Socialista Morena, 02/11/16
O plano é acabar
com direitos trabalhistas
Por Cynara Menezes
Só alguém muito mal informado ainda não percebeu isso, porque os encarregados de levar adiante a dilapidação dos direitos trabalhistas já começaram a agir. No dia 27 de outubro, o STF (Supremo Tribunal Federal) atentou contra o direito de greve previsto na Constituição ao aprovar, por 6 votos a 4, que o poder público deve cortar os salários dos servidores que fizerem paralisações. Assim, será possível ao governo ilegítimo não só arrochar a saúde e a educação como impedir que professores, médicos, enfermeiros e demais servidores da saúde pública protestem.
O ministro Luiz Fux não teve o menor pudor em justificar as razões para a decisão: ajudar o governo ilegítimo a evitar paralisações de trabalhadores insatisfeitos. “Numa visão realista, nós estamos num momento muito difícil e que se avizinham deflagrações de greve e é preciso estabelecer critérios para que nós não permitamos que se possa parar o Brasil”, disse Fux.
Para garantir que, ainda por cima, ninguém possa reclamar à Justiça, o próximo alvo é o TST (Tribunal Superior do Trabalho). Ninguém esconde mais esta intenção, é tudo escancarado. Pena que o povo só acompanha a Globo… Em abril, o TST já reclamava dos cortes no orçamento, maior do que outros ramos do Judiciário, que estrangulam o tribunal, pondo em risco seu funcionamento. O corte foi justificado, na época, pelo atual ministro da Saúde de Temer, Ricardo Barros, então relator da Lei Orçamentária, com um ataque frontal à Justiça trabalhista.
“As regras atuais estimulam a judicialização dos conflitos, na medida em que são extremamente condescendentes com o trabalhador”, escreveu Barros no relatório. “Como a Justiça do Trabalho não tem se apresentado mais cooperativa, nós vamos apresentar um corte mais significativo para eles, para que eles reflitam um pouco de que não tem cabimento o Brasil ter 3 milhões de processos e 50 mil funcionários para cuidar de processo trabalhista.”
Prefeito eleito de Porto Alegre, o deputado federal tucano Nelson Marchezan Jr. defendeu com todas as letras a extinção da Justiça do Trabalho na Câmara, em julho. (https://www.youtube.com/
Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes, do STF, também passou a atacar a Justiça trabalhista sem papas na língua. “Esse tribunal é formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal. Eles têm uma concepção de má vontade com o capital”, disse Gilmar, em palestra promovida pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abidib) e pela Câmara Americana de Comércio (Amcham), como se não fosse este justamente o objetivo para o qual o TST foi criado em 1946: proteger o trabalhador contra a selvageria do capital. Para defender o capital existem dezenas de outras instâncias, jurídicas ou não, como por exemplo o tribunal onde atua Gilmar.
Segundo o ministro do Supremo, o trabalhador do Brasil, onde ainda existe trabalho escravo, é “hiperprotegido”. “Tenho a impressão de que houve aqui uma radicalização da jurisprudência no sentido de uma hiperproteção do trabalhador, tratando-o quase como dependente de tutela, em um país industrialmente desenvolvido que já tem sindicatos fortes e autônomos.” O relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, mostra, no entanto, que um quarto dos processos no tribunal se resolvem por meio de acordo entre trabalhadores e empregadores, o que coloca a Justiça do Trabalho no topo do ranking de conciliação.
A reação do TST foi imediata. O presidente do tribunal, Ives Gandra Martins Filho, lamentou as declarações do colega de Supremo, dizendo ter sido “infeliz” a forma como Mendes se expressou, “não se admitindo dar à Corte tal tratamento, nem a nenhum de seus ministros”. 18 ministros do TST enviaram carta à presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, para reclamar do modo “desprimoroso e preconceituoso” com que Gilmar tratou o tribunal. No documento, os ministros “repudiam e deploram a conotação de parcialidade em desfavor do Capital que se atribuiu ao TST, absolutamente injusta, decerto fruto de desinformação ou, o que é pior, de má informação”.
