Carta Maior, 22/11/2016
PEC 55: o financismo na
Constituição
Por
Paulo Kliass
A decisão de enviar uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) para tratar de uma dificuldade conjuntural, com o intuito de
encontrar alguma saída para a atual crise fiscal, carrega consigo um
significado profundo. Estamos frente a um risco muito mais grave e abrangente
do que simplesmente a recomendação de se aumentar ainda mais a já elevada dose
de austeridade na condução da política econômica.
A aprovação da PEC 241 pela Câmara dos Deputados e sua renumeração como PEC 55 no trânsito pelo Senado Federal têm o sentido exato de introduzir a lógica de dominância do financismo no interior mesmo do texto de nossa Constituição Federal. Uma sandice! As diretrizes constitucionais mais gerais para o tratamento das contas públicas não estabelecem hierarquia entre os diferentes tipos de receitas ou despesas. Esse tipo de orientação recebeu delegação do constituinte para ser contemplada na legislação infraconstitucional.
Assim, por exemplo, ocorreu no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando ele encaminhou ao Congresso Nacional uma proposição legislativa tratando das finanças públicas, tal como previsto no art. 163 da CF. Após tramitação, a matéria terminou aprovada, em maio de 2.000, sob a forma da Lei Complementar nº 101, - a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Naquele texto, pela primeira vez, foi incorporado como determinação legal um certo procedimento diferenciado para a apuração do resultado das contas públicas.
A aprovação da PEC 241 pela Câmara dos Deputados e sua renumeração como PEC 55 no trânsito pelo Senado Federal têm o sentido exato de introduzir a lógica de dominância do financismo no interior mesmo do texto de nossa Constituição Federal. Uma sandice! As diretrizes constitucionais mais gerais para o tratamento das contas públicas não estabelecem hierarquia entre os diferentes tipos de receitas ou despesas. Esse tipo de orientação recebeu delegação do constituinte para ser contemplada na legislação infraconstitucional.
Assim, por exemplo, ocorreu no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando ele encaminhou ao Congresso Nacional uma proposição legislativa tratando das finanças públicas, tal como previsto no art. 163 da CF. Após tramitação, a matéria terminou aprovada, em maio de 2.000, sob a forma da Lei Complementar nº 101, - a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Naquele texto, pela primeira vez, foi incorporado como determinação legal um certo procedimento diferenciado para a apuração do resultado das contas públicas.
“Resultado primário” entra na legislação.
Ao
longo dos 75 artigos da LRF, a expressão “resultado primário” comparece em
cinco oportunidades, quase sempre na companhia de seu
contraparente - o “resultado nominal”. À primeira vista esse fato pode ser
visto apenas como mais uma das múltiplas manifestações dessa nossa busca insana
pelo detalhismo e pelo particularismo nas definições legais. No entanto, as
consequências graves advindas de tal engessamento merece uma análise mais
detalhada. Nesse âmbito, nada costuma
ocorrer de forma gratuita ou desatenciosa.
Afinal, colocar o singelo adjetivo “primário” logo depois do substantivo “resultado” guarda implicações muito severas do ponto de vista do resultado da política econômica que se pretende implantar. Isso significa que todo o esforço realizado na obtenção do saldo superavitário entre receitas e despesas públicas não vai se importar com aquilo que venha a ocorrer com os gastos de natureza financeira. Isso, por definição. Pois entende-se por despesa primária toda aquela que não seja do tipo de gasto com pagamento de juros da dívida. As despesas financeiras não entram na lógica da contenção. Muito pelo contrário, elas podem até crescer enquanto os gastos de natureza social são reduzidos. E ponto final.
À época da elaboração da LRF, tal inovação obedeceu às pressões exercidas pelo “establishment” financeiro nacional e internacional para que as prioridades na formulação e condução da política econômica fossem atribuídas à esfera da finança. O objetivo era introduzir no texto de uma lei superior à legislação ordinária a lógica do ajuste conservador e ortodoxo, com a ameaça potencial e latente de responsabilizar criminalmente as autoridades públicas (federal, estadual ou municipal) por eventual desrespeito a tais determinações.
