domingo, 13 de novembro de 2016

O Brasil e o consenso do atraso






CartaCapital, 02/11/16




O Brasil e o consenso do atraso



Por Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo



No Brasil do teto para os sem-teto, a vulgaridade escapou dos salões dos bem-nascidos para escalavrar as casinholas dos esquecidos. Veja o caro leitor: a proposta de congelamento por 20 anos das despesas primárias domina o debate econômico. O assunto é discutido à sombra do “consenso” nascido nos escombros da super-recessão deflagrada entre o fim de 2014 e o início de 2015. A ladainha reza que o governo central expandiu as despesas como nunca, produziu déficits primários, ampliou a dívida, provocou inflação, derrubou a confiança e atolou a economia na recessão.

O apelo popularesco dessa narrativa apoia-se em um equívoco econômico que soa como senso comum: o Orçamento público assemelha-se ao orçamento doméstico, patranha agora sancionada com o carimbo de Temerária Sagacidade pela simpática atriz que protagoniza a propaganda do governo federal.

Essa chorumela ignora que sua casa, caro leitor, não coleta impostos, não paga seguro-desemprego, não controla a taxa básica de juros da economia e não imprime dinheiro (a dívida brasileira é toda em moeda nacional).

Tais retóricas provincianas, que se arvoram vanguardistas e científicas, empreendem o desatinado trabalho de lançar nas masmorras do esquecimento o declínio prolongado e estrutural da economia brasileira.

Relembrando: durante todo o pós-Guerra, até a crise da dívida externa de 1982, o Brasil manteve um ritmo acelerado de crescimento econômico. Entre 1947 e 1980, o PIB cresceu em média 7,1%, marca não igualada, no período, nem mesmo pelo Japão ou pelos celebrados Tigres Asiáticos.

Comparado a essa “era de alto crescimento”, o desempenho econômico dos últimos 35 anos tem sido sofrível. Perde, por exemplo, para a “recessão” que apareceu entre 1962 e 1967, nos anos de crise e estabilização, em que a economia cresceu miseravelmente para os padrões da época: apenas 3,2% ao ano.

A perda de dinamismo da industrialização brasileira provocou, no início dos anos 1990, uma reação extremada nas mesmas hostes que hoje se empenham em aprofundar o seu declínio: abriu a economia, expôs os empresários letárgicos aos ares benfazejos da globalização e desarticulou o arranjo empresa multinacional-empresa privada nacional e empresa estatal.  

O silogismo em que se desdobra a premissa é grotesco em sua simplicidade: se a indústria brasileira perdeu a capacidade de investir ou de se modernizar, a solução é submeter a incompetente à disciplina da concorrência externa e desativar as políticas industriais.

Quase todos concordam que se esgotaram as formas de financiamento, de incentivos e de proteção responsáveis pela sustentação do desenvolvimento industrial brasileiro ao longo de mais de cinco décadas. Custa muito trabalho, além de imaginação, construir as novas instituições financeiras, pensar na reforma fiscal, enfim, dar tratos à bola para estabelecer uma nova relação entre o Estado e o setor privado.

Na era da arrancada chinesa, é superstição acreditar que a abertura financeira e a exposição pura e simples do setor industrial à concorrência externa são capazes de promover a modernização tecnológica e os ganhos de competitividade. 

Até mesmo os estudiosos conservadores reconhecem a existência de economias de escala e de escopo, economias externas, estratégias de ocupação e diversificação dos mercados, conglomeração e acordos de cooperação. Neste jogo, só entra quem tem cacife tecnológico, poder financeiro e amparo político dos Estados Nacionais.

Algumas correntes de opinião cultivam com esmero o hábito de ignorar a experiência alheia e, pior, tratam de desqualificar e desfigurar o seu próprio passado, quando não persistem denodadamente na promoção de seu completo esquecimento.

Nos países de industrialização tardia, não há exemplo de renúncia a políticas deliberadas de reestruturação produtiva ou de estímulo à modernização e à conquista de mercados.


A suposta contradição entre Estado e mercado que impregna o discurso dos paleoliberais, desconsidera as coordenações e simbioses existentes entre ambos, em qualquer projeto de desenvolvimento nacional, como demonstrado no livro da professora da Universidade de Sussex, Mariana Mazzucato: 'The Entrepreneurial State: Debunking public vs. private sector myths'. Assim como no caso das tecnologias embarcadas no iPhone – a internet, o GPS, o touch-screen display e até o comando de voz Siri –, todas tiveram financiamento público.


