sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Quem quer a causa quer os efeitos







Brasil 247, 17/11/16



O fascismo é assim. Como ontem



Por Paulo Moreira Leite



Empregando as palavras como elas são, é preciso dizer que o fascismo age exatamente como fizeram 50 pessoas que invadiram o plenário da Câmara ontem. Quebraram vidros, ameaçaram parlamentares. Pediram o retorno à ditadura militar, saudaram Sérgio Moro. E foram embora, sem serem incomodados. Parecem loucos descontrolados. São criminosos políticos.

O fascismo não existe sem o silêncio cúmplice e a passividade de quem tem o dever legal de combater a desordem, arruaça, e violência e dar ordem de prisão em casos dessa natureza, em que uma instituição é humilhada, ofendida. E foi exatamente isso que se viu, ontem: tolerância com um ataque à democracia - se não foi coisa pior.

Um Congresso que possui uma polícia legislativa treinada, bem paga, equipada em pé de igualdade à Polícia Federal, assistiu a tudo de braços cruzados. Habituada a demonstrações cotidianas de autoridade e mesmo truculência, sumiu de cena, rabo entre as pernas. A mesma polícia legislativa acusada de extrapolar suas funções em vários momentos, que impediu o ingresso de jornalistas documentados e reconhecidos, nos dias de votação do impeachment - eu estava lá e vi - agora abaixou a cabeça, ficou quietinha. Tinha o dever de arrancar os invasores no tapa, impedindo sua presença no local por um minuto sequer. A cena lamentável, traumática, deprimente, simplesmente não poderia ter ocorrido.

A ocupação do plenário da Câmara, seu centro de decisões, local sagrado do ponto de vista da democracia, pois ali só pode ter acesso quem representa o voto popular, por uma turba embriagada pela própria truculência, por um poder perigoso, subitamente revelado em sua infinita boçalidade, é um novo passo na degradação da ordem publica, no esforço consciente e deliberado de paralisação e desmoralização de um dos apoios no tripé da democracia. O ataque pode ser e é obra de imbecis. Mas vamos reconhecer que tem sentido de direção. O alvo é o elo mais fraco, aquele que é massacrado todos os dias, pelo comportamento irresponsável de muitos que estão do lado de dentro - e campanhas permanentes, injustas, direcionadas, contra os adversários autoritários de fora, justamente porque torcem por um incêndio incontrolável.

Não há como negar. O longo e criminoso ataque à democracia começou de cima para baixo, com a deposição de uma presidente eleita, sem prova de crime de responsabilidade. O que veio a seguir é consequência. Começa pela fragilidade estrutural de um sucessor marcado para morrer - com data definida, quando não for possível chamar o eleitor para dizer que pretende, quem prefere, como seria o certo depois de tantos errados.

A ausência de Rodrigo Maia é sintomática. Embora fosse segunda-feira, o presidente da Câmara não estava onde deveria. Está no manual que compõe o cenário das tragédias políticas que à cadeira decisiva, se encontre o destruído Waldir Maranhão. Na dúvida, veja sua expressão nas fotos. 

Em 1922, o ministério parlamentar dormia quando Roma caiu nas mãos dos homens de Mussolini. Era madrugada, vamos reconhecer.

Dias antes, quando seria possível fazer alguma coisa, comandantes militares chegaram a aguardar por ordens do gabinete civil. Teria sido possível - na pior das hipóteses - pelo menos morrer com dignidade. A ordem não veio. Quando os ministros resolveram pedir a Vitório Emanuel que assinasse o Estado de Sítio, era tarde demais. O Rei se entendera com Mussolini, a quem os mais ponderados consideravam o menos louco. Sua ditadura durou 20 anos.


Waldir Maranhão acuado






Folha.com, 18/11/16


Mais um capítulo da regressão política



Por Vladimir Safatle




Na quarta-feira (16), o Brasil pôde assistir a mais um capítulo da regressão política que agora se expõe sem maiores disfarces. Um capítulo negro que revela com o que estamos de fato lidando.

Um grupo de 50 pessoas tomou de assalto o plenário do Congresso Nacional para vociferar palavras de ordem pedindo "intervenção militar" e "general aqui", enquanto se ouvia no plenário gritos de "viva, Moro". Do juiz em questão, diga-se de passagem, bastante afeito a declarações públicas, não se ouviu até agora repúdio algum ao uso de seu nome em cena tão macabra.

