quinta-feira, 30 de junho de 2011

Graziano: "a fome é um problema de acesso: existe comida suficiente... falta é o dinheiro para comprá-la"




CartaCapital, 30/06/2011

A revolução “duplamente verde” de José Graziano

 André Siqueira e Soraya Aggege
Eleito com o apoio dos países emergentes para dirigir a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO, na sigla em inglês), no domingo, dia 26, o brasileiro José Graziano afirma que a aliança em torno de seu nome reflete o reconhecimento do êxito do modelo brasileiro de combate à fome e representa uma aposta na Cooperação Sul-Sul. Em entrevista exclusiva à CartaCapital, Graziano fala das demandas que o Brasil terá de enfrentar, como fazer uma “revolução duplamente verde” na agricultura. Para ele, os biocombustíveis não são “bala de prata”, mas não podem ser demonizados.
Graziano terá que transpor o abismo entre os países desenvolvidos – que fornecem a maior parte do orçamento bianual de 2,2 bilhões de dólares da instituição – e as nações emergentes, gravemente afetadas pela alta dos preços dos alimentos. Segundo ele, será preciso transformar promessas políticas no aumento efetivo do investimento na agricultura.
Ex-ministro do Combate à Fome no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, sua eleição reforça as credenciais do Brasil enquanto representante do Sul no universo das instituições da ONU e também a influência do Brasil em regiões como a África.  Graziano ocupa, desde 2006, o cargo de representante regional da FAO para a América Latina e o Caribe.  Leia, abaixo, a íntegra da entrevista:



CARTA CAPITAL: Até que ponto a eleição de um brasileiro para o posto principal de um órgão das Nações Unidas representa avanço na  representatividade dos países emergentes? Pode-se dizer que as nações em desenvolvimento foram, efetivamente, fiadoras de sua candidatura?
JOSÉ GRAZIANO DA SILVA: Desde o início a minha candidatura foi abraçada por diversos países em desenvolvimento e recebeu o apoio formal de blocos como a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), a Comunidade de Países do Caribe (CARICOM), o Mercosul e a Unasul. No segundo turno, recebi o apoio maciço do G-77.  Essa aliança reflete o reconhecimento do êxito do modelo brasileiro de combate à fome, uma aposta na Cooperação Sul-Sul e a certeza que podemos avançar rapidamente na promoção da segurança alimentar. Mas, como falei no meu agradecimento aos países após a eleição, a partir do momento em que fui eleito deixei de ser o candidato brasileiro para ser o diretor geral eleito da FAO de todos os países. Independente do voto, todos temos consciência de que precisamos trabalhar juntos para superar os desafios que temos pela frente.

CC: Uma de suas bandeiras, ao postular o cargo, era a descentralização da organização. De que maneira a concessão de mais autonomia aos países pode contribuir para fortalecer a entidade, uma vez que a falta de consenso tem se mostrado um entrave à maior parte das iniciativas multilaterais recentes?
JGS: Há preocupações legítimas de ambos os lados, mas também existe o consenso de que divergências não podem travar o trabalho da FAO e o compromisso de buscar acordos que permitam superá-las. Há um consenso, por exemplo, em que devemos fortalecer a capacidade técnica das oficinas regionais e sub-regionais. O problema é quem vai pagar o custo financeiro disso! Por isso, durante toda minha campanha pedi aos países de ingressos médios, como os BRICS, Argentina, Chile, México, Venezuela e tantos outros que apóiem mais a organização e os projetos executados nos seus próprios países para deixar mais recursos disponíveis aos países mais pobres. Concluir o processo de reforma da FAO de forma satisfatória e rápida é importante para isso, porque vai dar à FAO maior agilidade e aumentará a eficiência no uso dos recursos. A descentralização, parte central da reforma, reaproxima a FAO dos países e isso permite à organização entender e responder maior às necessidades específicas dos países.
CC: Os últimos anos foram marcados por avanços inquestionáveis na distribuição de renda e no combate à miséria na América Latina. Até que ponto as políticas foram decisivas para essas conquistas? Na sua avaliação, o mundo já está convencido de que não basta esperar que a mão invisível do mercado se encarregue de distribuir recursos aos mais pobres?
JGS: Creio que hoje já há um amplo consenso de que as políticas públicas são fundamentais. O fortalecimento da agricultura familiar através de crédito, capacitação, acesso a recursos naturais e mercados; e a proteção de famílias vulneráveis através de programas de transferências de renda são tipos de políticas que diversos países da região vem implementando nos últimos anos. Na maioria dos casos, o reconhecimento legal do direito à alimentação está na base dessas ações. Embora a região tenha sido duramente atingida pelas últimas crises, esse conjunto de políticas cria uma estrutura muito mais sólida para avançar no combate à fome e à pobreza.
CC: A crise financeira internacional atingiu mais as economias desenvolvidas do que o mundo em desenvolvimento, mas parece ter reconfigurado os mercados internacionais de commodities agrícolas, ao estabelecer patamares mais elevados para os preços dos alimentos. Qual o impacto desse cenário para as populações mais pobres: representa uma ameaça, por dificultar ainda mais o acesso aos produtos, ou é algo positivo por representar uma oportunidade de desenvolvimento a países exportadores, como o Brasil?
JGS: Na maior parte do mundo, a fome é um problema de acesso: existe comida suficiente, mas o que muitas vezes falta é o dinheiro para comprá-la. Famílias pobres chegam a gastar até 70% de sua renda em alimentos, daí a importância de reforçar as redes de proteção social, especialmente em épocas de alta de preços. No entanto, se isso não for acompanhado de programas de inclusão produtiva, dificilmente as famílias conseguirão manter-se acima da linha da pobreza graças a seu próprio esforço. Para grandes exportadores de alimentos, a alta dos preços representa uma oportunidade. O desafio é utilizar isso em benefício da inclusão social. Mas o lucro com os preços mais altos nem sempre chegam até os agricultores familiares, muitas vezes ficando com intermediários do processo. Também é importante lembrar que a atual alta dos preços vem acompanhada de um aumento na volatilidade. Sem saber a que preços poderão vender sua safra, muitos agricultores tem receio de investir.

