terça-feira, 18 de outubro de 2016

A PEC 241 e a cortina de fumaça do catastrofismo

http://jornalggn.com.br/noticia/cortina-de-fumaca-para-a-construcao-de-um-estado-minimo-por-emilio-chernavsky



Jornal GGN, 18/10/16



Cortina de fumaça para a construção de um Estado mínimo?


 
Por Emilio Chernavsky*




Na última segunda-feira 10 a Câmara dos Deputados aprovou em primeiro turno a PEC 241, Proposta de Emenda à Constituição que limita por vinte anos em termos reais os gastos primários da União aos valores realizados em 2016. Ela tem sido defendida no Congresso e nos meios de comunicação como indispensável para reverter o desequilíbrio fiscal do Governo Federal e salvar o país do desastre; segundo o relator da proposta na Câmara, "sem a sua aprovação, nossa economia entrará em colapso nos próximos anos, com devastadoras consequências para a coesão social. [...] o Dia do Juízo Fiscal chegará e atingirá a todos."

Tal previsão apocalíptica se apoia no diagnóstico de que o Brasil se encontra numa profunda crise fiscal, com uma trajetória explosiva de crescimento da dívida pública que aumentará seu custo de financiamento e levará, em um futuro próximo, à recusa por parte dos investidores em financiá-la; nessa situação, somente restaria ao governo aumentar fortemente os impostos ou recorrer à emissão inflacionária de moeda. Já antevendo essa possibilidade os empresários teriam deixado de investir, contribuindo para a recessão atual que se aprofundará se nada for feito. É nesse contexto que a PEC, ao sinalizar aos agentes o esforço em buscar a sustentabilidade da dívida seria crucial para rapidamente recuperar a confiança, reduzir a taxa de juros e retomar o investimento e, com ele, o crescimento econômico e a arrecadação fiscal.

É verdade que o país atravessa uma recessão profunda e que a situação fiscal não é confortável, e que a dívida pública assumiu nos últimos dois anos uma trajetória indesejada. Contudo, não é claro que a introdução de um limite aos gastos como o proposto pela PEC seja capaz de cumprir suas promessas, mesmo se sua permanência no tempo fosse crível – o que não é garantido diante dos sacrifícios que impõe à população e do desgaste político que provoca numa base governamental frágil. Com efeito, mesmo assumindo que a medida ajude a aumentar a confiança dos empresários no governo e a reduzir os juros, as perspectivas de rentabilidade do investimento produtivo são pouco promissoras. Isto porque o consumo interno deve permanecer em queda por um longo período com a continuidade da deterioração do mercado de trabalho e a cautela dos bancos em emprestar com a alta da inadimplência, e a demanda externa deve seguir prejudicada pela valorização real da taxa de câmbio e pela estagnação da economia internacional. Por outro lado, mesmo que o governo supere as dificuldades de regulação e financiamento e as empresas do setor resolvam seus problemas jurídicos e financeiros ou, ainda, firmas estrangeiras entrem no mercado, nada do que é certo, é difícil crer que o investimento em infraestrutura possa alavancar a economia em ambiente tão adverso. Sem a prometida retomada do investimento privado, e com o investimento público contido em função do limite aos gastos, a expansão do PIB e a arrecadação do governo não se recuperariam, e a dívida pública continuaria a crescer. Anunciada como imprescindível para retomar o crescimento e solucionar o problema fiscal, a PEC fracassaria na busca de ambos os objetivos.

Mesmo que isso ocorresse, o limite aos gastos poderia ainda ser defendido com base em sua contribuição para uma melhor administração das finanças públicas, uma vez que eleva a previsibilidade da política fiscal e evita o aumento de gastos em momentos favoráveis que acentua o ciclo econômico. Todavia, não parece ser esse o objetivo da proposta, pois, se assim fosse, o limite deveria, como tipicamente ocorre nos países em que é adotado, ser indexado à evolução do PIB ou da receita do governo, para que os gastos possam acompanhar a capacidade do país de custeá-los. Poderia também ser indexado à dívida pública, que é justamente o indicador que se pretende reduzir ou estabilizar. Ainda, poderia ser definido como uma taxa de crescimento em termos reais aplicada durante um período curto, possivelmente equivalente ao da legislatura, o que permitiria adaptar a política fiscal a choques adversos e a mudanças nas preferências da sociedade de forma clara e transparente.

Ao seguir outro caminho e inscrever na Constituição uma regra singularmente severa e inflexível que congela o total de gastos primários independentemente do crescimento do PIB e, especialmente, ao fixar a validade dessa regra para um período muito mais longo que o fixado em qualquer regra adotada no mundo, a proposta se afasta claramente das práticas internacionais e revela seu objetivo central: redesenhar o Estado para que a parcela do gasto público na renda nacional, hoje em torno de 40% do PIB segundo dados do FMI, situando o Brasil próximo à média dos países desenvolvidos, seja cada vez menor, chegando a algo entre 20 e 25% em vinte anos. Com isso, também cada vez menor seria a capacidade do Estado de reparar injustiças históricas e promover uma sociedade menos desigual por meio da transferência de recursos a seus estratos mais vulneráveis e do fornecimento de mais e melhores serviços públicos a uma população que cresce em número e em demandas.

A escolha do tamanho do Estado, ou seja, dos recursos que ele controla e das obrigações que possui, é uma escolha legítima a ser feita por um país democrático. O Brasil apontou na direção da construção de um Estado de bem-estar social na Constituição de 1988 que, com a PEC, o governo pretende desmontar e substituir por um Estado mínimo. Como dificilmente a população faria essa escolha de forma explícita pelo voto, é preciso uma cortina de fumaça para dissimulá-la. O catastrofismo em torno à ameaça de colapso econômico em caso da PEC não ser aprovada cumpre exatamente esse papel.


*Doutor em economia pela USP

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