Um espetáculo de degradação desse nível não é gestado do dia para a noite. Esse é o preço pago pelo Brasil ser um país incapaz de encarar seu passado ditatorial, prender torturadores, exigir das forças armadas um mea-culpa pelo golpe contra a democracia, retirar o nome de membros da ditadura de suas praças e estradas, ensinar a seus jovens o desprezo por "intervenções militares".

A lei da história é implacável. Quem não elabora o passado será sempre assombrado por ele. Que algo dessa natureza ocorresse era só uma questão de tempo. O Brasil acreditou poder apresentar ao mundo uma conciliação sem trauma e sem "revanchismo". 

Tudo o que conseguiu foi conservar todos os atores políticos envolvidos na ditadura no centro do poder, normalizando-os. Tudo o que conseguiu foi dar ao mundo a imagem de um país incapaz de acertar as contas com seus fantasmas do passado. A Comissão da Verdade, instaurada décadas depois do fim da ditadura, teve seu trabalho legado ao esquecimento. 

Não nos enganemos. Essas pessoas que estão a vociferar por mais um golpe de Estado não estão "expressando uma opinião". Clamar por golpe militar não é uma opinião. É um crime, o pior de todos os crimes em uma democracia. Quem quer a causa quer os efeitos. Quem pede por golpe militar está a gritar por assassinato, tortura, ocultação de cadáver, censura, estupro, terrorismo de Estado. 

Em qualquer democracia mais ou menos consolidada no mundo, o lugar dessas pessoas seria na cadeia, por sedição e incitação a crime.

Por isso, se ainda houver um mínimo de consciência de perigo neste país, o Congresso deve ser pressionado a aprovar uma lei que tipifique manifestação pública por golpe como crime contra a democracia passível de prisão. Essas pessoas não devem ser convencidas de sua posição equivocada, pois elas nunca serão convencidas de tanto. 

É absurdo acreditar que alguém que chega a esse ponto está afeito a rever sua posição.

Eles devem simplesmente compreender que na democracia há proposições que não se dizem. Aquelas proposições enunciadas para reiterar violência (como as proposições racistas e preconceituosas) ou para clamar por um regime de violência (como uma ditadura) simplesmente não podem circular.
Uma sociedade que permite tal circulação cava sua própria cova. 

Por outro lado, aqueles que colaboraram para esse espetáculo deveriam ser chamados à responsabilidade. Esses ditos "liberais" que ocuparam reiteradamente o espaço público para ridicularizar trabalhos de justiça de transição, que repetiam a teoria dos dois demônios (a ditadura teria sido um "excesso necessário" contra a luta armada), que sequer aceitavam o princípio liberal de direito de resistência contra a tirania são os responsáveis diretos pelo que acontece hoje. 

No Brasil, não existem liberais. Quando necessário, eles apoiam golpes de Estado de todas as formas. Afinal, para quem trabalharam os "liberais" brasileiros como Simonsen, Roberto Campos e companhia? Alguém acha que seria diferente se houvesse um novo golpe de Estado?

Há anos alguns acreditavam que a democracia brasileira estava consolidada. Hoje, é claro que ela nunca passou de um acordo frágil e paralisado, fruto de uma redemocratização infinita que nunca se realizou. Não levar a sério os sintomas de uma regressão ainda maior será prova de mais um ato de irresponsabilidade.
 
Que a quarta-feira negra sirva ao menos para nos lembrar: nada morreu, tudo pode retornar. 






Conversa Afiada, 18/11/16


Isso aqui não é um lupanar


Por Eugênio Aragão



Em 23 de fevereiro de 1981, o tenente-coronel Antonio Tejero Molina, da Guarda Civil espanhola, invadiu, com uma tropa de 200 homens, o Congresso dos Deputados das Cortes, em Madri, ao tempo em que era juramentado o primeiro-ministro Leopoldo Calvo Sotelo. Exigiam os revoltados a constituição de um governo de salvação nacional sob o comando do General Alfonso Armada. Tratava-se de tentativa de restauração do regime franquista e de abortar o recém inaugurado processo de democratização do país. A revolta foi sufocada e Tejero Molina, juntamente com seus homens presos, expulsos da Guarda Nacional e condenados a longas penas de reclusão.

Em 16 de novembro de 2016, um grupo de fascistas celerados invade o plenário da Câmara dos Deputados em Brasília para exigir o retorno da ditadura militar. Agridem agentes da polícia legislativa, quebram a porta de vidro do recinto, sobem com seus sapatos sobre a mesa da presidência e arrancam o pavilhão nacional de seu mastro para pisoteá-lo. Interrompem com sua algazarra a sessão do legislativo, ameaçam os presentes, tudo sob os olhares contemplativos da segurança e do presidente da Casa, Waldir Maranhão, que parece mais surpreso do que indignado. Controlada a baderna, os invasores são detidos, não sem tentativa de alguns deputados da direita política de passar panos quentes. Resolve-se tomar o depoimento de todos e permitir-lhes o tranquilo regresso a seus lares, como se o acontecido fosse um irrelevante incidente, merecedor apenas de jocosos comentários da mídia local.

