Carta
Maior, 26/11/16
Ouça, Fidel tem algo a nos
dizer
Carta Maior
O
percurso de Fidel Castro foi tão intenso que por muito tempo será como se
continuasse por aqui.
Sua relevância vincula-se à da ilha na qual lutou como um leão para provar que
certas ideias pertenciam ao mundo através da ação.
Deixar uma obra inconclusa, porém não derrotada, em disputa, foi sua maior
vitória.
Num tempo em que a utopia perdeu o seu horizonte de transição, Fidel ergueu
pilares de uma ponte inconclusa, mas não derrotada, que dialoga com nossos
desafios e hesitações.Cuba
ainda magnetiza, a ponto de ostentar uma estatura geopolítica dezenas de vezes
superior ao seu tamanho demográfico e territorial.
Ali, mesmo ameaçada por escombros, pulsa a ideia de um mundo novo e fraterno.
Enquanto essa pulsação respirar em nós, Fidel será relevante.
Para começar, digamos aos céticos que não
é comum que um país tenha seu nome imediatamente associado, em qualquer lugar
do mundo, a sinônimo de audácia, soberania e justiça social.
Tampouco é trivial uma nação ser confundida com a legenda da bravura e da
resistência heroica ao imperialismo predador e desumano por mais de meio
século.
Todas essas exceções viram regra quando as letras se juntam para formar a
palavra Cuba, imediatamente associada a outra, ‘Fidel’.
A pequena ilha do Caribe, na verdade um
arquipélago de 4.195 restingas, ilhotas e ilhas, soma um território de
apenas 110 861 km² (pouco maior que o de Santa Catarina).
Os cubanos formam um povo de 11,2 milhões de pessoas.
Cuba, porém, está a léguas de ser uma simples ocorrência ensolarada no cardume
das pequenas nações.
Por uma razão que ela transformou em referências desde 1959: ali se experimenta
uma outra organização da sociedade humana, alternativa à fundada na exploração,
no consumismo e no individualismo.
Esse reduto desassombrado acaba de agregar um novo epíteto ao seu trunfo: Cuba é considerada a experiência social e
econômica mais próxima daquilo que se almeja como sociedade ambientalmente
sustentável no século XXI.
É assim que a lendária ilha do Caribe se agiganta no concerto das nações: sendo
a ponta de lança da humanidade em muitas
frentes.
As quatro letras de seu nome condensam um dicionário de experiências, de
esperanças, de vitórias, de tropeços, de lições e de problemas no caminho da
construção de uma sociedade mais justa e convergente.
Depois do desmoronamento do mundo comunista, tornou-se a mais longeva e atribulada experiência no gênero trazida do século XX
para o XXI.
Isso faz dela essa ponte de múltiplas conexões que singularizam e magnificam a
sua presença em um tempo em que a utopia socialista perdeu o seu horizonte de
transição.
Ao mesmo tempo em que a razão de ser dessa travessia avulta torridamente atual.
Os picos de desigualdade no capitalismo, o ocaso ambiental da humanidade, e
tudo o que isso denuncia em relação às formas de viver e de produzir em nosso
tempo, são uma evidência dessa teimosa pertinência.
Tome-se o caso dos EUA, para deliberadamente radiografar o cenário mais
favorável da opulência produzida pelo capital.
Os perdedores do sistema compõem um
contingente grande o suficiente, e desesperado a um ponto que se desconhecia,
que um semi-fascista acaba de ser eleito por eles com a promessa de acudir
uma aflição sem resposta nos mecanismos convencionais do mercado.
Nunca a desigualdade foi tão aguda.
Jamais a probabilidade de que ela solape as bases da sociedade foi tão
presente.
Não é Fidel Castro quem o diz.
A advertência foi feita em 2015 pela contida presidente do Federal Reserve
(Fed), o banco central americano, Janet Yellen.
Os abismos sociais no núcleo central do
capitalismo atingiram o ponto em que, segundo a discreta Yellen, os americanos deveriam se perguntar se isso é compatível
com os valores dos Estados Unidos.
Em uma conferência em Boston, a presidente do Fed informou que os níveis de
desigualdade nos EUA são os mais altos em um século.
“A desigualdade de renda e riqueza estão
nos maiores patamares dos últimos cem anos, muito acima da média desse período
e provavelmente maior que os níveis de boa parte da história americana antes
disso”,
afirmou.
Cuba não poderia ser tomada como um contraponto histórico a esse espiral.
A ilha jamais concluiu a transição para onde decidiu caminhar em 1960.
Tangido pela truculência imperial norte-americana, Fidel Castro proclamou,
então, a natureza socialista e marxista do governo.
