Carta Capital, 28/10/16
O golpe será televisionado
Por Sergio Lirio
"Uma luz no fim do túnel”, decreta o editorial
de O Estado de S. Paulo da terça-feira 11, dia seguinte à aprovação na
Câmara dos Deputados da emenda constitucional que limita os gastos em saúde e educação.
“Piso para o futuro”, proclamava o editorial da Folha
de S.Paulo do dia anterior, em defesa da mesma emenda.
“Pós-impeachment destrava negócios e atrai
estrangeiros”, comemora a manchete da sexta-feira 14 do Valor Econômico.
“Gasolina deve cair mais e ajudar na redução de
juros”, prevê O Globo em sua manchete do sábado 15.
O esforço dos meios de comunicação tradicionais para
emular um ambiente positivo na política e na economia é perceptível a olhos
nus, basta trafegar pelas páginas de jornais ou dedicar algum tempo ao
noticiário na tevê e no rádio.
É possível, no entanto, demonstrá-lo de maneira mais
cabal. Um levantamento do site Manchetômetro, sistema de monitoramento das
notícias publicadas nos principais diários do Brasil gerenciado pelo
Laboratório de Mídia e Esfera Pública, ligado à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, transformou em gráfico a inflexão da cobertura dos temas econômicos
após o impeachment de Dilma Rousseff.
Conforme se vê acima, as menções negativas
despencaram a partir de abril deste ano, após atingir picos entre agosto de
2015 e fevereiro último, auge da campanha em favor da deposição da presidenta
eleita.
Outros dois gráficos complementam a interpretação do
comportamento da mídia: predominam no caso de Michel Temer as citações interpretadas pelo
laboratório como neutras, enquanto no caso de Dilma Rousseff as referências
negativas superam em muito aquelas positivas ou neutras. Da mesma forma, o pico
acontece no período mais intenso da operação para removê-la da Presidência da
República.
Criador do Manchetômetro, o professor João Feres Jr.
diz não ter dúvidas sobre o papel dos meios de comunicação no processo de derrubada
da presidenta: “A mídia trabalhou ativamente pelo impeachment”.
Feres Jr. destaca a “escalada brutal” das menções negativas à presidenta e à
economia após as eleições de 2014. Segundo ele, o tom anti-Dilma prevaleceu até
quando os temas eram controversos e exigiam, por sua natureza, uma postura mais
equilibrada do jornalismo.
“Certas delações premiadas e a condução coercitiva
do Lula foram tratadas como se encerrassem verdades absolutas. O mesmo não se
viu, para citar um caso, em relação ao Aécio Neves. Apesar de o nome do senador
ter sido mencionado ao menos seis vezes por delatores da Lava Jato, o total de menções
negativas a ele nem se compara.”
Feres Jr. não usa o termo, mas se o Manchetômetro
captou uma espécie de “jornalismo de guerra” contra Dilma Rousseff, é
previsível a mudança de humor dos meios de comunicação após a vitória
consumada. Diante de propostas e medidas de “ajuste fiscal” muito parecidas, a má vontade
transmutou-se em benevolência. Os indicadores econômicos, diga-se, não mudaram
de forma substancial, ao contrário, continuam a piorar e desautorizam a euforia
estampada nos jornais.
O desemprego beira os 12%, o Produto Interno Bruto
caiu 0,9 em agosto e 5,6% em doze meses, o País tornou-se um pária nas relações
internacionais, o que tende a afastar investidores estrangeiros, o número de
falências é recorde, os juros continuam escandalosos e o teto de gastos celebrados em editoriais vai
representar, segundo cálculos diversos, uma redução de quase 700 bilhões de
reais nos investimentos em saúde e educação ao longo dos próximos 20 anos.
Quiçá a “luz no fim do túnel” seja uma
autorreferência. Nenhum outro setor teve suas demandas atendidas com tanta
rapidez pelo novo governo. Os primeiros atos de Temer trataram de reconcentrar
os investimentos publicitários federais nos maiores veículos, boicotar quem tem
um posicionamento crítico, CartaCapital incluída, e desmontar o sistema
público de radiodifusão concebido no segundo mandato de Lula.
