CartaCapital, 25/11/16
Ernesto Nazareth: a
partitura do Brasil
Por
Tárik de Souza
Um dos arquitetos da estética musical do País, o anfíbio Ernesto Nazareth (1863-1934)
alinhavou o romantismo erudito de Chopin e Beethoven aos lundus, batuques e choros populares
das ruas do Rio de Janeiro. Sua produção foi abalroada pela evolução
tecnológica da época.
Da venda de partituras para a execução caseira, ao disco, embora como executante ele tenha gravado apenas
quatro fonogramas. Além de
professor, foi “pianeiro” nos salões de cinema, e nas lojas de música,
contratado como mero demonstrador do instrumento.
Alcunhado o “rei
do tango brasileiro” – embrião do chorinho, divergente do homônimo portenho
– Nazareth tem sua obra completa
registrada pela pianista Maria Teresa Madeira,
em alentada caixa com 12 CDs, repletos de
desempenhos primorosos.
“Foi paixão acima de tudo para encarar um mergulho
desses”, ironiza ela. Seu interesse pelo compositor, “desde meus 20 anos”, já
se materializara em três discos avulsos, dois deles para o exterior, e dois
esboços do projeto completo, enfim concretizado com a verba do Prêmio de Música
Brasileira da Funarte, angariada entre 300 concorrentes.
“Mesmo assim, coloquei alguns trocados do meu
bolso”, brinca ela. Foi auxiliada pela parceria com o marido, Marcio Dorneles,
técnico de som, que montou um estúdio num anexo da casa onde moram, em
Laranjeiras, no Rio.
“Durante 14 meses, colocava a meta mensal de quantas
músicas deveria gravar”, contabiliza. Intercalou as 215 faixas da caixa, registradas entre abril de 2014 e setembro de 2015,
à atividade de professora e excursões como intérprete.
Bacharel em
piano pela Escola de Música da UFRJ, com mestrado pela Universidade de Iowa,
EUA, esta ex-aluna de expoentes como Heitor Alimonda, Miguel Proença, Sergei Dorenski
e Arthur Rowe
também atravessou a fronteira, ao tocar com músicos populares como Altamiro Carrilho,
Leo Gandelman,
Rildo Hora
e Paulo Sérgio
Santos. Ela sumariza sua afinidade com o autor, num inescapável
autorretrato estético: “Nazareth tem o refinamento do erudito e o ritmo da alma
brasileira”.
Filho de um
despachante
aduaneiro e uma pianista amadora, sua mestra inicial, Ernesto
Julio de Nazareth, aos 6 anos foi apresentado ao pianista americano Louis Moreau Gottschalk, uma de suas futuras
influências.
Estudou ainda com outro americano aqui residente, Charles Lambert,
de New Orleans. Aos 14, compôs a
primeira polca lundu (Você Bem Sabe) e debutou em recital, aos 16, no
Clube Mozart, no Rio. No início da gravação no País, em 1903, seu tango
brasileiro Está Chumbado, de 1898, saiu em disco da Banda do Corpo de
Bombeiros, regida por outro fundador da MPB, o maestro Anacleto de Medeiros.
Dois anos depois, um de seus maiores êxitos, o tango
inaugural Brejeiro, de 1893, tratado por Maria Teresa com aveludado
lirismo na caixa, ganhou letra de Catulo da Paixão Cearense e tornou-se Sertanejo
Enamorado, na voz do cantor Mário Pinheiro. Outros tenores de massa, como Francisco Alves
(Favorito, A Voz do Amor) e Vicente Celestino (Êxtase) enfunaram os
dós de peito em versões letradas de suas composições.
A contradição do erudito de viés popular trespassou
exegeses de sua obra, como a do musicólogo Mário de Andrade em palestra prefácio de uma
exibição do pianista no Teatro Municipal, de São Paulo, em 1926. “De todas as
músicas feitas para as necessidades coreográficas do povo, ela é a menos
tendenciosamente popular”, distinguiu.
