
'Marcha das vadias' ganha adeptos e se multiplica nos EUA
Richard Lautens - 3.abr.2011/Associated Press ![]() |
LUCIANA COELHO
EM BOSTON
Estuprada por colegas na faculdade em uma festa, Jaclyn Friedman nunca chegou a dar queixa. "Tanta gente disse que eu seria culpada, por estar na festa, por estar bebendo, por me vestir como eu me visto, que eu desisti."
O episódio, que aconteceu há quase duas décadas e foi narrado com resignação à Folha, marcou a vida da escritora e ativista feminista.
Seus agressores, inicialmente expulsos da faculdade, acabaram readmitidos e impunes, diz ela.
No último sábado, aos 39 anos, sutiã à mostra e tatuagem anunciando "corajosa", era Jaclyn uma das oradoras da SlutWalk, a "marcha das vadias", que reuniu 2.000 pessoas em Boston.
Até o segundo semestre, o movimento que começou em Toronto e pipocou em outras dez cidades dos EUA e do Canadá deve chegar a mais 40 cidades americanas e 19 outras pelo mundo.
Nova York, Houston, Londres, Johannesburgo e Buenos Aires estão no roteiro para reivindicar o significado da palavra "slut" (traduzível como "puta" ou "vadia", mas que na origem era "mulher desordeira").
"Porque nós vivemos um mundo de mentiras, sempre ouviremos que devemos ser obedientes, discretas, disponíveis e nunca agressivas - se o formos, viramos putas, e essa palavra é usada para nos pôr na linha", disse Jaclyn. A plateia urrou.
A SlutWalk surgiu como um protesto em resposta ao comentário de um policial canadense que orientou universitários dizendo: "Se a mulher não se vestir como uma vadia, reduz-se o risco de ela sofrer um estupro".
A frase reverberou não só no Canadá. Qualquer país, afinal, tem exemplos do que os organizadores chamam de "cultura de estupro": considerar o estupro um crime menor ou provocado pela vítima (quase sempre mulher, mas às vezes, homem).
MACHISMO
Os comentários de Paulo Maluf (com seu "estupra, mas não mata") e do comediante Rafinha Bastos (sobre mulheres feias que deveriam agradecer pelo estupro) traduzem o raciocínio.
Mas a SlutWalk vai além dos comentários machistas - como o da senhora que, ao ver Theresa Esconditto, 29, a caminho da marcha com "estou pedindo", estampado no decote, reprovou. "Espero que esteja assim para uma peça de teatro."
Como Jaclyn, muitas das participantes foram estupradas. "Não dá mais para que nos violem e nos culpem por isso, nem que nos digam o que fazer com nossos corpos", disse à Folha a comediante Cameryn Moore.
Na marcha majoritariamente feminina, moças carregavam frases como "meu vestido não significa sim". Uma participante tinha um cartaz dizendo ter sido estuprada aos 12 anos. "Estava usando agasalho largo e pantufas. Sou uma puta?"
Jornal e livro expõem 'cultura do estupro'
EM BOSTON
Dois exemplos recentes da "cultura do estupro" - culpar a vítima pela violência sofrida - repercutiram nas últimas semanas nos EUA, onde o cinema já abordou o tema brilhantemente em "Acusados" (1988), que deu o Oscar a Jodie Foster.
O primeiro foi uma reportagem publicada em março pelo jornal "The New York Times". O texto contava a história de uma menina de 11 anos que foi estuprada repetidamente por um grupo de homens em uma cidade do Texas - há 19 indiciados.
O repórter, porém, afirmava que a menina "usava maquiagem e se vestia como alguém mais velha".
Não demoraram as críticas e os protestos. O ombudsman do jornal chamou a reportagem de "desequilibrada", e o "NYT", após centenas de cartas, desculpou-se dizendo que o texto não queria dar a entender que a menina era culpada.
Outras duas reportagens foram publicadas depois, ambas respeitosas à criança.
O segundo exemplo é o recém-lançado livro da organizadora de eventos Liz Seccuro, "Crash Into Me" (um jogo de palavras que tanto pode ser traduzido como "colapso dentro de mim" quanto como "entre com tudo em mim"), editado pela Bloomsbury.
No livro, ela conta como foi estuprada em uma festa quando era caloura da Universidade da Virgínia, em 1984; como seus agressores (parte da elite social da faculdade) não foram punidos pela direção; como a direção a enganou para que não desse queixa à polícia; como ela abandonou a faculdade e como isso a marcou.
Vinte anos depois, Liz recebeu uma desconcertante carta de um de seus estupradores, pedindo desculpas. Mas com o passar dos meses, descobriu que o homem a estava seguindo. E deu queixa.
William Beebe, o agressor-perseguidor, foi sentenciado a dez anos de prisão. Cumpriu menos de seis meses. (LC)

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