Cinegnose, 21/11/16
Por
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Compenetrada e em tom de grave denúncia, um dos manifestantes que
invadiram a plenária da Câmara dos Deputados na semana da passada, pedindo
“intervenção militar institucional” no País, gravou um vídeo no qual aponta para um painel dos 100 anos da imigração japonesa dizendo:
“cena nojenta, a nossa bandeira com o símbolo vermelho...”, numa alusão a um
suposto complô comunista para alterar a bandeira nacional. Na verdade a
bandeira era do Japão. E o círculo vermelho, o simbólico Sol Nascente. O
vídeo da manifestante viralizou nas redes sociais como uma insólita gafe que,
no máximo, provocaria apenas vergonha alheia. Porém, é mais do que isso: é um sintoma de um País
doente, um surto semiótico-esquizofrênico. Patologia que, recentemente, acometeu até uma emérita professora de
Semiótica que viu nas ciclofaixas pintadas de vermelho uma cilada subliminar do
Comunismo em São Paulo. Originado no
próprio cotidiano esquizoide das classes médias
(submetidas a mensagens contraditórias da sociedade de consumo), e após
ser açodada pela grande mídia para apoiar o recente golpe político, hoje a
patologia espalha-se endemicamente na sociedade expondo três sintomas principais: paranoia, hebefrenia e catatonia.
Minha
esposa tem uma amiga com um bom cargo Sênior na área de pesquisa em Marketing.
Está na faixa dos 30 anos e vive a sua plenitude profissional, gerenciando esse
setor na empresa.
Recentemente,
tomou a importante decisão de adquirir a casa própria, um apartamento de 60 metros quadrados no bairro nobre de Pinheiros, São Paulo. Apesar da reduzida metragem
(talvez perfeito para uma pessoa), o valor do imóvel beira a casa do milhão de
reais. Financiou em 30 anos, o que comprometerá a cada mês 5 mil reais dos seus
rendimentos.
Essa é um dos paradoxos da classe média: ela diz que o apartamento é seu, mas terá que pagá-lo até
chegar à faixa dos 60 anos. Não importa o que ocorra em sua vida,
nos altos e baixos de toda vida profissional e pessoal, terá que pagar as
parcelas do financiamento vivendo a contradição salário versus renda – enquanto
o banco extrai renda do
financiamento, ela paga com o salário,
meio evanescente de troca.
Ela acredita que está subindo na
vida, embora
a propriedade (a riqueza) seja apenas uma promessa futura, submetida às
contingências do destino.
Imagino o custo psíquico dessa cena contraditória à
qual a classe média submete-se diariamente. Ansiedade, expectativa, angústia
mesclada com esforço, força de vontade e positividade.
É a sociedade do mérito, a
Meritocracia, a qual submete seus devotos a uma situação de “duplo vínculo”- a
sociedade de consumo que oferece lançamentos imobiliários com “pocket forest” e
“varanda gourmet” em metragens mínimas e custos máximos; imagens publicitárias
que transformam de cidadãos em máquinas desejantes. Assalariados que, através
de um meio evanescente de troca, sonham galgar a hierarquia social e ficar ao
lado daqueles que vivem da exclusivamente da renda e do lucro.
O paradoxo esquizofrênico
“Duplo
Vínculo” ("Double Bind") é um
conceito clássico criado pelo antropólogo e psiquiatra inglês Gregory Bateson, o mais famoso membro da chamada
“Escola de Palo Alto”, instituto de pesquisa mental na Califórnia que se tornou referência no
âmbito da psiquiatria e terapia familiar.
Trata-se
de uma situação onde a pessoa se vê
diante de mensagens simultâneas e contraditórias de aceitação e rejeição
(“duplo vínculo”). Esse quadro é frequente no meio familiar, e ocorre em
especial entre crianças e pais. Segundo Bateson, adultos jovens que desenvolveram esquizofrenia muitas vezes têm
história de relação de duplo vínculo na infância. É comum crianças ouvirem
dos pais variantes de um discurso com o seguinte teor: “gostamos muito de você,
mas temos de castigá-lo porque se não o fizermos você irá se comportar mal, e
não queremos que isso aconteça porque queremos continuar gostando de você”.
Diante de
tal paradoxo, a vítima vê-se presa num
jogo que “não pode ganhar”: sem entender a metacomunicação, não consegue
lidar com as complexidades do discurso (metáforas, paradoxos, etc.)
desenvolvendo sintomas esquizofrênicos, ou mesmo o quadro pleno da doença.
O duplo vínculo cria uma situação
externa ameaçadora para o indivíduo porque incompreensível. Como resultado a
pessoa procura modificar a realidade para que ela se mostre menos ameaçadora. A
consequência final pode ser a alienação mental.
Esquizofrenia como patologia
social
É claro
que Bateson estudava quadros de terapias das relações familiares. Porém,
estudiosos como Ciro
Marcondes Filho acreditam que o
conceito de “Duplo Vínculo” possa ser extrapolado para o estudo de patologias
sociais dominadas por sintomas esquizoides – leia MARCONDES Filho, A Produção Social da Loucura. São Paulo: Paulus, 2003.
A sociedade de consumo
e meritocrática é uma “doença contemporânea” não
apenas porque cria uma cultura na qual o “ter”
substitui o “ser”. O problema não é comprar, mas os significados esquizofrenicamente
contraditórios que as mensagens publicitárias comunicam aos potenciais
consumidores: de um lado, a afirmação universal de que todos têm o direito à
felicidade e à realização dos seus sonhos, e, do outro, a situação particular
de impedimento – a clivagem financeira.
