quinta-feira, 2 de junho de 2011

Longe de Deus, Perto dos EUA

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02/06/2011 


Longe de Deus, Perto dos EUA


Por Carlos Haag

 
Estudo de Moniz Bandeira disseca formação do império americano.


Um velho e lamentoso adágio mexicano afirma:Que azar o nosso. Estar tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”. Da nação jovem que arrancava suspiros dos iluministas europeus pela sua “passion de l’egalité”, nas palavras de Alexis de Tocqueville, a América hoje, pouco mais de dois séculos de seu nascimento, conseguiu que boa parte do globo chegasse a um consenso negativo sobre ela, algo antes visto como uma “turrice” invejosa esquerdista.
 O país parece pairar sobre o mundo, orgulhoso de seu isolacionismo, sempre disposto a começar uma nova guerra em nome da liberdade, que, afirmam, teria sido inventada lá pelos founding fathers em 1776. Curiosa falácia, já que o pai da pátria, George Washington, já advertia, em 1796, quequalquer excesso militarista é daninho para a liberdade, particularmente para a liberdade republicana”.
 “Este desprezo dos Estados Unidos pela soberania dos outros povos, o unilateralismo de sua política internacional, o militarismo, a arrogância e a prepotência, a pretensão de reformar o mundo à sua imagem e semelhança, o pretexto de promover a democracia como rationale para a deflagração ou participação em guerras não afloraram como resultado dos atentados do 11 de Setembro, mas nos primórdios da formação do país”, afirma o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de Formação do império americano, um sólido estudo sobre como o “império da liberdade” faz de tudo para dar “liberdade ao império”.
 “Para compreender esse processo de perversão da democracia, que rompeu a vida civilizada e estabeleceu um estado de guerra permanente, foi que me propus a escrever sobre a formação do império americano como epílogo da globalização do sistema capitalista, que é um todo mundial e não uma soma de economias nacionais”, analisa o professor.
 A idéia desse mundo global, com a América no comando, Moniz foi buscar em Karl Kautsky, um discípulo de Marx, desprezado pela esquerda a favor de Vladimir Lênin, para quem o imperialismo seria a expressão do“capitalismo agonizante, em decomposição”. A prática, observa o historiador, deu razão a Karl, e não a Vladimir.
 “Kautsky afirmou que se podia aplicar ao imperialismo o mesmo que Marx dissera sobre o capitalismo, isto é, que o monopólio gerava a concorrência e essa o monopólio, numa competição furiosa, o que levou os grupos financeiros a conceber a idéia do cartel. Segundo ele, não era impossível que o capitalismo entrasse em nova fase, marcada pela transferência dos métodos dos cartéis para a política internacional, a fase do ultra-imperialismo.”
A teoria de Kautsky é de uma lógica notável: o imperialismo como fruto do capitalismo industrializado precisa exportar seus capitais para sobreviver, o que fazia da guerra de conquista uma necessidade econômica, já que era preciso garantir mercado para despejar as mercadorias produzidas. O problema é que essas guerras, como a competição entre as empresas, eram dolorosamente custosas. Daí a ousadia da antevisão: de tanto baterem cabeças, as grandes potências acabariam por formar um “truste universal, um único Estado mundial, sujeito ao capital financeiro dos vitoriosos, que assimilaria todo o resto”.
A visão das potências se devorando umas às outras, que Lênin vendera como certeza de que o socialismo triunfaria, único sobrevivente dessa guerra entre capitalistas, foi definitivamente abafada em 1976, com o estabelecimento do Grupo dos Sete (ou oito), o G-7, a reunião das grandes economias para coordernar a economia global, confirmando, assegura Moniz, a previsão de Kautsky, de que ocorreria uma exploração conjunta do mundo pelo capital financeiro, embora essa integração não eliminasse a competição comercial e as contradições entre as potências industriais. À frente das quais estão os Estados Unidos.
Longe de uma inovação de Bush Junior, essa tendência para o messianismo, nota o professor, marcou a formação do povo americano, a América renovando a tradição judaica. “Nós, os americanos, somos o povo escolhido, o Israel do nosso tempo; carregamos a arca das liberdades do mundo. Deus predestinou grandes coisas para a nossa raça e o resto das nações logo seguirá na nossa esteira”, escreveu, em 1850, o criador da baleia branca Moby Dick, Herman Melville. “O povo americano, como os israelitas, passou a se considerar o mediador, o vínculo entre Deus e os homens da Terra”, lembra o professor.