A leitura do Enterpreneurial State de Mariana Mazzucato poderia ser acompanhada do livro 'Subsidies to Chinese Industry: Capitalism, business strategy and trade policy, de Usha Haley e George Haley'. Os Haley tratam das relações entre as empresas e as políticas governamentais na China, recorrendo a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para o blá-blá-blá ideológico e, não raro, hipócrita, da falsa oposição entre Estado e Mercado, leia-se, entre concorrência e planejamento de longo prazo na experiência mais fascinante do capitalismo contemporâneo.

Os estudos de Mazzucato e dos Haley cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados Nacionais, os sistemas empresariais, os programas de inovação tecnológica e a “inserção internacional”.

Procuraram chamar a atenção para a centralidade da “organização capitalista” em que prevalecem nexos, digamos, “cooperativos” nas relações entre as empresas e as burocracias civis, militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico (P&D).

Neste momento, enquanto o Brasil se prepara para aprovar medidas que asfixiam seu Orçamento, Alemanha, Coreia, Japão, China e EUA se preparam para o salto da indústria 4.0, com forte integração e apoio do Estado e da academia na área de P&D.

O professor Luciano Coutinho publicou no jornal Valor de terça-feira 25 de outubro artigo esclarecedor sobre a natureza das inovações envolvidas no “modelo” 4.0. “A indústria, os serviços, os agronegócios serão inevitavelmente atingidos por essa grande onda. Os sistemas industriais nacionais serão protagonistas ou vítimas se não conseguirem mudar a tempo. 

Nas indústrias do futuro, as máquinas, equipamentos, sistemas de estocagem e logística serão dotados de capacidade individual e autônoma de computação e comunicação. Formarão redes inteligentes, verticais e horizontais, que operarão em tempo real e abrangerão desde o design, produção, comercialização até a gestão de estoques e logística.

Depois do surgimento do capitalismo industrial, mais precisamente depois de 1850, o passado não era apenas o que havia passado. O passado estava morto. A partir de então, o Prometeu Desacorrentado foi incansável em seu labor. Empenha-se agora na “reinvenção” da natureza e na criação das técnicas que poderiam ensejar a proteção do ecúmeno.

Aí estão as inovações da inteligência artificial, da biotecnologia, das alterações nas estruturas atômicas dos materiais, da internet das coisas, das novas energias limpas. Como disse Alfred Whitehead: “O homem inventou o método de inventar”.  Resta aos homens (no plural) a incumbência de reinventar a vida social para usufruir as liberdades e benesses oferecidas pelas proezas de Prometeu.


No seu livro 'Envolvimento e Alienação', Norberto Elias lançou um pergunta que muitos preferem não responder: “Por que as sociedades humanas resistem mais do que a natureza não humana a uma bem-sucedida exploração (de suas potencialidades) pelos seres humanos?” 
 






Jornal GGN, 13/11/16


O Xadrez da teoria que produziu 12 milhões de desempregados


Por Luis Nassif

 

Peça 1 –  do plano Joaquim Levy à PEC 241

Em 2015, mal assumiu o segundo governo, a presidente Dilma Rousseff anunciou o plano Joaquim Levy, um enorme aperto fiscal que, segundo ela, ajudaria a tirar o país rapidamente da crise. Em março daquele ano, baseada nos estudos de Levy, Dilma sustentava que o pior da crise já havia passado. Nem havia começado.

Em 2016, Michel Temer e o seu Ministro da Fazenda - e o editorialista da Folha -prometem que, depois da PEC 241 virá o paraíso do crescimento porque, graças aos cortes fiscais, haverá a redução dos juros e a retomada do crescimento.

Sem consumo de governo (por conta da PEC 55), sem consumo das famílias (por conta do desemprego) e sem o impulso das exportações (por conta da apreciação cambial), de onde viria o crescimento? Da fé cega e da faca amolada dos cortes. Será um desastre continuado, fazendo a economia regredir uma década.

No primeiro semestre de 2017 dirão que o pacote não deu certo porque não foi duro o suficiente. Os crentes aceitarão que a culpa foi da sua falta de fé. E toca sacrificar mais empregos, produção e riqueza para seus experimentos.

Peça 2 – a teoria que legitimou os desastres

Em ambos os casos, de Dilma-Levy e Temer-Meirelles, houve a obediência cega a teorias que surgiram nos anos 80 e 90 visando demonstrar a pouca eficácia das políticas fiscais.

Nos anos 90, duas duplas de autores – Giovani-Pagano e Alesina-Perotti – sistematizaram os estudos, querendo provar que aumento dos gastos públicos não tinha nenhum efeito sobre a demanda agregada.  Portanto, a melhor alternativa seria efetuar grandes cortes – com baixo impacto no produto – e, com isso, recuperar a confiança empresarial, despertando o espírito animal do empresário. Tornou-se o cabo de guerra do neoliberalismo.