A incorporação da racionalidade subjacente ao conceito de superávit primário como elemento “natural” na abordagem das finanças públicas remonta ao período de eclosão das crises das dívidas externas dos países do terceiro mundo, a partir da década de 1980. Com o aval do FMI e demais organizações multilaterais, os acordos de renegociação das dívidas envolviam os famosos “procedimentos de ajuste”. Era a época de ouro do neoliberalismo e os pressupostos do chamado “Consenso de Washington” se impunham de forma absoluta. Como contrapartida da “ajuda” oferecida, tais entidades financeiras internacionais exigiam um sem número de condições para que os governos dos países endividados lograssem resolver seus respectivos problemas de liquidez internacional.
Afinal, colocar o singelo adjetivo “primário” logo depois do substantivo “resultado” guarda implicações muito severas do ponto de vista do resultado da política econômica que se pretende implantar. Isso significa que todo o esforço realizado na obtenção do saldo superavitário entre receitas e despesas públicas não vai se importar com aquilo que venha a ocorrer com os gastos de natureza financeira. Isso, por definição. Pois entende-se por despesa primária toda aquela que não seja do tipo de gasto com pagamento de juros da dívida. As despesas financeiras não entram na lógica da contenção. Muito pelo contrário, elas podem até crescer enquanto os gastos de natureza social são reduzidos. E ponto final.
À época da elaboração da LRF, tal inovação obedeceu às pressões exercidas pelo “establishment” financeiro nacional e internacional para que as prioridades na formulação e condução da política econômica fossem atribuídas à esfera da finança. O objetivo era introduzir no texto de uma lei superior à legislação ordinária a lógica do ajuste conservador e ortodoxo, com a ameaça potencial e latente de responsabilizar criminalmente as autoridades públicas (federal, estadual ou municipal) por eventual desrespeito a tais determinações.
A incorporação da racionalidade subjacente ao conceito de superávit primário como elemento “natural” na abordagem das finanças públicas remonta ao período de eclosão das crises das dívidas externas dos países do terceiro mundo, a partir da década de 1980. Com o aval do FMI e demais organizações multilaterais, os acordos de renegociação das dívidas envolviam os famosos “procedimentos de ajuste”. Era a época de ouro do neoliberalismo e os pressupostos do chamado “Consenso de Washington” se impunham de forma absoluta. Como contrapartida da “ajuda” oferecida, tais entidades financeiras internacionais exigiam um sem número de condições para que os governos dos países endividados lograssem resolver seus respectivos problemas de liquidez internacional.
Prioridade para o sistema financeiro.
Uma das imposições passou a ser justamente a geração certa e segura de superávit fiscal em sua abordagem “primária”. Ou seja, tratava-se de introduzir uma cláusula de procedimento que assegurava aos bancos o destino prioritário de qualquer saldo superavitário nas contas governamentais: o pagamento das obrigações financeiras. Ou seja, a dívida nova que acabava de ser renegociada tinha a garantia legal de cumprimento das cláusulas de pagamento no horizonte futuro. Nem que fosse às custas de agravamento do quadro social ou mesmo da quebra dos países. E assim foi feito, de maneira quase religiosa. O famoso sacrossanto respeito aos contratos e às leis do mercado.
Pois bem, passado mais de um quarto de século de vigência da LRF, eis que agora se pretende avançar ainda mais drasticamente na inovação jurídico-institucional. O texto da emenda constitucional em tramitação é claro o suficiente, a ponto de se tornar assustador:
“Art. 101. Fica instituído, para todos os Poderes da União e os órgãos federais com autonomia administrativa e financeira integrantes dos Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, o Novo Regime Fiscal, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos art. 102 a art. 105 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.” (GN)
Assim, fica criado um “novo regime fiscal” no texto constitucional, com a duração de 20 anos. O interessante é que em nenhum momento a Constituição trata do conceito “regime fiscal”. Nem do novo, nem do velho. Ora, como então se justifica a criação de um “novo” no corpo da própria Carta sem que exista atualmente ao menos alguma referência ao regime que deveria orientar os procedimentos relativos a receitas e despesas públicas?