Um ano antes havia derrubado a ditadura de Fulgêncio Batista e
iniciara uma reforma agrária que intensificou a guerra da elite local e
estrangeira contra o novo regime.
Cuba nunca se propôs a ser um modelo.
Desde o início foi uma aposta.
De olhos voltados para o relógio da história.
Quem já não ouviu a velha glosa segundo a qual ‘se não existe socialismo em um só país, quanto mais em uma só ilha’?
Nem os irmãos Castro, nem Che, nem nenhum dos pioneiros que desceram de Sierra
Maestra para tomar o poder no réveillon de 1959 imaginavam desmentir esse
interdito estrutural.
A aposta alternativa, porém, tampouco se consumou.
Um punhado de golpes de Estado sangrentos e preventivos que tiraram a vida de
milhares de pessoas e seviciaram um contingente ainda maior em toda a América
Latina, fizeram dos anos 60 e 70 um cinturão profilático em torno da grande
esperança cubana.
Todas as artérias que poderiam misturar seu frágil metabolismo ao corpo
vigoroso de uma integração regional progressista latino-americana foram
cirurgicamente seccionadas.
Lembra algo em curso no continente nesse momento?
Não é uma miragem. É uma tranca da
história que nunca se recolheu de fato.
A ação conjunta das elites, da mídia e dos exércitos, das federações
empresariais, dos judiciários carcomidos de ideologia conservadora, dos
partidos conservadores orientados e auxiliados pela mão longa do Departamento
de Estado e da CIA, foi e é implacável.
Cuba é o limite da resistência a isso. Razão pela qual parece agonizar
permanentemente. Mas, ao mesmo tempo, resistir.
Durante meio século o cerco asfixiante –
que teve no embargo econômico iniciado em 1962 a sua fivela mais arrochada -
não cedeu.
A obsessão conservadora contra a aposta cubana, símbolo de múltiplas
transgressões em relação aos valores e interesses das plutocracias regionais,
ficou comprovada mais uma vez nas eleições presidenciais brasileiras de 2014.
Em um dos debates mais virulentos da campanha, o candidato conservador Aécio Neves,
que derrotado passou a operar o golpe ora no poder, trouxe a ilha para o
palanque.
O tucano acusou o governo da candidata à reeleição, Dilma Rousseff, de cometer duas
heresias do ponto de vista do cerco histórico à audácia caribenha.
A primeira, o financiamento de US$ 802
milhões para a construção de um porto estratégico de um milhão de containers na
costa cubana de Mariel, a 200 quilômetros da Flórida.
A obra, capaz de transformar Cuba
em uma intersecção relevante do comércio entre as Américas, foi denunciada por
Aécio como evidência de cumplicidade com o castrismo.
Mariel se somou a uma ampla parceria na área da saúde, igualmente bombardeada.
Através dela, mais de 11 mil médicos
cubanos ingressaram no país, onde asseguram assistência a 50 milhões de pessoas.
O programa Mais Médicos, que levou
doutores cubanos a lugares onde profissionais brasileiros não querem trabalhar,
é um dos alvos do desmonte social em curso no Brasil assaltado pelo golpe de
Estado de 31 de agosto que uniu a mídia à escória, ao dinheiro grosso e ao
judiciário dos juízes de exceção.
O reatamento das relações diplomáticas entre EUA e Cuba – em águas incertezas,
após a vitória de Trump - trincou as patas desse discurso.
A calculadora política do conservadorismo opera – e age - ancorada na
certeza ideológica de que a ‘ilha’ é apenas uma ditadura enferrujada, falida,
desmoralizada e fadada à reconversão capitalista.
Jamais uma fonte de lições ao
regime de mercado ou aos limites da democracia tolerada pelo capital.
Cambaleante, servia à demonização de qualquer traço de planejamento econômico
que viesse afrontar a proficiente autorregulação dos mercados.
Morta, jogaria a pá de cal nos resquícios estatistas e socializantes
teimosamente colados à tradição da esquerda latino-americana.
O vaticínio sincronizou o tempo de vida do regime ao do metabolismo de Fidel
Castro –cujo epílogo antecipado foi tentado inúmeras vezes pela CIA e
fracassou.
Paciência. Sua morte, finalmente concretizada, é esse o diagnóstico da grande
Miami instalada na alma das elites locais, fará a implosão do regime diante da
qual os agentes e os mercenários tropeçaram, desde a desastrosa tentativa de
invasão da baía dos Porcos, em abril de 1961.
A impressionante resistência daquilo que se imaginava mais frágil do que tem se
mostrado ingressa, a partir deste 26 de novembro de 2016, num período novo, mas
dificilmente de fastígio das previsões conservadoras.