A teoria estimava os multiplicadores (o cálculo do efeito de cada unidade gasta) para subsídios, gastos sociais, compra de ativos etc., com impacto aparecendo de 3 a 10 meses depois:

·      Benefícios Sociais: 0,8416
·      Ativos Fixos: 0,414
·      Subsídios: 1,5013
·      Gasto de pessoal: 0,6055

Eram esses estudos que lhe davam confiança para afirmar, em março de 2015, que o pior da crise já havia passado. Ou, então, nos anos anteriores, para investir tão pesadamente nos subsídios. Afinal, para cada 1 de subsídios haveria um efeito de 1,5013 no produto, em um prazo de 3 a 10 meses. E com cortes fiscais, haveria impacto mínimo sobre o produto.

Seria como jogar na Loto sabendo os resultados antecipadamente.

E de nada adiantavam os alertas dos que dispõem de conhecimento empírico da realidade econômica, que conseguem prever a rota de desastre de teorias que ignoram a realidade econômica. Serão considerados meros palpiteiros até que, com o desastre consumado, algum economista consolide os erros cometidos em um paper.

Peça 3 – a identificação dos erros na teoria

A Secretaria do Tesouro Nacional (STN) acaba de premiar o trabalho 'Política Fiscal e Ciclo Econômico: uma análise baseada em multiplicadores de gastos públicos' – de autoria de Rodrigo Octávio Orais, Fernando de Faria Siqueira e Sergio Wulf Gobetti –, de onde foram tirados os dados acima, apontando um erro crucial nos trabalhos originais de Giovani-Pagano e Alesina-Perotti.

Os autores dos trabalhos iniciais montaram uma metodologia analisando a média histórica dos indicadores. E não se deram conta de que havia variações fundamentais dependendo dos ciclos econômicos: quando a economia está em expansão, o impacto dos cortes fiscais é mínimo; mas com a economia em recessão, o impacto é significativo.

Os brasileiros refizeram, então, as séries, mas separando os resultados da média (levantada de acordo com a metodologia em vigor), e dos multiplicadores com a economia em expansão e em recessão. Abaixo, se tem o raio-x dos desastres econômicos produzidos pelo uso acrítico da teoria.

Multiplicadores
Linear
Expansão
Recessão
Benefícios Sociais
0,8416
0,1536
1,5065
Ativos Fixos
0,414
0,1623
1,6803
Subsídios
1,5013
4,7338
0,5972
Gasto de Pessoal
0,6055
0
1,3265










Dilma havia lido apenas o trabalho anterior. O multiplicador para subsídio era de 1,5013 na média, porque de 4,7338 em períodos de expansão. Na recessão, no entanto, caía para 0,5972. Foi esse o resultado que explicou a falta de impacto dos subsídios no produto em 2013 e 2014.

Com a economia em expansão, há a garantia de demanda que leva o empresário a investir. O subsídio barateia o investimento ou o custo de produção e ele consegue ampliar sua produção. Na recessão, sem garantia de mercado, o empresário aproveitará os subsídios para melhorar sua margem e fazer caixa, não para ampliar os investimentos.

O segundo macro-erro foi no pacote Levy.

Do mesmo modo, na recessão o multiplicador para benefícios sociais é de 1,5065 – expressivo. Para compra de ativos, é mais ainda: 1,6803. Dilma imaginava que para cada unidade de gasto em benefícios sociais, o retorno seria de 0,8417, inferior, portanto, ao que foi gasto. O mesmo para investimento em ativos fixos. Baseou-se em dados errados.

Repare que, depois de afastada no cargo, nas sessões históricas do Senado, Dilma invocou várias vezes o FMI para sustentar a importância dos gastos públicos. Ou seja, só depois de apeada do poder, tomou conhecimento dos estudos confirmando o que os críticos diziam sobre o desastre do plano Levy. E Henrique Meirelles nem chegou lá ainda.

De fato, segundo os autores do estudo do STN, o FMI estimulou um debate público entre 2011 e 2012 – três a quatro anos antes do desastre do pacote Levy - sobre os rumos da política fiscal nas economias avançadas e em desenvolvimento, em cima dos motes 'O que nós pensávamos que sabíamos' e 'O que nós aprendemos com a crise'.

O estudo do FMI, de autoria de Blanchard, Dell'Ariccia e Mauro (2010) sustenta que "a política fiscal anticíclica é um importante instrumento na conjuntura atual, dada a durabilidade esperada da recessão e o escasso espaço de ação para a política monetária".

