sexta-feira, 24 de junho de 2011

Não ao patrulhamento e o medo da crítica

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Não ao patrulhamento e o medo da crítica


Paulo Kliass

Tudo parece ter começado em janeiro de 2003, com a posse de Lula para o início de seu primeiro mandato como Presidente da República. Um momento de grande expectativa no Brasil e pelo resto do mundo. A possibilidade de colocar em prática, depois de um processo democrático em que um programa alternativo foi referendado nas urnas, as experiências de um projeto de governo que representasse algum grau de mudança em relação às orientações do neoliberalismo. No entanto, sucessivas frustrações foram se apresentando ao longo do tempo e dos anos. E com isso, ficava demonstrada a necessidade de que se mantivesse acesa a luta dos setores que aguardávamos por transformações mais objetivas e mais sensíveis naquilo que representava a essência da política pública, ou seja, o modelo econômico a ser adotado.

Tratava-se de um governo cuja orientação estava em disputa, mas que exibia uma equipe econômica composta, primordialmente, por representantes da velha ordem - aquela que se pretendia superar. Desde o momento da divulgação da famosa “Carta aos Brasileiros”, antes mesmo das eleições em 2002, percebia-se o risco de uma repetição - aqui em terras tupiniquins - de processos em que governos, supostamente mais inclinados à esquerda, se viam pouco a pouco sendo dominados pelos interesses do capital e se revelavam incapazes de levar a cabo a tarefa para a qual haviam sido eleitos.

E vejam que não se trata de sugerir nenhuma proposta mais arrojada, nada de “revolucionário” no sentido da transformação radical da ordem capitalista. Não, muito longe disso! Apenas uma mudança na política econômica, retirando a prioridade concedida ao capital financeiro e oferecendo uma alternativa de um modelo menos desigual e menos concentrador de renda. Uma política monetária mais voltada para a produção e menos orientada pelos juros elevados. Uma política econômica que rompesse com os critérios predatórios do Consenso de Washington, como a geração irracional de superávit primário, a valorização cambial e a inexistência de controle sobre o fluxo financeiro de capital especulativo. Uma política industrial que não privilegiasse tão somente a geração de superávit no comércio exterior por meio do estímulo à exportação de produtos primários, com a conseqüente desindustrialização de setores nacionais incapazes de resistir à concorrência desleal de bens industrializados estrangeiros, como os provenientes da China. Uma política fiscal que rompesse com a lógica obtusa dos cortes orçamentários horizontais e sem critérios, comprometendo a qualidade de ação da administração pública e reduzindo a capacidade de investimento do Estado. Uma política agrária que implementasse, de fato, a reforma agrária e o apoio à agricultura familiar, ao invés de priorizar exclusivamente o agronegócio da soja e da cana de açúcar, entre outros.
Mas desde então tem início uma operação de esmagamento político de toda e qualquer tentativa de crítica à continuidade do modelo da economia herdado da época do tucanato. A velha e conhecida chantagem do “quem não está comigo, então é porque está ‘contramigo’ (sic...)”. Isso pressupunha manter o silêncio a respeito das irresponsabilidades praticadas pela equipe de Palocci e por outras que se seguiram.

No interior do governo, e mesmo em algumas áreas do próprio movimento social, não se compreendia que a crítica era necessária justamente para que fossem apresentadas alternativas. Era preciso dizer em claro e bom tom que as medidas implementadas por Henrique Meirelles e pela turminha das finanças não eram as únicas opções para o País. Que a eleição de Lula, o candidato do Partido dos Trabalhadores, pressupunha a esperança da mudança. Porém, a lógica do patrulhamento político e ideológico não comportava tal hipótese. De acordo com tal visão equivocada da luta em marcha, quem criticava o governo “estava fazendo o jogo da direita”. E ponto final! Como se a plena satisfação dos setores ligados ao grande capital e ao setor financeiro não estivesse, isto sim, na base de uma política desenvolvida pelo Estado que estava justamente a atender a seus interesses econômicos. Ora, sob tais condições, nada mais justo do que se indagar quem estaria, de fato, a fazer o jogo da direita. Seriam os que ousávamos criticar desde o início a ortodoxia monetarista ou seriam aqueles que praticavam a política econômica a favor do capital financeiro?