O jornalista Miguel do Rosário publicou em seu blog, 'O Cafezinho', os mais recentes dados oficiais de gastos publicitários do governo e das estatais. Surpresas? Nada. Entre maio e agosto, a TV Globo, que engolfa cerca de 60% dos anúncios no segmento, recebeu 24,4% a mais do governo federal do que em igual período do ano passado. O aumento do repasse para a Abril, que edita Veja, foi de 624,3%. A Folha de S.Paulo e seu portal UOL embolsaram 78,1% a mais. A Band, 1.129,4%.
Quando se comparam períodos mais longos (de janeiro
a agosto), aparecem informações curiosas como a extraordinária expansão de
3.759,4% nos repasses à revista Caras, de fofocas e celebridades. Tal
desempenho talvez explique a súbita decisão da Editora Abril, que em recente
reestruturação havia se livrado da publicação, de recolocar o título em seu
portfólio.
Não há informações sobre a IstoÉ. A revista
está, no entanto, recheada de anúncios federais, embora sua circulação não seja
mais auditada pelo IVC, principal órgão de verificação do mercado editorial. Ou
seja, a União investe na publicação, embora não possua mais um dado confiável e
público a respeito do número de leitores da revista.
Apesar do estado de calamidade da economia e da
urgência de medidas para melhorar a situação fiscal do País, as primeiras
decisões de Temer, ainda na fase de interinidade, visaram o setor de
comunicação. No dia seguinte ao afastamento temporário de Dilma Rousseff pelo
Senado, o governo cancelou um patrocínio de 100 mil reais da Caixa Econômica
Federal para um seminário de blogueiros independentes (então acusados de
“dilmistas”) em Belo Horizonte.
Após a remoção definitiva da presidenta, as coisas
só pioraram. Por ordem da Secretaria de Comunicação, controlada pelo ministro Eliseu Padilha, foram cancelados os contratos com
sites e blogs progressistas (petistas, segundo o novo governo) no valor de 11
milhões de reais, quantia irrisória diante dos gastos bilionários em
publicidade estatal nos veículos tradicionais.
O governo justificou a decisão com o argumento de
que os anúncios federais devem ser publicados em produtores de notícia e não em
espaços de opinião. A Secom também foi orientada a excluir CartaCapital
de qualquer programação de mídia. A ordem tem sido cumprida à risca desde então.
Coincidência ou não, na mesma época o presidente da
Associação de Mídias Evangélicas, Orli Rodrigues, afirmou que Temer havia
prometido premiar as emissoras religiosas com publicidade estatal. O assunto
mereceu uma cobertura especial de O Globo e não se sabe se a promessa
foi ou será cumprida (em consequência da rixa com a Igreja Universal,
proprietária da Record, os Marinho têm restrições a esse tipo de iniciativa).
Além de cortar a publicidade de quem critica
explicitamente o processo de impeachment, Temer promoveu o desmonte da
tevê pública. Por meio de uma Medida Provisória, destituiu o jornalista Ricardo
Melo da presidência da Empresa Brasileira de Comunicação, eleito para um
mandato de quatro anos, e instalou em seu lugar Laerte Rímoli, apaniguado do
ex-deputado Eduardo Cunha, preso na quarta-feira 19 pela Operação Lava Jato.
A MP ainda extinguiu o Conselho Curador, criado
justamente para garantir o caráter público e não estatal da EBC. “O governo
agiu para enterrar de vez qualquer possibilidade de fortalecimento de um
projeto de tevê pública”, afirma Venício Lima, um dos principais estudiosos de
mídia do Brasil, atualmente pesquisador sênior do Centro de Estudos
Republicanos da Universidade Federal de Minas Gerais.
A EBC sempre foi tratada pelos meios de comunicação
privados como um arroubo “bolivariano” e doutrinário dos governos petistas, mas
é justamente sob a administração de Rímoli que se acumulam denúncias de
intervenção no conteúdo.
Funcionários da empresa, sob anonimato, relatam
frequentes casos de censura interna. Na cobertura da aprovação da PEC do teto
de gastos, entrevistas com parlamentares e especialistas contrários à medida
teriam sido proibidas ou desestimuladas. Não seria o único caso. Segundo esses
relatos, a EBC é, hoje, literalmente, uma tevê “chapa branca”.
