Blog do Santayana, 31/10/16
Por um dólar furado
Por
Mauro Santayana
No final
da década de 1980, embarcando em um vôo da Lufthansa - não havia lugar nos
aviões da Varig naquele dia - do Rio de Janeiro para a Alemanha, tive o
dissabor de ser revistado, no tubo que levava à aeronave (tecnicamente já
território alemão, assim como o próprio avião) por policiais germânicos, que
examinavam criteriosa e ostensivamente os passageiros brasileiros ou
latino-americanos, e deixavam passar os outros, principalmente quando se
tratava de europeus ou de pessoas de sua própria nacionalidade.
Indignado
com a cara de pau dos sujeitos, e, principalmente com a do governo da Alemanha
Ocidental, desembarquei em Frankfurt e telefonei imediatamente para o então
Ministro da Justiça, Fernando Lyra, a quem conhecia, e com quem convivia, desde
a luta pela redemocratização, a quem sugeri que fizéssemos o mesmo, colocando
uma equipe de agentes da Polícia Federal revistando os passageiros que
embarcassem no Rio e em São Paulo em aviões da Varig com destino à Alemanha, e
que o fizessem apenas com os alemães, deixando passar, incólumes, os
brasileiros e os de outras nacionalidades.
Em menos
de uma semana, quando voltei ao Brasil, os corpulentos gringos haviam
desaparecido, com certeza chamados de volta a seu país, o que nos deu direito
de fazer o mesmo, dispensando a equipe da Polícia Federal de continuar revistando
os passageiros alemães dos aviões da Varig.
A
sutileza, na diplomacia, às vezes dispensa a papelada e os comunicados
oficiais. Tivemos a oportunidade de lembrar a eles, nesse episódio, dois velhos
ditados que os alemães atribuem à sua própria lavra: "das billige ist
immer das teuerste", a de que o barato acaba saindo sempre mais caro, e
"taten sagen mehr als worte", o de que as ações valem mais que as
palavras.
Esta
longa introdução vem ao caso, a propósito da absurda, para não dizer, imbecil, retomada
da decisão de se isentar, unilateralmente, de vistos, países ditos
"desenvolvidos", na sequência da também estúpida isenção “temporária”
- que já sabíamos que não seria temporária - desses vistos por ocasião da
Olimpíada de 2016, pelo governo Dilma - contra a qual nos posicionamos à época
- sem a exigência de reciprocidade.
Em
reunião no Palácio do Planalto, com a presença de quatro ministérios, o governo
atual já teria aprovado a prorrogação da medida, com a isenção de vistos para
australianos, japoneses, canadenses e, claro, norte-americanos; e, burramente -
em uma decisão que não esconde o patético viés ideológico - resolvido
deixar de fora a China por causa do "risco migratório", embora nossas
fronteiras sejam uma peneira por onde entra e sai, a seu bel prazer, gente do
mundo inteiro, especialmente chineses que podem ser vistos em qualquer esquina,
dos caixas dos restaurantes de quilo aos shoppings populares de artigos
contrabandeados.
Assim,
continuaremos com os imigrantes, que na maioria são gente honrada e
trabalhadora, mas que não gastam à tripa forra, e deixaremos de receber os
riquíssimos turistas chineses, que, além de deter quase a metade das reservas
internacionais do mundo, gastaram, no exterior, no ano passado, mais que os
turistas norte-americanos, japoneses, australianos e canadenses, somados.
Vê-se bem
que os ministros que aprovaram a medida nunca tiveram as filhas adolescentes -
nesse caso, brancas e de classe média, o que não pode atribuir ao racismo esse
problema - barradas em aeroportos norte-americanos e enviadas para abrigos,
como ocorreu recentemente com Anna Stéfane Radeck, de 16 anos, ou com Liliana
Matte, de 17, que ficou dias presa no aeroporto de Miami, embora estivessem
ambas com autorização de viagem dos pais e todos os documentos necessários.
Ou, quem
sabe, nunca ouviram falar do adolescente Roger Thomé Trindade, de 15 anos,
morto por espancamento, em um parque de Miami, também há poucos dias, por um
grupo de adolescentes norte-americanos, aparentemente pelo simples fato de ser
brasileiro.
Ou do
jovem Roberto Curti, assassinado pela polícia australiana, com sucessivos tiros
de taser, em 2012.