Os peregrinos que saíram da Europa para a aventura no Novo Mundo, onde fundaram a colônia que se transformaria nos Estados Unidos, se consideravam “protagonistas de um exercício de excepcionalismo,crentes de que eram capazes de um papel que outros povos não podiam desempenhar”. Já em 1912, recorda Moniz, o embaixador do Brasil em Washington, Domício da Gama, resumiu o que era o espírito ianque: “O duro egoísmo individual ampliou-se às proporções do que se poderia chamar de egoísmo nacional”.
“Não sem razão, em janeiro de 2003, um alto funcionário do Departamento de Estado, ao ser indagado até que ponto os Estados Unidos se dispunham a delegar sua soberania, ao juntar-se a instituições multilaterais ou tratados internacionais, declarou: ‘It depends’. Infere-se que a única soberania intangível é a da América e somente ela tem o direito de decidir o que deve ou não internacionalmente respeitar”, observa o pesquisador.
Assim, o país vai, ao longo de sua história, oscilar entre o isolacionismo e o expansionismo até, enfim, assumir na administração atual “o desprezo pela soberania de outros Estados, o unilateralismo e o militarismo, que eram latentes e por vezes se manifestavam, converteram-se em normas oficiais de sua política internacional.
Foi um longo caminho, embora percorrido rápida e dubiamente. No início do percurso estava a Doutrina Monroe, a “América para os americanos”, formulada em 1823 pelo presidente James Monroe, que isolava os Estados Unidos do Velho Mundo, reforçando o desejo de George Washington, para quem “a Europa tem interesses sem relação com os nossos, senão remotamente”, mas, ao mesmo tempo, continha a “praxidade” de ThomasJefferson, que afirmava ter “a América um hemisfério para si mesma”, de um expansionismo explícito.
Que começou, aliás, dentro do seu próprio território, com a conquista do oeste e a compra de vastas áreas adjacentes ao seu (como a Louisiana, da França) pertencentes a países europeus.O progresso industrial pedia novas áreas de consumo e logo o imenso território americano pareceu pequeno. Com o espírito do “destino manifesto”, analisa o historiador, os EUA viram que era preciso “estender a área de liberdade”.
A dubiedade da Doutrina Monroe foi funcional nisso e o precursor no uso da “brecha”ideológica do ideal do isolacionismo foi o presidente Theodore Roosevelt, inventor da política do big stick, o porrete pela democracia. “Roosevelt foi a primeira ‘presidência imperial’ dos EUA, já que pela primeira vez foram administradas possessões perto e longe do seu território, alcançou influência dominanteno Caribe e na América Central, transformando a sua Marinha na segunda mais poderosa do mundo e, assim,convencendo os demais países a levar seriamente as suas políticas e conselhos”, analisa Moniz.
O país logo compreendeu que as restrições do mercado doméstico exigiam um movimento militar de expansão. Assim, em 1848, a guerra forjada contra o México, o ataque e a anexação do Havaí, em 1898, e, naquele mesmo ano, o confronto com o que restava do império espanhol, fustigado por um movimento de libertação em Cuba. Usando um incidente com um navio americano, o USS Maine, ancorado em Havana, os EUA intervieram militarmente em Cuba e a tomaram como uma espécie de protetorado.
Pouco depois foi a vez das Filipinas, onde também se travava um movimento de libertação contra os espanhóis, que perderam para a América o que restava dos seus domínios no Caribe e no Pacífico. Cessava tudo o que a antiga musa cantava e outro império se levantava. Ou, nas palavras de Teddy Roosevelt, em 1904, “a adesão à Doutrina Monroe podia forçar a América, embora de forma relutante, a exercer um poder de polícia internacional” no caso de “wrong doing or impotence” em países do hemisfério ocidental.
O ápice desse primeiro movimento ocorreu após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando o expansionismo imperial alemão foi derrotado e os americanos saíram do conflito enriquecidos e todo-poderosos.E foi a nova tentativa teesca de competir com os mercados dos EUA que levou Franklin Roosevelt, nos anos 1930 e 1940, a se dedicar a reverter a tendência isolacionista americana e partir para o conflito.
Moniz lembra as várias provocações feitas pela América ao Japão e à Alemanha, e evitadas, para que ambos rompessem relações com os americanos. A guerra, observa o historiador, era um imperativo categórico para Roosevelt e Pearl Harbor foi o pretexto de que o presidente precisava. Há mesmo quem afirme que ele cutucou os japoneses ao extremo e sabia do ataque de 7 de dezembro à base e calou-se, ainda que, palavras do secretário da Marinha, Frank Knox, Roosevelt “expected to get hit but noso hurt”. Mas, nota o pesquisador, nem só de armas vivem os impérios.