Durante seminário em São Paulo no fim de setembro, o
uruguaio Edison Lanza, relator para a liberdade de
expressão da Organização dos Estados Americanos, declarou-se preocupado com a
intervenção na EBC, a tentativa de calar as vozes discordantes e a repressão
aos protestos contra Temer. “A falta de políticas para a pluralidade midiática no Brasil é um problema
grave para a democracia e para o próprio sistema de comunicação”, afirmou. “Não
existe democracia consolidada sem liberdade de expressão.”
Presidente do Barão de Itararé, centro de estudos da
mídia alternativa mantido por blogueiros independentes, Altamiro Borges recorre
a uma brincadeira para resumir o momento: “O governo Temer não tem as
preocupações republicanas do PT. Com a turma do PMDB, a conversa é outra. O
objetivo é sufocar quem os critica”.
Entenda-se o contexto das “preocupações
republicanas” petistas descritas por Borges. Constantemente acusados de
alimentar com dinheiro público meios de comunicação “simpáticos às suas
causas”, os governos de Lula e Dilma Rousseff oscilaram em suas políticas de
comunicação.
Salvo exceções, foram reações espasmódicas à
conjuntura, desconectadas de qualquer estratégia para ampliar e garantir a
pluralidade de informação. No segundo mandato de Lula, quando o jornalista Franklin Martins chefiava a Secom, foram adotados
critérios técnicos que ampliaram e regionalizaram a distribuição das verbas
publicitárias.
A quantidade de meios de comunicação agraciados com
publicidade estatal sextuplicaram: de cerca de 300 durante o governo Fernando
Henrique Cardoso para quase 2 mil, o que melhorou a eficiência da comunicação
do governo e, embora de maneira tímida, estimulou alguma diversidade de
opinião. Os sucessores de Martins no governo Dilma abandonaram, no entanto,
essa orientação e voltaram a reconcentrar os recursos nos oligopólios.
Resultado: apesar das acusações dos adversários
políticos e da mídia hegemônica, o PT reproduziu ao longo de seus 13 anos no
poder a lógica dos investimentos de governos anteriores, como se percebe no
gráfico abaixo.
Entre 2003 e 2014, a Globo recebeu mais de 6 bilhões
de reais em anúncios. CartaCapital, 61 milhões, média de 2 milhões por
ano. “A Dilma manteve anúncios naqueles meios de comunicação que ela chamou de
criminosos. Os principais veículos, alimentados com dinheiro público, apostaram
o tempo todo na desestabilização do governo”, ressalta Borges.
Trata-se de um cacoete do PT, diga-se. Ou um misto
de arrogância e ingenuidade. No primeiro mandato de Lula, o senador peemedebista
Roberto Requião defendeu a criação de uma rede
pública de comunicação, que só sairia do papel seis anos depois, e ouviu do
então ministro José Dirceu: “Para quê? Já temos a Globo”.
Dirceu hoje mofa na cadeia e não contou com nenhum
beneplácito da família Marinho. Antonio Palocci organizou uma operação de
salvamento da mesma Globo por meio do BNDES quando ocupava o Ministério da
Fazenda. Atualmente faz companhia a Dirceu em Curitiba.
E Dilma, sempre que confrontada com a tese da
necessidade de combater o oligopólio midiático, saía-se com o argumento batido
do poder do “controle remoto”, o poder de escolha do consumidor, como se
existisse uma gama heterodoxa de opções. Acabou destituída sem ter conseguido
explicar para a maioria dos eleitores que seu afastamento atropelou os
preceitos constitucionais.
Nenhum outro agrupamento partidário, lembra Borges,
atuou ou atua na comunicação pública com a preocupação de parecer isento e
transparente. Sob comando do PSDB há duas décadas, o estado de São Paulo, dono
do segundo maior orçamento publicitário da República, não parece se abalar com
as acusações de favorecer a “mídia simpática” a seu projeto de poder.
Segundo levantamento da jornalista Conceição Leme,
entre 2003 e 2014, o Estado gastou sem licitação 155,5 milhões de reais em
assinaturas dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo e
das revistas Veja, Época e IstoÉ. As edições foram
enviadas a bibliotecas públicas e escolas sob o pretexto de serem “fontes de
boa informação e educação”.