Ou da
senhora Dionísia Rosa da Silva, de 77 anos, barrada no aeroporto de Barajas, na
Espanha, e mantida detida em suas instalações durante dias, porque não tinha
uma "carta de apresentação" embora estivesse em companhia da neta,
residente naquele país, que foi um dos quase 3.000 compatriotas impedidos de
entrar na Espanha, também em 2012, número que quase foi alcançado no ano
passado.
Ou do
compositor e músico Guinga, um dos maiores violonistas brasileiros, que perdeu
dois dentes em Madrid, também no aeroporto de Barajas, ao ser agredido por um
policial da imigração espanhola.
Qual
seria a opinião desses cidadãos, ou dessas famílias, caso fossem consultadas,
sobre a concessão unilateral de vistos, pelo Brasil, sem nenhuma espécie de
reciprocidade, para estrangeiros?
Será que
eles não deveriam ser ouvidos antes da aprovação dessa lei entre quatro
paredes?
O
Ministro do Turismo pode alegar que a Espanha não será beneficiada pela medida,
já que não se exige visto de espanhóis, por reciprocidade, assim como de outros
países da União Europeia.
Mas com
que moral poderemos responder à altura, exigindo de turistas espanhóis, também
com base no princípio da reciprocidade, os mesmos documentos e as mesmas regras
que a Espanha e outros países exigem dos nossos cidadãos, como a comprovação de
dinheiro, carta de apresentação e reserva antecipada de hotéis, se, no caso dos
Estados Unidos e de países satélites anglo-saxões, como a Austrália, será
permitida a entrada em nossas fronteiras sem que nos permitam fazer o mesmo nas
suas como se eles estivessem entrando e saindo de sua própria casa, sem nos dar
nenhum respeito ou satisfação?
Será que
o Itamaraty e o atual Ministro das Relações Exteriores, que já foi exilado e
obrigado a viver lá fora, permitirão que cedamos o que nos resta de dignidade
em troca de um punhado de dólares a mais de turistas japoneses ou norte-americanos,
como se fôssemos - com o perdão das profissionais do sexo - meras prostitutas
de calçada?
O que
vamos fazer quando um piloto de avião comercial dos EUA, como ocorreu com um
comandante da American Airlines em 2004, levantar o dedo em riste, ao segurar
seu número de identificação, para agentes da Polícia Federal, na hora de tirar
uma foto obrigatória, em reciprocidade a exigências semelhantes a cidadãos
brasileiros em aeroportos dos EUA?
Abaixar
as calças e mostrar o traseiro, para "insultar", segundo os curiosos
hábitos norteamericanos, quem estiver nos ofendendo?
Como se
dizia sabiamente no tempo em que nesse país havia mais informação, menos
manipulação e mais patriotismo, quem muito se abaixa acaba mostrando as
nádegas.
Não é
possível que a Polícia Federal, desrespeitada nesse episódio, aceite passar a
tratar, em nossos aeroportos, norte-americanos, japoneses e australianos como
cidadãos de primeira classe, sabendo que nossos compatriotas, incluídos os de
classe média, como eles, continuarão a ser tratados como capachos nesses países
- principalmente nos aeroportos dos EUA - a todo momento.
Como afirmamos em nosso penúltimo
artigo, 'O FIM DO BRASIL E O SUICÍDIO DO ESTADO', nunca é demais frisar que não
somos uma republiqueta qualquer, que nos cabe a responsabilidade de ocupar -
sem jogar pela janela - o posto de quinto maior país do mundo em território e
população, que nos foi legado, à custa de suor e de sangue, pelos nossos
antepassados.
Poder
retaliar o país que se quiser, quando for necessário, em defesa da soberania e
da dignidade de nossa gente, como dizem certos slogans de cartão de crédito,
não tem preço.
Mesmo que
fôssemos o país mais miserável do mundo, e estivéssemos devendo bilhões aos
Estados Unidos - quando o que ocorre é exatamente o contrário - se trataria de
inaceitável abdicação da soberania nacional, em troca de algumas centenas de
milhares de dólares a mais no faturamento do mercado turístico, em um mundo em
que países como a China, a Rússia, e a Índia, nossos sócios no BRICS, defendem
com unha e dentes, de forma altaneira e independente, as suas posições, no
campo econômico e no geopolítico, sendo impensável que adotassem semelhante
medida no trato com o Japão ou com os Estados Unidos.