Chega a ser mesmo surpreendente ler e ouvir as tentativas de algumas pessoas buscando defender o indefensável, justificar o injustificável. Quando se trata, então, de indivíduos cujo passado conhecemos e sabemos o que defendiam até anteontem, aí a coisa fica ainda mais triste ou esquisita. Imagino o que estariam a dizer e argumentar esses mesmos responsáveis pelo patrulhamento, caso tais políticas estivessem sendo desenvolvidas por outro governo, em um contexto em que estivessem na oposição. Mas agora, não! A coisa é diferente, pois se trata do “nosso governo”, como acontece de eu ouvir, baixinho por aí, de alguns ainda envergonhados pelo argumento chinfrim.

Geração de superávit de 4% do PIB durante esses mais de 8 anos de governo, com transferência de mais R$ 1,5 trilhão para o setor financeiro, a título de pagamento de juros da dívida pública? Não, mas veja bem, não é bem assim... Afinal, trata-se de uma situação circunstancial, não poderíamos fazer diferente sem assustar o capital. Quanto ao bom mocismo de Palocci que chegou a aumentar em 2003 a meta de superávit unilateralmente - sem que houvesse nenhuma exigência explícita de quem quer que fosse no mercado financeiro internacional - nada a comentar.

E quanto à manutenção de taxas de juros oficiais estratosféricos ao longo do mesmo período? Estivemos assegurando o primeiro lugar ao Brasil na disputa internacional desse quesito. Realmente, somos imbatíveis! Quando questionado sobre a ortodoxia da política monetária, o interlocutor reluta, vacila e acaba papagaiando o discurso velho e já mofado a respeito da inevitabilidade da volta da inflação, exatamente como faziam Pedro Malan, Persio Arida, Gustavo Franco e tantos outros jovens que se encantaram e se enriqueceram com as graças do mercado financeiro. Com relação à utilização de outros mecanismos (como os depósitos compulsórios e as ditas medidas macroprudenciais) para obter o mesmo resultado de queda da demanda sem comprometer as finanças públicas, nem uma única palavra.

Durante todos esses anos continuou a se repetir a mesma lenga-lenga dos contingenciamentos e dos cortes do orçamento da União para as áreas sociais e de infra-estrutura. No início de 2011, a Presidenta Dilma parece ter sido convencida da eficácia da medida e anuncia um corte de R$ 50 bilhões! Com o pequeno detalhe nunca revelado pelos grandes órgãos de imprensa: o governo continua, sim, gastando. E muito! Mas aqui trata-se de despesas “especiais”, não essas comuns e ordinárias com saúde, educação, infra-estrutura, previdência... Os gastos com pagamento de juros não são contingenciados! E devem atingir quase R$ 200 bi ao longo desse ano. O “cupañeru” arregala os olhos, toma fôlego e sai-se com a acusação à famosa herança maldita, lá dos velhos tempos de FHC. Ou então que tudo não passa de uma campanha orquestrada pela imprensa golpista para desmoralizar o governo, pois os cortes não seriam efetivos, mas apenas uma declaração de intenções... Isso quando não passa a repetir – talvez irrefletidamente - os velhos bordões dos tempos do Delfim superministro de que “é primeiro preciso fazer crescer o bolo para depois reparti-lo” ou ainda de que “é necessário apertar o cinto” para assegurar a estabilidade. Incrível!

Mas, afinal, Paulo: você está propondo um calote no sistema financeiro? E como reagirão os participantes dos fundos de pensão? E como ficarão as contas dos bancos públicos que também ajudam a rolar a dívida do governo federal? E os setores da classe média que têm seus depósitos remunerados pela SELIC? Eu nunca poderia imaginar ouvir da boca de pessoas com um passado de luta esse tipo de chantagem política: o risco da moratória! Eu, hein! E já saem logo com o discurso amedrontador de “calote”. Mas desde quando reduzir taxa de juros é dar calote? Trata-se, isso sim, de iniciar um processo (cujo ritmo lento ou mais demorado será conferido pelo próprio andar da carruagem) de trazer o patamar de juros para níveis, digamos, mais civilizados. É claro que muitos setores e muita gente vão ficar descontentes. E isso faz parte da luta política, pois não será mais tão fácil ganhar dinheiro com a atividade mais parasitária que o capitalismo já conseguiu inventar até os dias de hoje: a esfera puramente especulativa do setor financeiro. E outra vez fica a acusação: você quer mesmo é desestabilizar o governo!