Talvez a resposta fique um pouco mais clara quando se verifica o disposto no artigo que vem logo a seguir na proposta de emenda:
“Art. 102. Será fixado, para cada exercício, limite individualizado para a despesa primária total do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, inclusive o Tribunal de Contas da União, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União.” (GN)
Como se pode compreender, o “novo regime fiscal” nada mais é senão a explicitação da abordagem das contas orçamentárias sob a ótica do superávit primário. Bingo! Os autores pretendem introduzir na Constituição o conceito da “despesa primária” e a obrigatoriedade de sua utilização nas regras para apuração do resultado fiscal ao longo das próximas 2 décadas. Assim, não mais se contentam com a obrigatoriedade de seguir à risca os ditames da ortodoxia estar definida em lei complementar. A partir de eventual aprovação da proposição, as autoridades governamentais, inclusive da União, estarão obrigadas a seguir por essa cartilha em qualquer hipótese. Pouco importa o que pense a maioria da população ao longo do período. Programas de governo alternativos estão vedados ao longo de todos processos eleitorais a serem realizados até 2036.
FMI abandona e Brasil recupera?
Ora, tal insanidade é proposta exatamente em um momento em que a maioria dos países que optaram pelos ajustes de natureza austericida esboçam algum tipo de auto crítica e saem em busca de caminhos alternativos. O próprio FMI e suas organizações multilaterais parceiras reconhecem publicamente os equívocos embutidos nas medidas de ajuste recessivo, em que são privilegiados exclusivamente os interesses do financismo. Veja o que dizia um documento do Fundo há alguns meses atrás:
"Em vez de gerarem crescimento, algumas políticas neoliberais têm aumentado a desigualdade e colocado em risco uma expansão duradoura".
É de se imaginar que estejamos em um momento de mudança de paradigma na condução das economias pelo mundo afora.
Além de serem injustos do ponto de vista dos setores sociais beneficiados ou prejudicados, os programas que foram impostos aos países em dificuldades revelaram-se ineficientes, inclusive do ponto de vista da solução dos problemas que pretendiam enfrentar. Está mais do que demonstrado que a única saída viável é a que contemple a retomada do crescimento econômico o mais rápido possível. Mesmo que nem se coloque na pauta o viés pró desenvolvimento social e econômico, o fato é que os ajustes recessivos operam como tiro no pé nos países que os adotam. O único setor que se beneficia de tal caminho é o financeiro. Tudo isso ocorrendo às custas de um brutal sacrifício imposto ao conjunto da sociedade – desde os trabalhadores até os empresários do setor produtivo.
Aceitar a PEC 55 é promover a introdução no financismo no coração da Constituição. Aprovar a PEC 55 é incorporar a dominância do financeiro para dentro da Constituição. Concordar com a PEC 55 é aceitar passivamente a hegemonia dos bancos no interior da Carta que pretendia assegurar direitos de cidadania e promover a inclusão e a igualdade.
*Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Ora, tal insanidade é proposta exatamente em um momento em que a maioria dos países que optaram pelos ajustes de natureza austericida esboçam algum tipo de auto crítica e saem em busca de caminhos alternativos. O próprio FMI e suas organizações multilaterais parceiras reconhecem publicamente os equívocos embutidos nas medidas de ajuste recessivo, em que são privilegiados exclusivamente os interesses do financismo. Veja o que dizia um documento do Fundo há alguns meses atrás:
"Em vez de gerarem crescimento, algumas políticas neoliberais têm aumentado a desigualdade e colocado em risco uma expansão duradoura".
É de se imaginar que estejamos em um momento de mudança de paradigma na condução das economias pelo mundo afora.
Além de serem injustos do ponto de vista dos setores sociais beneficiados ou prejudicados, os programas que foram impostos aos países em dificuldades revelaram-se ineficientes, inclusive do ponto de vista da solução dos problemas que pretendiam enfrentar. Está mais do que demonstrado que a única saída viável é a que contemple a retomada do crescimento econômico o mais rápido possível. Mesmo que nem se coloque na pauta o viés pró desenvolvimento social e econômico, o fato é que os ajustes recessivos operam como tiro no pé nos países que os adotam. O único setor que se beneficia de tal caminho é o financeiro. Tudo isso ocorrendo às custas de um brutal sacrifício imposto ao conjunto da sociedade – desde os trabalhadores até os empresários do setor produtivo.
