quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Realidade econômica ignora a retórica política





Folha.com, 17/11/16


Realidade econômica ignora a retórica política



Por Laura Carvalho*



O Jornal ‘Valor Econômico’ alertou na segunda-feira (14), em manchete quase lacaniana, que, "sem endosso da realidade, (a) economia se descola da expectativa". A reportagem destaca o completo descolamento, desde outubro de 2015, dos índices de confiança construídos a partir das expectativas futuras dos agentes –consumidores e empresários– daqueles que se baseiam na situação atual da economia. 

Esquece-se de notar, no entanto, que mesmo os índices de confiança baseados na situação atual estão completamente descolados da própria realidade econômica do país, que se agrava a cada dia. 

Em 2011, o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman criou um personagem místico – hoje mundialmente conhecido – para ironizar a defesa do corte de gastos públicos como solução para a crise econômica. Krugman combatia a ideia de que, se os governos cortassem seus gastos, e só por isso, uma fadinha da confiança apareceria para recompensá-los com investimentos e gastos do setor privado, estimulando a economia

Em debate com Krugman em março de 2015, Robert Skidelsky, professor emérito da Universidade de Warwick e biógrafo de John Maynard Keynes, defendeu a ideia de que a retórica da austeridade, por mais equivocada que fosse, poderia deteriorar as expectativas dos agentes o suficiente para tornar fracassada uma política de estímulo fiscal em meio à crise. Krugman, no entanto, insistiu que a mera retórica e seu efeito sobre as expectativas não seriam suficientes para alterar o resultado de políticas, fossem elas equivocadas ou acertadas. 

Em artigo publicado pelo jornal ‘The Guardian’ cerca de um mês depois, em 22 de abril do ano passado, Skidelsky admitiu estar errado naquela ocasião.
 
"O fator confiança afeta o processo decisório do governo, mas não afeta o resultado de suas decisões. A não ser em casos extremos, a confiança não pode fazer com que uma má política obtenha bons resultados, e sua ausência não pode fazer com que uma boa política obtenha maus resultados, não mais do que pular de uma janela, com a crença equivocada de que seres humanos podem voar, eliminaria o efeito da gravidade", afirmou. 

As inúmeras frustrações de suas projeções de crescimento levaram o próprio FMI a atribuir seus erros ao efeito negativo das políticas de cortes de gastos em meio à crise.


​E assim, alguns anos depois de seu nascimento, a fadinha da confiança passou a contar com menos confiança do que a fadinha dos dentes ou mesmo o velho e bom Papai Noel. 


Diante do ceticismo cada vez maior nos Estados Unidos e na Europa, a fadinha resolveu mudar-se para os trópicos, onde descobriu uma legião de fiéis. Aqui, o misticismo anda em alta mesmo com o fracasso retumbante do corte de gastos e investimentos públicos desde 2015 como forma de estímulo aos investimentos privados ou de estabilização da dívida pública. 

Sem qualquer preocupação em transformar uma convicção ideológica em uma predição científica passível de refutação, a resposta é sempre de que, se não há sinais de retomada, é porque a política não foi realizada com vigor suficiente. 

Diante do descolamento entre a confiança dos agentes e a economia real, opta-se por considerar que fatores inesperados fizeram com que a economia se descolasse das expectativas. Os crentes não admitem que as expectativas possam estar contaminadas pela retórica política, e que, sendo esse o caso, a economia não necessariamente vai obedecê-las.


*Professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC).







Folha.com, 14/01/16


A grande família



Por Laura Carvalho



O ministro interino da Fazenda, Henrique Meirelles, em declaração ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’ do dia 9/7/2016, afirmou que, para equilibrar as contas públicas, "o plano A é o controle de despesas, o B é privatização, e o C, aumento de imposto". 

Algum demagogo de plantão, habituado a seduzir eleitores incautos pela explicação do Orçamento da União a partir da dinâmica do orçamento doméstico, poderia aproveitar-se facilmente do roteiro proposto pelo ministro para desfazer qualquer esperança da população quanto a dias melhores na economia. 

Afinal, poucos estariam felizes em fazer parte de uma família para a qual, diante da crise, a primeira opção fosse cortar a escola das crianças, diminuir as idas ao pediatra ou eliminar os remédios dos avós. Menos ainda se o plano B fosse vender a geladeira, o sofá e o piano. E tudo isso para não ter de pedir ao primogênito que abra mão do carro novo e contribua um pouco mais com as despesas da casa. 

O cálculo do governo interino é que o deficit de R$ 170 bilhões de 2016 crescerá em 2017 para R$ 194,4 bilhões. Só uma expectativa de receitas adicionais por meio de eventuais privatizações e concessões de R$ 55,4 bilhões permitiu que o governo fixasse a meta fiscal nos R$ 139 bilhões anunciados. 

Receitas da mesma ordem poderiam ser obtidas, por exemplo, com a retomada da tributação sobre os lucros distribuídos a pessoas físicas (dividendos), que desde 1995 são isentos de Imposto de Renda da Pessoa Física, ao contrário do que ocorre na grande maioria dos países

Além de deixar claro que o governo interino não tem o conjunto da sociedade como alvo de suas prioridades, a estratégia proposta não oferece nenhuma perspectiva de reequilíbrio das contas públicas no médio ou no longo prazo.
 
As receitas geradas hoje com a venda de ativos públicos por meio de privatizações não virão novamente, além de implicarem redução de receitas futuras do governo com esses ativos (e.g. dividendos das empresas estatais). As concessões têm efeito similar, pois também retiram do Estado um potencial retorno com a exploração de ativos públicos. No caso brasileiro, ainda há o agravante de que muitas empresas concessionárias nem sequer pagam o que devem, como apontou Elio Gaspari em sua coluna nesta Folha de 13/7/2016 "Temer e a privataria 3.0"

A geração de receitas extraordinárias por meio de concessões e privatizações — os chamados desinvestimentos — é considerada, aliás, uma manobra de ilusionismo fiscal no Staff Note do FMI de 2012 intitulado ‘Accouting Devices and Fiscal Illusions’, conforme detalhei nesta Folha em 15/10/2015

Ao contrário, uma expansão de investimentos públicos e de outras despesas com alto efeito multiplicador sobre a renda e o emprego poderia elevar a arrecadação futura –direta e indiretamente–, aí, sim, estabilizando a dívida pública no longo prazo. 

Na macroeconomia, restrições orçamentárias não são estáticas nem absolutas. Triste é ver um deficit dessa dimensão tão mal empregado. As escolhas de um governo preocupado apenas em manter-se no poder conspiram contra alternativas sustentáveis de enfrentamento da crise que hoje tanto aflige as famílias brasileiras.


*Professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC).

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