Em edição de 2014, a revista New Left Review arrolou dados interessantes sobre
a resiliência da frágil sociedade cubana diante da dupla adversidade imposta
pelo embargo americano e o fim do apoio russo, após o esfarelamento do bloco
comunista.
No momento em que toda a América Latina, o Brasil à frente, depara-se com uma
encruzilhada histórica encharcada de regressão, é inescapável a atualidade da
lição de luta e desassombro embutida nessa travessia.
Por maior que tenha sido a rigidez política de que se acusa o regime – e até
por conta da explosão que esse fator unilateral acarretaria - Cuba só não virou pó graças a três fatores:
planejamento público, organização social, consciência política de amplas
camadas de sua gente.
Não se trata de mitificar um caso de custo humano e social elevadíssimo. Mas de
enxergar na experiência extrema da adversidade, o alcance mitigador da
variável política, reafirmada no reatamento diplomático norte-americano.
Nesse sentido, o retrospecto da épica luta do povo de Cuba fala aos nossos dias
e à realidade que constrange as forças progressistas brasileiras.
Ao contrário da presunção que vê no degelo que precedeu a morte de Fidel o
atalho da conversão capitalista tantas vezes frustrada, a resistência pregressa
enseja outras esperanças.
O discernimento político e social acumulado pela sociedade cubana figura talvez
como o mais experimentado laboratório de ponta da história para resgatar o elo
perdido do debate latino-americano sobre a transição para um modelo de
desenvolvimento mais justo, regionalmente integrado, cooperativo,
democraticamente participativo e sustentável.
Se a morte de Fidel – assim legada por ele como mais uma aposta política -
desmentir a derrocada desses valores, dará inestimável contribuição para fixar
o chão firme capaz de desenferrujar a alavanca histórica.
Não é pouco.
E pode ser muito do ponto de vista do imaginário e da agenda regional,
assediados no momento pelo coro diuturno da restauração neoliberal.
A épica sobrevivência da pequena ilha, cuja morte anunciada era um poderoso
trunfo conservador, expõe heroicamente a chance de se quebrar a rigidez das
circunstâncias econômicas com o peso dos interesses históricos da maioria da
população (leia editorial http://cartamaior.com.br/?/ Editorial/O-lodo-o-povo-e-a- rua/37327)
Isso confere algum otimismo para brindar o final de 2016 como um horizonte em
aberto na história brasileira e latino-americana. Nenhuma experiência em marcha
reúne mais provações e adversidades que aquelas afrontadas e vencidas por Cuba.
Alguns tópicos do retrospecto criterioso feito pela New Left Review comprovam
isso:
1. Ao perder o apoio russo nos anos 90 e diante da
‘teimosa recusa’ em embarcar em um processo de liberalização e privatização, a
"hora final" de Fidel Castro parecia, finalmente, ter chegado;
2. Cuba enfrentou o pior choque exógeno de qualquer um dos membros do bloco
soviético, agravado pelo saldo do longo embargo comercial norte-americano;
3. A dramática recessão iniciada em 1990
exigiria uma década para restaurar a renda real per capita anterior à derrocada
do mundo comunista;
4. Sugestivamente, porém, Cuba saiu-se melhor em termos de resultados sociais,
comparada às economias do bloco comunistas atingidas pela mesma borrasca e
ancoradas em uma base econômica até mais sólida;
5. A taxa de mortalidade infantil em Cuba, em 1990, foi de 11 por mil, já muito
melhor do que a média no leste europeu; em 2000 ficaria ainda abaixo disso,
apenas 6 por mil, uma melhora mais rápida do que a verificada em muitos países
da Europa Central que haviam aderido à União Europeia;
6. Hoje, a taxa de mortalidade infantil
em Cuba é de 5 por mil; um desempenho superior ao dos EUA,
segundo a ONU, e muito acima da média latino-americana;
7. Não só. A expectativa de vida da
população cubana aumentou de 74 para 78 anos na década de 90 - mesmo com a
ligeira alta das taxas de mortalidade entre grupos vulneráveis nos anos mais
difíceis;
8. Hoje, após 55 nos de embargo e 26 de fim do apoio russo, a ilha ostenta uma
das expectativas de vida mais altas do antigo bloco soviético e de toda a
América Latina;
9. Não se subestime as terríveis privações, o custo humano, econômico e
político cumulativos. A solitária busca de uma luz em um túnel claustrofóbico,
década após década, cobrou um preço alto do povo cubano;
10. A superlativa dependência da economia em relação às exportações de açúcar
para a Rússia era proporcional ao estrangulamento da estrutura produtiva