Aceitar a PEC 55 é promover a introdução no financismo no coração da Constituição. Aprovar a PEC 55 é incorporar a dominância do financeiro para dentro da Constituição. Concordar com a PEC 55 é aceitar passivamente a hegemonia dos bancos no interior da Carta que pretendia assegurar direitos de cidadania e promover a inclusão e a igualdade.
*Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Folha.com, 24/11/16
Trump também aposta na Agenda Fiesp
Por
Laura Carvalho
Bernie Sanders, que vai liderar a oposição na
Comissão de Orçamento do Senado no ano que vem, desancou na segunda-feira (21)
o plano de infraestrutura de US$ 1 trilhão anunciado pelo presidente eleito
norte-americano.
"Durante
a campanha presidencial, Donald Trump falou corretamente sobre reconstruir a
infraestutura do nosso país. Mas o plano que ele oferece é uma fraude, que concede
desonerações fiscais vultosas a grandes empresas e bilionários de Wall
Street que já estão se dando extraordinariamente bem (...). O plano de Trump é
bem-estar empresarial em todos os sentidos", escreveu.
O termo
"corporate welfare",
utilizado por Sanders, que tomei a liberdade de traduzir para "bem-estar empresarial", foi
popularizado nas eleições canadenses de 1972 pelo líder do Novo Partido
Democrático à época, David Lewis. O
paralelo com o Estado de bem-estar social é evidente: em vez de proteger os
mais vulneráveis por meio de programas sociais e serviços públicos universais
de qualidade, o Estado de bem-estar empresarial estaria mais concentrado em
oferecer desonerações fiscais, subsídios e outras formas de tratamento especial
para grandes corporações.
O termo
encaixa-se como uma luva – não só para o plano de Donald Trump mas também para
o programa Ponte para o Futuro do PMDB,
o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) de Michel Temer e a "Agenda Fiesp" implementada por Dilma Rousseff desde
2011, que alguns insistem em chamar de "Nova Matriz Econômica".
O que a
experiência brasileira vem mostrando há alguns anos, no entanto, é que abrir mão da realização de investimentos
públicos diretos para oferecer desonerações fiscais, subsídios e outros
incentivos a grandes empresas pode sair muito caro para as contas públicas e a
economia em geral.
Ainda
assim, em meio à crise profunda e à falta total de motores de crescimento
econômico, o caminho escolhido é o de
desmontar de vez o nosso já frágil Estado de bem-estar social e eliminar
permanentemente a possibilidade de atuação do Estado como investidor em
infraestrutura.
O Estado de bem-estar empresarial
passa a estar garantido na Constituição: a ideia é reduzir despesas per capita
com saúde, educação, infraestrutura e programas sociais por 20 anos, em vez de
reduzir os privilégios dos que mais se beneficiam do dinheiro público.
Apesar de
todos os esforços e benesses, convencer os grandes empresários a assumir o
papel de investidores e empregadores não está sendo tarefa fácil. Primeiro,
porque não há demanda para o que produzem: o nível geral de utilização da
capacidade da indústria continua caindo e os estoques se acumulam. Segundo,
porque grande parte do setor empresarial nacional encontra-se afundado em
dívidas e os pedidos de recuperação judicial se multiplicam. Terceiro, porque,
em meio à forte incerteza sobre a rentabilidade futura dos investimentos, quem
ainda tem dinheiro em caixa certamente prefere garantir o alto rendimentos com
juros.
Se nem o
capitalismo de compadres está funcionando para garantir a retomada dos
investimentos, é difícil imaginar que os investidores estrangeiros atendam às
súplicas do governo.
A crise
nos Estados brasileiros é a demonstração de que, no "quem dá mais" das guerras fiscais, todos perdem. Melhor
torcer para que, no cenário em que estamos, Michel Temer não ouse tentar
competir com as vantagens que venham a ser oferecidas por Donald Trump.
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