de
decidir contra o senso comum propagado pelos meios de comunicação de
massa.
Em
meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do
pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o
“messianismo” e a “peste”. O messianismo identifica-se com a construção
de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e
destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem
corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar
provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos
problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em
suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só
Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e
“peste”, fenômenos típicos de um conservadorismos carente de reflexão,
onde desaparece o saber e a educação.
A barbárie está em curso.
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