Os ministros lembraram na carta à presidente do Supremo que este tipo de declaração atenta contra o já combalido Estado de direito em nosso país. “Manifestação desse jaez, muito além de macular o Tribunal Superior do Trabalho, enodoa, desprestigia e enfraquece o Poder Judiciário e cada um de seus juízes, prestando-se, assim, a solapar o Estado democrático de direito.”
A ideia é acabar com a Justiça trabalhista e substituí-la pela proverbial morosidade da Justiça comum. O mais chocante é que o mesmo plano está sendo feito na Argentina, indicando que se trata de uma ação orquestrada pelos “sábios” do Banco Mundial, que voltam a ter controle sobre nossos destinos, como na época de Fernando Henrique Cardoso. Há pelo menos dois documentos do banco conclamando os governos da região à reforma do Judiciário, com especial enfoque na Justiça trabalhista. Em 2003, ao assumir a presidência, um dos primeiros atos de Lula foi engavetar a proposta de flexibilização da CLT, que para o Ministério Público do Trabalho é sinônimo de precarização. Agora que o PSDB voltou ao governo (sem eleição), a agenda antitrabalhador volta à ordem do dia.
Em julho deste ano, o presidente da Argentina, Mauricio Macri, criticou, exatamente como Gilmar Mendes, o “excessivo” peso da Justiça trabalhista em favor… dos trabalhadores. Segundo Macri, é condição sine qua non para os investimentos prometidos na eleição que haja “uma Justiça trabalhista mais equitativa, não tão voltada a encontrar sempre a razão para uma das partes”, ou seja, os trabalhadores. O alvo do presidente de direita é acabar com o in dubio pro operario, um dispositivo legal paralelo ao in dubio pro reo da Justiça penal.
Este dispositivo está expresso na Lei do Contrato de Trabalho (a CLT argentina), promulgada em 1974 por Juan Perón, e prevê, em seu artigo 9, o “princípio da norma mais favorável para o trabalhador”. “No caso de dúvida sobre a aplicação de normas legais ou convencionais prevalecerá a mais favorável ao trabalhador, considerando-se a norma ou conjuntos de normas que reja cada uma das instituições do direito do trabalho. Se a dúvida recair na interpretação ou alcance da lei, ou na apreciação da prova nos casos concretos, os juízes ou encarregados de aplicá-la se decidirão no sentido mais favorável ao trabalhador”, diz o artigo.
Na semana passada, Macri apresentou ao Congresso um projeto que limita as ações na Justiça por acidentes de trabalho, primeira etapa do seu plano: antes de recorrer à Justiça, os trabalhadores têm que passar por comissões médicas – uma recomendação explícita do Banco Mundial, que propõe a utilização de “instâncias alternativas” para a resolução dos conflitos trabalhistas. O objetivo declarado é “reduzir os litígios”. Volta e meia o presidente do país vizinho reclama da “indústria das ações trabalhistas”, mesmo termo usado pelas entidades patronais e por multinacionais que não conseguem se adequar às leis brasileiras, como a rede de supermercados Walmart, constantemente criticada por suas práticas trabalhistas em seu país de origem, os Estados Unidos.
Ao fechar 25 lojas no Brasil, em 2014, a rede norte-americana usou como justificativa o “aumento significativo das reivindicações trabalhistas nos últimos anos”. Entre as queixas a que se refere a rede, estão casos como o do auxiliar de depósito gaúcho que recebeu indenização por dano moral porque seu chefe no Walmart o esculachava publicamente quando deixava de cumprir alguma meta. Se conseguirem acabar com a Justiça do Trabalho, adeus reparação em denúncias de assédio moral como esta. A humilhação ao trabalhador ficará impune – ou sujeita à morosidade da Justiça comum.
Trabalho precarizado, ausência de direitos e nenhuma instância onde reclamar: concretizados os planos da direita no poder, voltamos ao século 19. Já tínhamos alertado que essa “ponte para o futuro” leva na verdade ao passado… O objetivo é fazer o Brasil copiar os EUA, onde nem licença-maternidade remunerada existe até hoje.
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