Pois a
publicidade e toda a sociedade de consumo criam essa verdadeira cilada
comunicativa para os indivíduos: explicitamente, cada filme publicitário parece
uma reivindicação universalista do direito à felicidade; mas uma contra ordem não-verbal, uma espécie de
subtexto, transpassa todo o campo das mensagens publicitárias: sem dinheiro, não há felicidade.
Sintomas da patologia social
Vítima
desse duplo vínculo, o sujeito não
consegue criar uma metacomunicação (distanciamento) e compreender a situação
paradoxal, contraditória e impossível de ser resolvida: sem compreender a cena, o indivíduo desenvolve os três sintomas clássicos
esquizofrênicos:
(a) paranoia (sem compreender a
mensagem contraditória, acredita que exista algum sentido oculto e, por isso,
hostil),
(b) hebefrenia (padrão de pensamento
concreto e infantil, incapaz de compreender metáforas, analogias etc.) e;
(c) catatonia (fecha-se no seu mundo
interior).
Três sintomas em um contexto
geral de negação e alienação da realidade.
Invasão da Câmara dos Deputados:
da Política ao sintoma
A
inacreditável invasão da plenária da Câmara dos Deputados por um grupo de cerca
de 50 manifestantes gritando palavras de ordem como “general aqui” e
“intervenção militar institucional” contra a corrupção foi, tomado isoladamente, um ato político de
extrema direita. Suspeita-se, incitado pelo procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, atacando congressistas por estarem
ameaçando as investigações e clamando pela ajuda “do povo” nas redes sociais.
Mas da
política passamos para o sintoma. O impagável vídeo de uma das manifestantes
denunciando o que seria “a nova bandeira do Brasil” dominada por um “símbolo
vermelho comunista” em uma “cena nojenta no Congresso Nacional”. Diz apontando
para um painel da comemoração dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil em
um saguão do Congresso (https://www.youtube.com/ watch?v=NojHBPe10ks
)
Sem entender a gestalt ou
simbolismo da comunicação visual (a fusão do losango da bandeira brasileira com
o círculo vermelho da bandeira do Japão), entrou
em um surto paranoico-semiótico, denunciando uma sinistra conspiração.
“Preparem-se brasileiros... você que ainda não se deu conta... a bandeira não
será mais como conhecemos...”, diz assombrada Rosangela
Elisabeth Muller.
Em seu perfil do Facebook
há pérolas como uma suposta mensagem subliminar de Carlos Arthur Nuzman (presidente do Comitê Olímpico brasileiro) na
abertura das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Ao invés do verde e amarelo, ele
teria dito “yellow e red”... na verdade cores pertencentes à bandeira olímpica.
Esse delírio semiótico no
qual um significante (a cor vermelha) se desloca do seu significado (o Sol
Nascente da bandeira japonesa/união das raças através do esporte), não é
privilégio apenas de anônimos patriotas convocados por um procurador para
alguma cruzada épica.
Em
2014 a emérita professora de Semiótica da PUC/SP, Lucia
Santaella, alertou para um suposto perigo subliminar nas ciclovias
pintadas de vermelho da cidade, iniciativa do prefeito petista Fernando Haddad: “uma descarada propaganda vermelha do PT,
provavelmente encomendadas do Diabo em pessoa”. Vermelho, PT, Comunismo e o
Diabo, outro delírio semiótico onde o significante (cor /vermelho/) se
desloca do significado (convenção simbólica de sinalização internacional das
ciclovias) - sobre isso clique aqui.
Ideologias são as práticas cotidianas
Por
que esse delírio semiótico? Sintoma do quê? Do tradicional anti-comunismo
atiçado pela propaganda política?
Ideologias são as
práticas cotidianas. Elas não nascem das propagandas políticas. Estas apenas
reforçam predisposições existentes nas práticas mais comezinhas do dia-a-dia.
O
delírio semiótico nasce das práticas cotidianas dos duplos vínculos vividos
pela classe média que equivale à metáfora (ooopa! cuidado com metáforas) do
cavalo que tenta pegar a cenoura na ponta de uma vara enquanto empurra a
corroça – preso na cilada comunicativa de uma sociedade de
consumo que ao mesmo tempo insufla desejos que serão imaginariamente realizados
pelo salário que produz renda e lucro para uma minoria.
A
cilada esquizofrênica do duplo vínculo cria os sintomas esquizoides que
alimentam o atual anti-comunismo e o retro-fascismo: o padrão de pensamento
hebefrênico não consegue compreender, por exemplo, a metáfora
ou gestalt de um painel alusivo à imigração japonesa. Assim como vê na cor
vermelha, algum sentido oculto já que não consegue entender a alusão simbólica
da cor.
O que produz a paranoia
em um mundo no qual a comunicação é reduzida à tábula-rasa, onde não há
simbolismos ou alusões, apenas indícios de causa-efeito conspiratório.
O
ponto de chegada é o delírio catatônico cujos sintomas agora tornam-se
públicos e cada vez mais audaciosos depois que a grande mídia abriu a caixa de
pandora.
Foram úteis até recentemente, mas começam a se tornar incômodos porque os cidadãos acometidos pelo surto esquizoide-semiótico procuram agora uma tradução política que normatize a sua patologia.
Foram úteis até recentemente, mas começam a se tornar incômodos porque os cidadãos acometidos pelo surto esquizoide-semiótico procuram agora uma tradução política que normatize a sua patologia.
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