Não foram os únicos contemplados. Em cinco anos, o
governador Geraldo Alckmin aplicou 4,5 milhões de reais em publicações do
futuro prefeito da capital João Doria, seu correligionário. Doria edita,
entre outras, a fundamental revista Caviar Lifestyle.
O governo Temer não destoa da tendência na América
do Sul a partir da derrota de governos ditos de esquerda. Na Argentina, o
presidente Mauricio Macri igualmente fez questão de pagar um tributo à mídia ao
assumir. Entre as primeiras decisões de Macri figura o desmonte da lei de meios aprovada no último
mandato de Cristina Kirchner.
Detalhe: a legislação kirchnerista promoveu uma
reforma radical do setor, nunca pensada no Brasil. A “ley de medios” forçou a
desconcentração dos oligopólios, obrigou o Grupo Clarín a se desfazer de uma
série de empresas e transferiu para a tevê pública o controle da
transmissão dos jogos de futebol.
Aqui, a influência da Globo sobre a CBF e os clubes
não só distorce a concorrência no mercado de tevê. Ela está na raiz dos escândalos de corrupção investigados dentro e fora
do País (a maior parte da propina paga a dirigentes da Fifa saiu da negociação
dos direitos televisivos dos torneios internacionais).
Embora pontualmente se registrem recuos em favor de
interesses privados nas sólidas legislações de comunicação criadas no século XX
na maioria das nações, nada se assemelha à realidade brasileira. Os Estados Unidos,
o mais liberal dos países desenvolvidos, mantêm de pé regras centenárias que
impedem a concentração da mídia, entre elas, a proibição de um grupo deter em
uma mesma área concessões de rádio e tevê e editar jornais ou revistas.
Não existe conglomerado de mídia no planeta com
tanto poder concentrado quanto a Globo, destino de 60% da verba publicitária
total, associada nos estados a grupos políticos poderosos e dona dos maiores
veículos em praticamente todos os segmentos. No México, outro exemplo de forte
concentração, a Televisa ao menos disputa espaço com a TV Azteca.
Leis e recomendações continuam a ser produzidas no
exterior para evitar a formação de monopólios. Após o escândalo dos grampos
ilegais divulgados pelo “falecido” News of the World, do tycoon
Rupert Murdoch, o Reino Unido aprovou uma dura legislação de direito de
resposta e punição aos crimes cometidos por jornalistas.
O
relatório do juiz Brian Leveson, indicado para analisar o episódio e sugerir
medidas ao Parlamento, propôs uma nova lei de imprensa e a criação de um órgão
fiscalizador. O diagnóstico de Leveson se aplicaria perfeitamente ao Brasil:
“Setores da mídia agiram como se seu próprio código de conduta não existisse...
desprezo significativo e negligente em relação à verdade factual”.
O Banco
Mundial recomenda a adoção de critérios de distribuição de anúncios públicos
que estimulem a pluralidade de opiniões. Uma comissão da União Europeia fez
sugestões semelhantes aos associados: reservar uma parte dos investimentos para
veículos menores e comunitários, capazes de contemplar a diversidade de
pensamento existente na sociedade.
Países
como a França e a Itália tomam decisões de investimentos públicos baseadas não
só em critérios de audiência. Relevância e pluralidade são levados em conta. E
a concentração é proibida e desestimulada em praticamente toda a Europa.
No
Brasil, caminha-se na direção contrária. Enquanto o Executivo recria o
“bolsa-mídia”, a base aliada do governo Temer no Congresso parece disposta a
reduzir a liberdade de expressão na internet. O alvo é o Marco Civil aprovado durante o mandato de Dilma
Rousseff.
Um
projeto em tramitação pretende autorizar o bloqueio e a retirada de conteúdos
da rede e ao mesmo tempo atender ao lobby das operadoras de telefonia
para limitar o acesso de dados por meio da banda larga.
Em outras
palavras, o projeto cria internautas de primeira e segunda classe. “Se depender
do Temer e companhia”, avalia Borges, “viveremos um período de censura e obscurantismo nas áreas de comunicação e
cultura. São ações típicas de governos autoritários.”
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