Por outro lado, sugerir medidas de controle sobre o fluxo de capital especulativo estrangeiro passa a ser visto como proposta de “provocador”! Quem te viu, quem te vê... Nada como um dia após o outro, para a gente não mais se surpreender com as voltas que o mundo dá! A grande maioria dos países do mundo adota esse tipo de medida óbvia, mas a elite financeira daqui sempre optou por ser mais realista do que o próprio rei. E o seu discurso e seu comportamento parecem ter deitado raízes profundas. Quem sabe, agora, depois que o próprio FMI finalmente acabou recomendando esse tipo de controle a países com elevado comprometimento e vulnerabilidade de suas contas de capitais externos... Quem sabe essa medida tão necessária para reduzir nossa taxa de juros e impedir a valorização artificial de nossa moeda deixe de ser considerada uma heresia pelo povo do patrulhamento.

Ora, o próprio segundo mandato de Lula demonstrou ser possível a implementação de uma política desenvolvimentista, com as devidas preocupações de não se descontrolar da estabilidade macroeconômica. Graças à crise financeira internacional, em um momento em que a maioria dos países do mundo adotou uma postura menos ortodoxa e mais keynesiana, aqui em nosso País também houve um momento de mais fôlego. A economia cresceu impulsionada pela ação do setor público, alguns padrões de desenvolvimento com menor desigualdade foram implantados e Lula conseguiu encerrar seus 8 anos de exercício da Presidência com mais de 80% de popularidade. Mas a esperança de aprofundar essa tendência progressista logo veio abaixo e o espírito da “maldade” parece ter tomado corpo de alguns dos responsáveis pela economia nesse início do governo da Presidenta Dilma. Assim, a necessidade de chamar a atenção e de fazer a crítica se vê reforçada!

E nesse ofício a gente vai encontrando de tudo. Há pessoas que fizeram realmente uma conversão ideológica. Esqueceram tudo o que escreveram, pensaram ou praticaram no passado e incorporaram abertamente o espírito do liberalismo. Sindicalistas, intelectuais, profissionais liberais. Tudo bem. É um direito que assiste a todos e a cada um nós: mudar de opinião. Pelo menos, estes são sinceros na sua própria trajetória. Há outros – e confesso que desses eu desconfio mais - que buscam se sair apenas no aperfeiçoamento do exercício da retórica. Em geral, estão beirando o pântano perigoso a que normalmente chamamos de oportunismo político. Em seu íntimo sabem que estão equivocados na argumentação, reconhecem que - no fundo, no fundo - o governo se equivoca com tais políticas, mas não têm a coragem de assumir a contradição entre o discurso anterior e a prática atual. Tendem a radicalizar a acusação do tipo “você está fazendo o jogo da direita”, uma maneira esperta e rasteira de fugir do debate de conteúdo. Finalmente, em seguida, vem o grupo mais numeroso. Aqueles que, num primeiro momento, se surpreendem com esse tipo de raciocínio e críticas aqui apresentados. Afinal, eles mesmos também chegaram a esboçar tais questionamentos em algum momento do passado recente e foram chamados a atenção – em geral, de forma dura - pela turma anterior, o povo do patrulhamento. ”Afinal, o que é isso companheiro?” Mas, depois, quando voltam a refletir um pouco melhor, percebem que existe mesmo mais de uma via possível para conduzir uma política econômica menos predatória, ainda que nos marcos de uma economia capitalista. E se convencem de que a crítica aberta é necessária para tentar evitar que o governo Dilma continue a avançar pelos caminhos equivocados da privatização de aeroportos, do recuo impressionante da proposta de universalização do acesso à banda larga em todo o território e tantos outros desvios de rota.

E enquanto isso, há tempos já beirando os campos do surrealismo, como no filme de Fellini, por aqui também parece que “la nave va”...

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

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