Essa diferença de tratamento entre os revoltados espanhóis e os celerados brasileiros traduz bem o grau de decomposição das instituições nacionais
depois do deprimente espetáculo do 17 de abril do ano corrente, quando a casa baixa do parlamento pátrio resolveu acatar pedido de instauração de processo de impedimento da Senhora Presidenta da República Dilma Rousseff, num grande carnaval de um desqualificado baixo clero de mandatários, sob a batuta mesquinha de Eduardo Cunha, hoje preso para garantia da ordem pública, acusado de milionário desvio e apropriação de recursos públicos.

Na Espanha, as instituições funcionaram e o país pode celebrar já mais de 40 anos de restauração da democracia. No Brasil, as instituições não se fazem respeitar e, depois de incipiente tentativa de construção de uma democracia inclusiva, o país afunda no caos planejado por quem não aceitou o resultado das eleições presidenciais de 2014.


No mesmo dia 16 de novembro de 2016, assistimos atônitos a um pai assassinar seu filho por ter este participado de protestos estudantis de ocupação de escolas; a um ministro da Corte Suprema faltar ao decoro ao destratar publicamente seu par e a um carro oficial com senadores a bordo atropelar manifestantes que bloqueavam seu caminho ao Palácio da Alvorada. Lá o Sr. Michel Temer recebia, com banquete custeado pelos contribuintes, parlamentares de sua base de apoio (aqueles mesmos que rasgaram os votos de 54 milhões de brasileiros), para garantir a aprovação de emenda constitucional que condenará o Brasil ao desinvestimento público para os próximos vinte anos, sem prejuízo à manutenção plena dos lucros dos rentistas da dívida pública.

Este é nosso terrível estado da arte. A ousadia inconsequente dos reacionários e inimigos da democracia não tem fim. A cada dia um golpe dentro do golpe, direitos desconstruídos, violência política desatada, a alimentar a desesperança dos democratas, enquanto os celerados dançam em volta da fogueira com a cabeça sangrenta da democracia num tabuleiro, feitos Salomé, filha de Herodias, com a cabeça de São João.

Até quando vamos tolerar essa degradação de nossas instituições?
Nenhuma parece se salvar. Nas ruas, a violência da intolerância política se torna senso comum. O entusiasmo irrefletido de pessoas obnubiladas pelo discurso de ódio e iludidas com populismo dos órgãos de persecução penal festeja a ruptura constitucional e se esbalda com a exibição pornográfica de políticos e empresários presos para o gáudio da "opinião pública". Trata-se de estratégia bem estudada de semear a infelicidade dos amantes brasileiros da liberdade e torná-los estáticos, incapazes de reagir.

O fascismo se alimenta do desespero e do ódio. É essencialmente perverso
. Irriga cérebros com adrenalina a bloquear a capacidade de discernimento dos humanos. Onde endorfinas e serotonina conseguem empurrá-la, para distribuir felicidade em nossas mentes, o fascismo não tem lugar. Por isso, temos que resistir ao derrotismo. Resistir sempre. A luta por dias melhores e o amanhã de nossos filhos e netos só está começando.


Precisamos nos tornar mais dialógicos, conquistar corações e mentes ainda perturbadas pela intensa campanha de desesperança e de descrença na resiliência de nossa democracia. Exijamos o cumprimento da constituição e das leis contra os que a maltratam, sejam eles parlamentares, juízes, procuradores ou gestores. Não aceitemos o esgarçamento de nosso tecido institucional e cobremos respeito pela liturgia dos cargos públicos. Façamos que nem nossos jovens, que nos enchem de esperança ao se contraporem à destruição do sistema educacional: não podemos dar trégua.

O Brasil merece o respeito às instituições e o repudio àqueles que as querem transformar em tabernas ou lupanares
. Quanto às autoridades, como tais só podem ser tratadas, quando prestigiam o lugar que lhes é confiado pelo povo. Quando o desmerecem, perdem sua condição e se equiparam a moleques em turba rueira. É bom que disso se lembrem, pois o destino daqueles que desafiam a democracia, num estado civilizatório pleno, não pode ser diferente daquele que os espanhóis deram ao tenente-coronel Antonio Tejero Molina.

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