CC: Em sua opinião, uma solução de longo prazo para os desafios da segurança alimentar está mais relacionada ao simples aumento da produção ou a uma melhor distribuição e utilização dos recursos disponíveis? E essa solução exige mais dinheiro ou vontade política, em âmbito mundial?
JGS: Garantir a segurança alimentar depende, essencialmente, de traduzir a vontade política em ação concreta. Sem isso, o discurso fica vazio. Isso se faz implementando as políticas que mencionamos antes e cumprindo os compromissos, já assumidos em diversos foros internacionais, de aumentar o investimento na agricultura. Também precisamos aprimorar o sistema de governança da segurança alimentar mundial. Para alimentar uma população mundial que deverá subir dos atuais 7 bilhões para 9 bilhões em 2050 e que vai se alimentar melhor, a FAO estima que precisamos aumentar a produção em 70%. Temos as condições de fazer isso, mas é preciso voltar a investir em agricultura. Entre a década de 80 e 2005 a ajuda internacional destinada ao setor caiu de 17% em 1980 para 3% em 2006.
CC: O Brasil tem erguido barreiras legais à venda de terras para estrangeiros. Em países da África, chineses têm adquirido largas extensões territoriais e exportam para o continente até mesmo a mão de obra que trabalhará no cultivo do solo, o que limita ao mínimo a possibilidade de distribuição de benefícios econômicos para a população nativa. A internacionalização da agricultura, aliada ao avanço do modelo das grandes culturas, é de fato uma ameaça à criação de um sistema agrícola global capaz de reduzir as desigualdades e eliminar a fome?
JGS: A compra de terras por estrangeiros é um fenômeno que vem ocorrendo em várias partes do mundo, que pode trazer benefícios se vier acompanhada de reinvestimentos que busquem melhorias econômicas e sociais nas áreas em questão. O fundamental é que os países desenvolvam um sistema de uso responsável da terra. A FAO está apoiando esse processo organizando uma série de consultas com governos, setor privado, produtores, sociedade civil e organismos internacionais que vão resultar em diretrizes voluntárias para a governança da terra e outros recursos naturais (http://www.fao.org/nr/tenure/directrices-voluntarias/es/). As diretrizes proporcionarão orientação prática sobre como montar esse sistema de modo a contribuir na luta contra a fome e a pobreza, pela sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento econômico e social dos países.
CC: Que passos o Brasil deveria dar para se firmar como um exemplo mundial na produção sustentável de alimentos?
JGS: A “Revolução Verde” ajudou a duplicar a produção mundial de cereais, mas a agricultura intensiva também tem causado uma degradação ambiental. Por isso, precisamos de uma revolução duplamente verde. Podemos produzir mais alimentos, o desafio é fazê-lo de modo ambiental e socialmente sustentável.
CC: É possível conciliar a produção de pequenos agricultores com a agroindústria?
JGS: Não só possível, mas também necessário. Os pequenos produtores são os principais responsáveis pela segurança alimentar em muitos países em desenvolvimento. Na América Latina, eles produzem a maioria dos produtos da dieta básica dos países. Na África, se observou que os países que conseguiram aumentar a produção local estavam mais protegidos frente à alta dos preços dos alimentos. Por outro lado, a agroindústria é quem abastece o mercado mundial de alimentos e, no caso do Brasil e outros países, tem sido um importante motor do crescimento econômico.
CC: O Brasil tem tentado, com o etanol de cana-de-açúcar, provar ao mundo que é possível apostar na bioenergia sem ameaçar a produção de alimentos. Temos chances concretas de ser bem sucedidos nessa empreitada, que gera polêmica mesmo entre os países em desenvolvimento?”
JGS: Eu vou parafrasear o ex-presidente Lula para responder: biocombustíveis é que nem colesterol, tem o bom e tem o mau. No caso do Brasil, a produção de etanol a partir de cana de açúcar não afeta a segurança alimentar e a inclusão da agricultura familiar na cadeia produtiva de biodiesel oferece a milhares de pessoas uma fonte adicional de recursos. Mas dependendo da matéria prima utilizada e o país em questão, o impacto pode ser negativo. Enfim, biocombustíveis não podem ser considerados uma bala de prata, mas também não podemos demonizá-los.

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