decorrente do bloqueio norte-americano - um garrote estava ligado ao outro, em
dupla asfixia;
11. A conta só fechava graças a uma cotação preferencial paga pelo Kremlin: uma
libra de açúcar enviada à URSS gerava US$ 0,42 em receitas a Havana; cinco
vezes a cotação mundial do produto (US$ 0,09);
12. Até a derrocada do bloco comunista, as importações cubanas equivaliam a 40%
do PIB; delas dependiam 50% do abastecimento alimentar da população e mais de
90% do petróleo consumido. Era um pouco como o superciclo de commodities que ao
se esgotar desencadeou as pressões políticas e econômicas afloradas agora na
América Latina e no Brasil;
13. Mesmo com o ‘superciclo do açúcar’, o déficit comercial cubano de US $ 3
bilhões tinha que ser refinanciado generosamente pela União Soviética;
14. Essa rede de segurança se rompeu abruptamente em janeiro de 1990 e sumiu
por completo há 23 anos. As receitas propiciadas pelo açúcar cairiam em 79%: de
US $ 5,4 bilhões para US $ 1,2 bilhão. As fontes de financiamento externo
que mitigavam o embargo americano evaporaram;
15.Washington viu aí a oportunidade de
bater o último prego no caixão de Havana, como se fez aqui, com o golpe. As
sanções e represálias comerciais e financeiras contra países e instituições que
facilitassem o acesso de Cuba ao crédito comercial foram acirradas. Deu
certo: enquanto nos países do leste europeu, a transição pós-Muro (1991-1996)
amparou-se em um fluxo de crédito externo da ordem de US$ 112 dólares per
capita/ano, em Cuba esse valor foi de US$ 26 dólares per capita/ano;
16. O resultado foi um dramático cavalo de pau no comércio exterior: Cuba caiu de uma das taxas de importações
mais altas do bloco comunista (de 40% do PIB), para uma das mais baixas (15% do
PIB). Todas as tentativas de Havana
de diversificar e ampliar seu leque de exportações esbarravam no embargo
norte-americano. Alguma
surpresa pela gratidão emocionada de Fidel em relação a Chávez, que por anos a
fio garantiu um fluxo de petróleo à ilha, na base do escambo, em troca de
serviços médicos e sociais?
17. Ainda assim, a penúria foi de tal ordem, que o manejo puro e simples do
racionamento não explica a sobrevivência do regime;
18. Quando o ferramental econômico já não respondia mais e patinava em
círculos, Havana viu-se diante de duas escolhas: render-se ao lacto purga
ortodoxo (como está sendo imposto ao Brasil) e rifar a ilha numa apoteótica
rendição capitalista, ou apostar no seu
derradeiro trunfo: a resposta coletiva liderada
pelo Estado, ancorada em uma longa tradição de planejamento, mobilizações de
massa, debate popular e participação direta da sociedade nas tarefas nacionais;
19. A opção escolhida instalou uma rotina de prontidão na ilha, como se a
população vivesse permanentemente na antessala de uma catástrofe natural em
marcha;
20. Cortes ensaiados em serviços essenciais treinavam a sociedade para a defesa
civil em mobilizações coordenadas envolvendo fábricas, escritórios,
residências, escolas, hospitais;
21. A segurança alimentar básica foi planejada com disciplina férrea e mantida
em condições de escassez extrema;
Cuba soçobrou, gemeu, contorceu-se e acumulou recuos.
O regime recorreu às forças extremas de sua organização política e social para
enfrentar restrições equivalentes às de uma guerra, que se estende por meio
século, a mais longa de que se tem notícia no mundo moderno.
Mas a sociedade não se desmanchou, nem se rendeu.
Sem
ilusões.
Cuba continua a ser uma construção inconclusa, que independe de suas próprias
forças para se consumar.
Como tal, enseja debate, comporta retificações e, sobretudo, cobra agendas
desassombradas – e não apenas em Havana.
O reatamento das relações diplomáticas com os EUA, por exemplo, poderia ser um
acelerador desse processo.
A morte de Fidel, ao contrário da rendição inapelável prevista nos prognósticos
conservadores, pode levar a ilha a surpreender de novo, ao não sucumbir à
fatalidade tantas vezes anunciada.
Mas se
mantendo como uma ponte inconclusa, a cobrar de outros povos e nações a
reinventar a transição rumo a uma sociedade mais justa e libertária no século
XXI.
O ano de 2016 está sendo muito, muito duro
com a esperança progressista brasileira e latino-americana.
Mas foi muito mais dura por 55 anos com a esperança cubana. Fidel e sua gente
não desistiram.
Ao contrário: ‘Não há um átomo de
arrependimento em mim’, dizia.
Obrigado, companheiro Fidel, por esse
legado.
Agora é a nossa vez,
‘Hasta la victoria, siempre!'
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