As conclusões são diametralmente opostas aos enunciados do período Levy-Dilma e Meirelles-Temer. Concluem que se vive um período extraordinário no qual o gasto público tem efeitos multiplicadores significativos e no qual ajustes fiscais convencionais podem ter efeitos contraproducentes para o próprio objetivo de consolidação fiscal e redução do endividamento (Romer, 2012; De Long e Summers, 2012), segundo dados que constam do trabalho premiado. 

Concluem os autores:

“A  luz  desses  parâmetros,  por  exemplo,  é totalmente inapropriado o corte de investimentos  públicos  realizado  em  2015  e mantido em 2016.  Diante  disso,  constituiu se  um  consenso  no mainstream, principalmente  acadêmico,  de que o foco da política fiscal deveria se concentrar na sustentabilidade do endividamento público e em regras fiscais voltadas a limitar a discricionariedade dos governos, deixando preferencialmente para a política monetária o papel estabilizador da demanda agregada.

O pesado manto ideológico de que se revestiu a teoria econômica impediu qualquer questionamento a essas supostas verdades estabelecidas. A fé cega nesses estudos derrubou a economia sob Dilma, contribuiu para derrubar seu próprio governo, e continuará derrubando a economia sob Temer. Milhões de empregos perdidos, riqueza transformada em pó, dívida pública explodindo, receitas fiscais caindo, tudo com base na fé cega nesses estudos.

Agora, os grandes gurus da ortodoxia – como os economistas Afonso Celso Pastore e Armínio Fraga – já começam a preparar terreno, buscando explicações antecipadas para o fato da economia não se recuperar no próximo ano.

Peça 4 – os abusos do experimentalismo econômico

A Economia não é nem ciência exata nem universal. Mais ainda que na medicina, exige o conhecimento teórico, mas associado à sensibilidade para analisar as condições do paciente.
No entanto, há uma ignorância ampla e generalizada do mainstream econômico em relação ao mundo real. Como se o conhecimento da economia real fosse uma extravagância, acientífica, uma forma menor de conhecimento.

Nesse mesmo período, o pacote Levy promoveu um superchoque tarifário e cambial, simultaneamente a problemas internos de seca impactando os alimentos. Imediatamente explodiu a inflação. Ao choque inicial sucedem-se ondas inflacionárias em diversos setores. A lógica dizia que bastaria os meses do choque saírem da contagem da inflação anual, para os preços irem se acomodando e a inflação refluir.

No entanto, a visão do cabeça de planilha é incapaz de ir além da planilha. Não entende a economia real, os impactos dos choques nas diversas cadeias produtivas, as maneiras como cada setor reage, para poder chegar a uma conclusão sobre a melhor posologia.

Substituem esse amplo desconhecimento pela análise exclusiva dos grandes agregados.

É o caso da economista Mônica de Bolle, analisando a demora da inflação em refluir. Segundo ela, o país estaria entrando na fase da dominância fiscal, na qual os instrumentos monetários e fiscais não produzem mais efeito deflacionário. A única saída seria vender reservas cambiais para montar uma âncora cambial. Não dispensou um parágrafo sequer analisando os impactos da queda de reservas na volatilidade cambial ou ao menos estimando o que aconteceria com a inflação quando o impacto dos choques tarifário e cambial saíssem da contagem anual.

No fim, a inflação está refluindo sem nenhuma atitude heroica.

Pior é a questão das metas inflacionárias, um sistema que drenou para os rentistas a maior parte do orçamento público. Provavelmente, o excedente dos juros pagos no período daria para prover toda a malha ferroviária brasileira e grande parte do sistema de saneamento.

Peça 5 – os limites Constitucionais.

Por todos esses fatores, o ideal seria que a sede de participação do Judiciário o levasse a pensar em limites constitucionais para a política econômica.

Tome-se o caso do Banco Central. Nos Estados Unidos, o FED é obrigado a seguir dois objetivos: controle da inflação e preservação do emprego. No Brasil, apenas o controle da inflação.

Como não tem em suas mãos os instrumentos fiscais, o BC joga todo o peso em juros estratosféricos, que arrebentam com a atividade econômica, sem nenhuma preocupação com os impactos sobre o produto e o emprego.

Para fazer demagogia de baixo risco, a presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Carmen Lúcia afirmou que não é Ministra da Fazenda, para avaliar o impacto de medidas judiciais na economia.

Seria mais consistente se, junto com seus colegas, definissem limites constitucionais ao experimentalismo da política econômica e aos abusos das políticas fiscal e monetária.

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