Em 1944 o acordo de Bretton Woods criou o Fundo Monetário Internacional, o FMI, e o Banco Mundial. “O fator fundamental nas políticas do Fundo não emanou da sua capacidade de decidir que Estado merecia assistência, mas seu princípio de condicionalidade. Quem recebesse ajuda seria obrigado a satisfazer determinados objetivos, o que outorgava ao FMI ingerência nas políticas internas de cada país”, afirma Moniz.
“Apartir da Primera Guerra, com o enfraquecimento da França e da Inglaterra, os EUA emergiram como potência hegemônica e consolidaram essa posição após a Segunda Guerra, modelando também o sistema econômico internacional em conformidade com seus interesses, sob a égide do Banco Mundial e do FMI. A liberdade pela qual os founding fathers se bateram passou a se identificar, cada vez mais, com o capitalismo de consumo, o free-enterprise. O free world passou a significar o mundo do free-market”, explica o historiador.
A exceção não deixou de confirmar a regra. Governos democratas e republicanos podiam ter divergências, mas todos, com raras exceções (Jimmy Carter, por exemplo), continuaram a exercer seu poder pelo globo pela força direta das armas ou pela intervenção branca (via FBI e CIA). “O militarismo foi o meio privilegiado encontrado pelo capitalismo americano para sua acumulação de capital. Desde o início do século 20, tornou-se necessário alimentar continuamente a indústria bélica e os grandes negócios, nos quais militares e industriais se associavam, forjando clima de ameaças, um ambiente de medo, de modo a compelir o Congresso a aprovar vultosos recursos para o Pentágono e órgãos de defesa”, analisa o pesquisador. Daí a necessidade constante de “novos inimigos” que eram substituídos ao longo do tempo, de comunistas a fundamentalistas islâmicos, passando pela guerra contra as drogas.
De que outra maneira, pergunta-se Moniz, entender a razão do aumento crescente do orçamento militar americano mesmo com o fim da Guerra Fria? Mais: “Os governantes e políticos americanos em seu extremado nacionalismo, jamais admitiram o nacionalismo nos povos da América Latina ou de qualquer outra região do mundo”. Mas podia-se negociar, vez ou outra, recorda o historiador, com ditaduras,se do interesse dos EUA, como foi o caso dos militares brasileiros, Saddam, Pinochet, entre tantos outros. Surge com força o antiamericanismo, ressaltado no Oriente Médio pela aliança forte com Israel. “O‘terrorismo internacional’, que após a revolução islâmica no Irã aparece nos discursos dos líderes americanos, como o novo inimigo, substituiu o ‘comunismo internacional’. Tudo para justificar os altos gastos com defesa.” Não culpem só George Washington.
O conflito Leste-Oeste é deixado de lado e a nova retórica fala do clash de civilizações, cristianismo versus islamismo, tudo no bojo da questão primordial do acesso às reservas petrolíferas, pois o gigante tem pés de barro e necessita de matérias-primas. Após a primeira guerra no Iraque, reunindo militarismo e racionalismo econômico, surgem os chamados “falcões” (Wolfowitz, Cheney, Perle, referências da atual administração americana), funcionários civis do Pentágono que defendiam a “guerra preventiva”, atacar antes para impedir o surgimento de um rival.
Com eles veio também o Consenso de Washington, que encorajava a privatização, a desregulamentação das economias e a liberalização do comércio. Dos outros.A redução do papel do Estado, o Estado-mínimo, significava, em meio do processo de globalização do capital, a redução da soberania dos Estados nacionais, transferindo o poder econômico para as corporações transnacionais, a maioria norte-americanas”, avalia Moniz. Kautsky parece cada vez mais correto. E o movimento externo foi acompanhado internamente.
“A democracia continuou, como desde os tempos de Theodore Roosevelt, identificada com o conceito de ‘good government’, que significava não o respeito às liberdades públicas e aos direitos individuais, mas a manutenção da estabilidade.” Moniz diz que a escolha de Bush para governar os EUA confirma que a democracia americana nas décadas recentes começa a claudicar e mostrar sinais de ter perdido a sua direção.
O que não é algo tão recente, já que “a política pós-11 de Setembro não foi um turning point na política exterior dos EUA, apenas deu ímpeto a tendências que sempre existiram. Bush deve ser visto como um ator que recita falas consolidadas mais do que um dramaturgo que acaba de escrever uma nova peça”.

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