O Estado
de S. Paulo, 05 Novembro 2016
Conspiraçãogenital
Por Sérgio Augusto
Uma nuvem
de testosterona paira sobre a campanha eleitoral americana. Triste sina a de Hillary Clinton.
Não lhe bastasse o infrene priapismo do marido, pegou pela proa (pela popa
seria pior) a fanfarronice sexista de Donald Trump e
levou as sobras de uma investigação do FBI
(Federal Bureau of Investigation), a Polícia Federal de lá, sobre as taras
de um exibicionista serial, a quem também soube enfrentar com estoica
galhardia. Aquilo que as feministas
apelidaram de falocracia americana fez o que pôde para impedir Hillary de
tornar-se a primeira mulher presidente dos Estados Unidos. E ainda não
desistiu.
Uma
eleição que, apesar dos indícios em contrário, prometia ser mais histórica do
que histérica, ganhou um involuntário penetra a 11 dias do seu desfecho: as
mensagens sexuais trocadas entre o ex-congressista e notório depravado Anthony Weiner com uma menor. Perdidos no computador da ex-mulher
de Weiner, Huma
Abedin, secretária de Hillary, e exumados pelo FBI, os e-mails
reavivaram as brasas da suspeição de má conduta da candidata democrata ao tempo
em que era secretária de Estado do governo Obama. Não por trocar sexting com
alguém, mas por ter inadvertidamente revelado alguma informação sigilosa
utilizando-se de um servidor de internet particular.
As brasas
dormiam desde julho, quando o atual diretor do FBI, James Comey, decidiu não levar
adiante uma investigação que até então nada provara de concreto: nem que a
correspondência eletrônica de Hillary comprometera a segurança nacional, nem
que a Fundação Clinton, dela e do marido, se metera em falcatruas contábeis. A
decisão de Comey incendiou os republicanos, inflamou a histeria de Trump e
provocou um racha na polícia federal americana. Descartar o indiciamento de
Hillary seria uma ofensa à dignidade do Bureau, na opinião de diversos agentes,
graúdos e miúdos, aposentados e na ativa.
Suspeita-se
que os e-mails de Weiner, sob investigação do FBI, tenham se misturado aos de
Abedin durante uma troca de computadores. Mesmo ciente de que uma perícia
confiável no HD da secretária de Hillary não seria concluída antes da eleição, Comey, pressionado por colegas e pelo
estado-maior de Trump, comunicou por carta ao Congresso a descoberta de
arquivos que lhe pareceram “pertinentes” à investigação interrompida em julho,
salientando, contudo, desconhecer seu conteúdo e sua significância.
Foi um gesto sem
precedentes nos anais do FBI, um procedimento no mínimo descuidado, para usar a mesma expressão
(“careless”) utilizada por Comey ao se referir ao modo como Hillary navegava na
internet quando secretária de Estado. Avaliações mais pesadas – “erro
catastrófico”, “complô político”, “caça às bruxas” – tisnaram a reputação de
Comey, que passou a semana tentando atenuar seu desgaste. Até Obama passou-lhe um sabão. “Não operamos com informação incompleta, não operamos com
vazamentos, só operamos com base em decisões concretas”, estrilou o
presidente, sobremodo agastado com os possíveis efeitos negativos da carta
junto ao eleitorado. Não mencionou o nome de Comey, por ele nomeado em 2013;
nem precisava.
‘The Guardian’ revelou, na
quinta-feira, que o FBI é uma Trumplândia. O que não surpreende numa instituição composta majoritariamente por
homens brancos, apóstolos da lei, da ordem e dos “valores familiares” que tanta
hipocrisia alimentam na sociedade americana.
Boa parte de seus agentes, outrora alcunhados G-men (abreviatura de “Goverment
men”), considera Hillary o anticristo personificado e alguns deles, com
estreitos laços de amizade e relações profissionais com o ex-prefeito de Nova
York, Rudy
Giuliani, esmeram-se em vazar
informações sobre as investigações do Bureau para a Fox News, mais
precisamente para Brett Baier, espécie de operativo informal dos
republicanos naquele canal de notícias, não
por acaso conhecido como “Faux News”.
Antecipando-se
à divulgação da carta de Comey, Giuliani anunciou naquele canal que seu amigo
Trump guardara para os próximos dias mais “uma ou duas surpresas” contra
Hillary. Uma já foi detonada.
Embora em
2013 o ex-prefeito tenha apoiado o congressista Mike Rodgers para dirigir o FBI, ele e Comey são amigos e sempre fecharam com
os republicanos. Ambos fizeram doações às campanhas de John McCain
e Mitt
Romney, ambos derrotados por Obama. Por estranho que pareça e talvez com a intenção de amansar a oposição,
desde 1935 os presidentes democratas procuram indicar republicanos para a
chefia da polícia federal. Kennedy e Johnson
herdaram Hoover; Jimmy
Carter escolheu William H. Webster; Bill Clinton fechou com Louis
Freeh, que passou oito meses valendo-se do cargo para catar provas que
justificassem o impeachment do presidente.
“Defender
a reputação do Bureau” sempre foi a palavra de ordem dos G-men. Fragilíssima
reputação, que o plenipotenciário J. Edgar Hoover, seu diretor de 1924 até
morrer (em 1972), muito contribuiu para desmoralizar. Quando Charles Bonaparte,
procurador-geral da Justiça do governo Theodore Roosevelt, propôs a criação de um órgão
de investigação, em 1908, o Congresso manifestou receio de que se instituísse
na América um sistema de espionagem interna similar ao da Rússia czarista. O
país não dispunha de uma polícia federal e Roosevelt prometeu que o Bureau of
Investigation, de início sem o F(ederal), teria apenas 34 detetives para seguir
e deter quem atentasse contra a segurança nacional. Dois anos depois, o Bureau
começou a justificar o receio dos congressistas de Washington. Mas o pior ainda
estava por vir.
E veio
justamente com Hoover. Quem lhe deu força e poder foi outro procurador-geral, A. Mitchell Palmer,
cujos raides violentos contra grupos de anarquistas e socialistas entraram para
o glossário da repressão americana com o merecido nome de “Palmer Raids”. Com Hoover dando as cartas, o FBI escreveu suas
primeiras páginas de glória, desbaratando quadrilhas mafiosas, liquidando
gângsteres, e caçando espiões nazistas durante a Segunda Guerra. Depois se
perdeu, executando a parte suja do pogrom macarthista e de outras lambanças da
Guerra Fria.
Ninguém mandou mais na América
entre 1924 e 1972 do que Hoover. Ele
cometeu exorbitâncias mesmo hoje inimagináveis, como pressionar e fazer
chantagem com congressistas, escritores, celebridades, e todo tipo de autoridade.
Grampeava telefones, monitorava correspondências, infiltrava agentes em
residências disfarçados de mordomos e jardineiros. Harry Truman, um dos presidentes
democratas que o herdaram, só se referia
ao FBI na intimidade como “a Gestapo”. Não tenho a menor dúvida de que lado
Hoover estaria na eleição presidencial que nesta terça-feira se decide.
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