Homenageado por Villa-Lobos no Choro Nº 1 para violão, ele
retribuiu com a peça de concerto Improviso, rendilhada pelo piano
epitelial de Maria Teresa. Artífice de indeléveis matrizes do choro como Odeon,
Apanhei-te Cavaquinho, Ameno Resedá, Escovado, Tenebroso, Escorregando, Nazareth teria inspirado o personagem
Pestana, do sarcástico conto Um Homem Célebre,
de seu contemporâneo Machado de Assis. Emparedado por retratos de clássicos
europeus, os quais tentava emular, o pianista ficcional só alcançava sucesso a
bordo de polcas populares, que desdenhava ao compor.
O paralelo motivou o ensaio Machado
Maxixe: O Caso Pestana, de 2004, do professor e músico José Miguel Wisnik, letrista de
mais um totem nazarethiano, Bambino, gravado por Elza Soares, em 2002. E também a
tese de mestrado de outro professor e músico, Cacá Machado, O Enigma do Homem
Célebre – Ambição e vocação de Ernesto Nazareth (IMS, 2007).
“O sotaque sincopado da música de Nazareth encaixava-se
perfeitamente à construção simbólica de uma cultura musical autônoma, moderna e
genuinamente nacional, características necessárias para a legitimação do novo
regime”, escreve ele, a propósito da passagem do pianista dos salões da
aristocracia imperial para a elite da Primeira República.
E aponta a contradição: “Ao mesmo tempo, lembrava a
negação disso tudo, o passado dependente, escravocrata e bárbaro”. Por conta do
paradoxo, um dos motivos da vitalidade de seu repertório, em trânsito entre polcas,
quadrilhas, schottischs, valsas, maxixes, gavotas, tangos, foxtrotes, hinos e
até sambas carnavalescos, Cacá o situa num
vácuo: “Nem como tradição da música erudita nacional, nem inteiramente como
música popular folclórica”.
Nazareth ainda ruminava frustrações. Ao interpretar uma peça de
Chopin para o pianista polonês Arthur Rubinstein, de passagem pelo Brasil, foi
repreendido pelo visitante, interessado apenas em seus tangos brasileiros.
Durante um recital da pianista erudita Guiomar Novaes, já adoentado,
corroído pela surdez e a sífilis,
responsável por seu internamento e morte no hospício, lastimou-se por não
ter podido estudar no exterior. Mas o alcance de seu extraordinário legado,
cada vez mais amplo, redime o final inglório, pontuado pela valsa lenta Resignação.
Trata-se de um de seus temas mais surpreendentes para Maria Teresa,
ao lado de Elegia para a Mão Esquerda, foxtrotes como Xangô, Até
Que Enfim e as peças virtuosísticas Turuna, Batuque, Guerreiro
e Labirinto.
Admirado por contemporâneos como o erudito francês Darius Milhaud,
que incorporou trechos de suas músicas às peças Le Boeuf Sur Le Toit e Saudades
do Brasil, Nazareth seria revisitado por luminares posteriores, de
instrumentos e procedências estéticas variadas.
Devotaram álbuns à sua obra Jacob do Bandolim, Arthur Moreira
Lima, Antonio Adolfo, Maria Eudóxia de Barros, Dilermando Reis, Mú Carvalho,
André Mehmari,
Roberto Szidon,
Carolina
Cardoso de Menezes, Maria Josefina e Francisco Mignone.
O panorama abrangente propiciado pela caixa Integral
permite a garimpagem de pepitas ainda menos óbvias. Como as miríades de
notas da valsa Elétrica, a compassada Eponina, o autoexplicativo
maxixe Dengoso e as síncopas travessas da polca-tango Rayon D’or.
Há ainda curiosidades, como O Futurista, réplica romântica
ao movimento homônimo, lançada no ano da Semana de Arte Moderna, a tenentista Marcha
Heroica dos 18 do Forte, algumas odes oportunistas (Saudação ao Sr.
Prefeito Alaor
Prata), e um provável tributo ao matricial Frédéric Chopin, a densa Polonesa,
de mais de dez minutos.
Um roteiro multidisciplinar, digno de mestre-escola. “Ele sabia
escrever, era um pianista muito bom, um compositor muito atuante e conhecia o
instrumento, suas possibilidades sonoras e técnicas”, decupa Maria
Teresa.
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