terça-feira, 22 de novembro de 2016

Unha e carne com a classe dominante







Folha.com, 22/11/16




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Unha e carne com a classe dominante



Por Mario Sergio Conti
     



Numa churrascaria em Copacabana, nos anos 90, Sergio Cabral, o pai, falou de sua juventude na Zona Norte. Da boemia dos pobres. Dos seus meses em cana. Da fleuma da fina flor do samba. Do balanceio carioca entre ordem e desordem. 

Cabral frequentara a nata da malandragem. Conhecera o Rio dos sem-emprego, a cidade onde, segundo Antonio Candido, "não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia". Falou de uma sociedade áspera e fraterna – aquela na qual a gente se vira de sol a sol, e se ajuda, para sobreviver. 

A nostalgia permeava o seu papo. Depois de dois mandatos de vereador, era conselheiro no Tribunal de Contas, aonde chegara por compadrio político. Ocupava um cargo nevrálgico e se fazia de pícaro: relatava estripulias com funcionárias, mas não dizia o que de fato fazia. 

Como a simpatia lhe era natural, aceitava-se com tolerância o seu eventual comércio de favores. Seria um modo malandro de Cabral descolar um cacau, encostado num cargo público perto do Bola Preta.
Outro almoço, duas décadas depois, no Palácio Guanabara, mostrou a malandragem gangsterizada das altas esferas. A verve leve do velho Cabral virara vício calculista para Sergio Cabral Filho se arrumar. Na maior brodagem, o governador tratava todos como cupinchas. 

Com astuta bonomia, contava que, ao viajar de um comício para outro na campanha das Diretas, fumara um beck no avião com Beto Guedes e Aécio Neves. Com cinismo cru, louvava o "regime de metas" e a "transparência no uso do dinheiro público". 

Ao presidir a Assembleia Legislativa, Cabral Filho instituíra 60 CPIs. Para investigar o sistema financeiro, uma delas intimou um banqueiro que, tempos depois, relatou ter recebido o recado que a convocação poderia ser cancelada mediante R$ 3 milhões. 

Amigos de Serjão martelavam: Serginho não presta. O governador não estava nem aí. Padecia de laborfobia e exibicionismo ostentatório, corporificados em viagens sequenciais, mancebias e uniões fortuitas, ternos italianos e privada polonesa, dancinha com lenço na cabeça, seu cachorro no helicóptero rumo a Mangaratiba. 

Há quem o explique com perversões ou cupidez e faça julgamentos morais. Mas o seu caso é de sociologia. Jamais um governador fluminense foi tão unha e carne com a classe dominante. Garotinho se esfolou em quinas e arestas; Cabral era bola de bilhar sobre régua de cálculo.
Não foi só o cachorro Juquinha que voou no helicóptero. Todos os grandes partidos, as federações patronais, as probas figuras de proa da indústria e do comércio – os barões todos encheram as burras com Cabral. 

Ele lhes propiciou lucros a rodo enquanto entesourava. Sabia-se disso de cor e salteado na Vieira Souto, que fez boca de siri em benefício próprio. O Country Club agora joga bosta na Geni de Bangu porque a hipocrisia é um pilar da nossa civilização. 

Tudo é burla na nova ‘Ópera do Malandro’? Não. Em 2013, a bagaceira interditou por 40 dias a rua de Cabral, no Leblon. Como parte dela desceu do Vidigal, a gente de bem logo disse que eram malandros atrapalhando o trânsito. 

Um dia antes do estouro do cafofo de Cabral, uma massa ignara ameaçou a Assembleia, onde capatazes do high society podavam o salário alheio. Como faz com a malandragem desde a Colônia, o poder carioca baixou o pau. A questão social, se diz ainda no Antiquarius, é um caso de polícia.
 






Folha.com, 22/11/16



Até os postes da rua da Carioca sabiam



Por Álvaro Costa e Silva




Não fui íntimo, mas conheci Sérgio Cabral de perto, enquanto fazíamos a faculdade de jornalismo. Na época, ele era só o Serginho. Não se imaginava que pudesse virar deputado, senador, governador do Rio; tampouco que hoje seria hóspede de Bangu, a cabeça no pelo curto. 

Não me lembro dele no Tricopa, o botequim próximo. Torcedor do Vasco, nas peladas da turma Serginho se revelou um atacante caneleiro e violento — estilo que mais tarde adotaria na política. Tinha mais vocação para gazeteiro do que para jornalista: pouco ia às aulas. Certa vez, devendo um trabalho para o jornal-laboratório, trouxe um perfil sobre Nelson Cavaquinho em laudas velhas, a tinta da máquina de escrever quase sumindo. Um colega garantiu que ele havia contrabandeado o texto dos arquivos do então Sérgio Cabral mais famoso, o pai, um dos fundadores do "Pasquim".

Depois, quando nos encontrávamos, com sua carreira política subindo como foguete, invariavelmente fazia a pergunta: "Você está precisando de alguma coisa?". Um dia resolvi responder, no meio do beco dos Barbeiros, ele cercado de acólitos: "Estou. Você podia parar de fazer essa pergunta". Devo ter perdido a chance, ali, de pôr um lenço na cabeça num restaurante de Paris. 

Sua prisão foi comemorada nas ruas com fogos e vivas. As acusações do Ministério Público Federal são espantosas — um esquema que desviou R$ 224 milhões, além da propina mensal particular de 5% do valor das obras — mas, mais espantoso ainda, foi o tempo que se levou para levantar a lebre e agir. As relações perigosas do ex-governador eram sabidas até pelos postes da rua da Carioca.
 
As primeiras denúncias contra Cabral remontam há quase 20 anos, e ele conseguiu passar esse tempo todo pagando o cachorro-quente, nas festas de aniversário dos filhos, com dinheiro de empreiteiras.

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