quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Do pesadelo de ser freelancer no neoliberalismo







Carta Maior, 26/10/2016



Ser um profissional autônomo já foi um sonho - hoje é um pesadelo



Por Peter Fleming, The Guardian




Quem não quer ser seu próprio patrão? Desde os primórdios do capitalismo industrial, obter independência em seus meio de vida tem sido o sonho de muitos trabalhadores. Em vez de obedecer às ordens do chefe, por medo do que possa acontecer se dissermos não, podemos decidir quando e como fazer um trabalho. Ganhar a vida poderia ser tão mais fácil e agradável...
Se era esse o sonho, bem-vindos ao pesadelo.

Em muitas economias, o número de trabalhadores autônomos não para de crescer. No Reino Unido, a fatia destes profissionais no mercado cresceu assombrosos 45% desde 2002. Mas a grande questão é que as chances de ganhar muito dinheiro dessa forma são bem pequenas. Um estudo recente revelou que o prestador de serviço autônomo médio ganha menos hoje do que ganhava em 1995.

Como o sonho de se tornar seu próprio patrão se transformou em mau negócio para todos os trabalhadores da construção civil, os consultores de TI, enfermeiros e entregadores motoboys que acreditaram que trabalhar por conta própria seria o caminho para a liberdade econômica? Em uma palavra: graças ao neoliberalismo.

Os economistas desta tradição, como Milton Friedman e Gary Becker, acreditavam que todos deveriam se tornar microempresas competindo no mercado individualmente. Os empregados seriam todos apenas capitalistas disfarçados. Friedman era fascinado por esta ideia. Talvez achasse que tinha encontrado a réplica final para o velho grito de guerra marxista para tomar os meios de produção. Se os trabalhadores descobrissem ser, eles próprios, seus meios de produção, a tensão entre trabalho e capital desapareceria magicamente. Simples assim.
É claro que ele estava errado, o que não impediu que a ideia se espalhasse em grande escala a partir da década de 2000. De repente, passamos a viver na "nação dos empreendedores", onde trabalhadores temporários livres e freelancers criativos estavam transformando velhas indústrias em vibrantes economias do conhecimento. E fazendo uma fortuna no caminho. Todos eram potenciais empresários, mesmo as donas de casa, ou "mumpreneurs", e as crianças.

Infelizmente, o movimento para reclassificar as pessoas como trabalhadores autônomos segue uma fórmula muito simples: reduzir os custos do trabalho e maximizar os lucros das empresas, que optam por contratados temporários em vez de uma força de trabalho permanente. Isso inclui Uber, Hermes (empresa de entregas com atuação em vários países da Europa), universidades e muitas outras organizações.
A lógica do negócio é brutal. Se você trabalha por conta própria, todos os custos que um empregador normal deve cobrir agora devem ser pago por você – incluindo treinamento, uniformes e veículos, além dos gastos básicos com aposentadoria e licença médica remunerada, entre outros. É assim que funciona, mesmo quando o contratado trabalha para uma empresa em regime permanente.
 

Um entregador da Hermés, em Yorkshire, descreveu recentemente seu aperto. Ele passou dois dias em treinamento com outro contratado, pelos quais não foi pago. Uma vez na folha de pagamento, ele calculou sua renda bruta em cerca de 4 libras por hora. Depois de incluir suas despesas na equação, revelou-se uma realidade sombria:

O modelo de negócios Hermés deixa todo o risco a cargo do entregador "independente", mas o ganho potencial é absolutamente limitado. Você é responsável pelos pacotes, por qualquer problema com o sistema, pelo seu carro, pelo pagamento de suas férias e de qualquer licença médica. Ele soube que um carteiro local tinha sofrido recentemente uma cirurgia em uma mão, após um acidente de trabalho. O carteiro teve direito a cinco semanas de licença médica. Os entregadores da Hermes não têm licença médica. Os carteiros, muitas vezes, dão uma ajuda aos entregadores da Hermes por pena, pois veem a precariedade da situação.

O problema é que os governos recentes vêm engolindo a propaganda de uma "sociedade de empreendedores" vendida pelos economistas neoliberais. Resultado: as leis e regulamentos que protegem o trabalhador não se aplicam aos autônomos. E nem mesmo o salário mínimo. Os beneficiados com este esquema são, é claro, os empregadores.
 

Quando uma grande companhia aérea low-cost ganhou as manchetes por contratar pilotos como prestadores de serviço autônomos, muitos se surpreenderam que profissionais altamente capacitados se submetessem a este tipo de contrato de trabalho. A tendência não estava afetando somente estudantes universitários que trabalham num pub em meio expediente, mas os comandantes de aviões comerciais.
 
O mais preocupante no caso era o tamanho da pressão sofrida pelos pilotos para trabalhar, independentemente de estarem doentes ou cansado. Se não trabalhassem, não receberiam. Os pilotos protestaram com uma "petição de segurança" distribuída a outros trabalhadores. A direção da empresa então alertou que "qualquer piloto que participar desta petição será culpado por erro grave de conduta e poderá ser desligado da empresa".

Talvez a mensagem cause sérios danos ao movimento de autoempreendedorismo. Trata-se de poder. Mesmo que alguns possam enriquecer, a maioria dos trabalhadores autônomos encontra-se dependente de um empregador, só que com poucos direitos ou proteções, além de receber um salário mais baixo.

O que pode ser feito? Bem, os pilotos da companhia aérea chegaram à conclusão correta: a única forma de reequilibrar uma relação de poder muito assimétrica é agir de forma coletiva. Trabalhadores do Deliveroo e do Uber chegaram a conclusões semelhantes.

A chamada "economia freelancer" pode soar fascinante e divertida, como se todos pudessem se tornar designers gráficos trabalhando de seu laptop num café no bairro da moda. Infelizmente, ela revelou um gosto amargo para muitos que lutam para fechar as contas no fim do mês. O conflito entre trabalhadores e capitalismo não desapareceu. Pode ter ficado pior.
 

Tradução de Clarisse Meireles

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