Será que
o que atrapalha a entrada de turistas de certas nações é o trabalho de tirar um
visto, ou o fato de se matar aqui, mais gente a tiros, todos os anos, do que se
mata na Guerra da Síria?
O sr.
Michel Temer precisa tomar cuidado para não passar à história como uma espécie
de Carlos Menem, outro presidente latino-americano descendente de árabes, que
perdeu todo o senso de ridículo no afã de se submeter, pública e
despudoradamente, aos Estados Unidos.
No seu
governo, ficou famosa a frase de seu Ministro das Relações Exteriores, Guido di
Tella, que - para histórica vergonha da terra de Rosas, de Guevara e de Perón -
disse que a Argentina estava a ponto de estabelecer "relações
carnais" com os Estados Unidos, sem que ninguém precisasse recorrer ao
Kama-Sutra para adivinhar em que posição estava aceitando, entusiasticamente,
se colocar, naquela ocasião, o país andino.
Até mesmo
nos governos militares, radicalmente anti-comunistas, o Brasil sempre procurou
preservar um mínimo de dignidade e de autonomia no seu relacionamento com nosso
vizinho do norte do hemisfério, estabelecendo a política do "pragmatismo
responsável" e desafiando com firmeza, sempre que necessário, a
vontade de Washington.
Não foi
outro o caso, por exemplo, do reconhecimento do governo marxista de Angola, do
MPLA; da aproximação com os países árabes, principalmente o Iraque de Saddam
Hussein; e da assinatura do tratado nuclear com a Alemanha.
Isso,
considerando-se que, naquele momento, dependíamos tremendamente do
exterior, e tínhamos uma das maiores dívidas externas do mundo, quando, hoje,
graças ao trabalho de governos que, se alega, quebraram o país, essa dívida
está reduzida a menos de 20% do PIB (2015)
(https://www.focus-economics. com/country-indicator/brazil/ external-debt), temos mais reservas internacionais que os Estados Unidos, e Washington, a
quem pretendemos mendigar migalhas em troca dessa abjeta concessão unilateral
de vistos, nos deve mais de 250 bilhões de dólares, o que nos transforma no
quarto maior credor individual externo dos EUA (http://ticdata.treasury.gov/ Publish/mfh.txt).
Recém
chegado da reunião dos BRICS em Goa, Temer precisa escolher - ele está
equivocado se se acha que os diplomatas e líderes do grupo não estão
acompanhando e comentando o assunto - com que cara vai comparecer - se ainda
estiver na presidência da República - ao próximo encontro dessa organização, em
Xiamen, na China, em setembro do ano que vem.
Nesse
clube, em que todos exigem vistos para norte-americanos, formado por algumas
das mais poderosas e populosas nações do planeta, justamente para promover um
mundo multipolar e desafiar a hegemonia dos EUA, não somos, como a Rússia, a
China, a Índia, potências espaciais e atômicas.
Mas também não podemos, nem
devemos, justamente por isso, ser os únicos subservientes a Washington,
porque, na diplomacia, é nos pequenos detalhes que mora o diabo e se
escondem os grandes simbolismos.
Não se
pode abrir todas as portas da casa para quem sequer nos aceita em seu quintal.
Nem se estivéssemos
quebrados se entenderia tamanho e injustificável reconhecimento público
de nossa inferioridade frente aos EUA, e a países que têm um PIB e uma
importância relativa estratégica muitíssimo menor que a nossa, como é o caso da
Austrália.
Decidida
pelo governo, a medida depende, agora, da aprovação de mudanças no Estatuto do
Estrangeiro, que terão que ser feitas pelo Congresso, que deverá, se houver
dignidade e hombridade suficientes, votar pela sua rejeição, com a ajuda de
órgãos conhecidos pelo seu patriotismo, como a Comissão de Relações Exteriores
e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.
Um pouco
menos de pressa na abjeta reverência aos gringos e um mínimo de dignidade e de
vergonha na cara, são como uma boa canja de galinha ou uma suculenta sopa de
rabo de canguru, que pode ser encontrada em certos restaurantes de
Melbourne.
Nunca
fizeram mal a ninguém, principalmente quando se trata, aos olhos do mundo, de
nossas relações com outras nações.
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