segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O povo deixa-se sacrificar

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CartaCapital, 07/11/16

 

O povo deixa-se sacrificar

 

Por Mino Carta

 

É a negação da política, proclamam os analistas dos resultados das eleições municipais. Registram as porcentagens dilatadas de votos nulos e em branco, somados amiúde superam os válidos. Disserta-se a respeito e se arriscam comparações com um andamento comum em todo o mundo democrático. Não falta, no caso, a referência à Itália pós-Mãos Limpas, a operação que pôs fim à I República da península e gerou um tsunami de descrença cujos efeitos perduram até hoje.

A análise não leva em conta a singularidade da situação do Brasil, país onde as oligarquias continuam a postos e os partidos nunca passaram de clubes recreativos de facções da chamada elite. Quando aquele que professava a fé esquerdista chegou ao poder, portou-se como todos os demais. Não é quanto ocorre onde a negação da política tradicional é fenômeno inegável, mas outras manifestações, certamente políticas, ocupam o espaço vago.

Aludo a países que se formaram com muito sangue pelas calçadas. Não existem ali casa-grande e senzala, a Idade Média terminou faz muito tempo, a classe média, mesmo espezinhada pelo neoliberalismo, é estudada e culta, e representa mais da metade da população, a sociedade civil e a opinião pública não são quimeras, o Estado de Bem-Estar Social, embora criticado, ainda funciona e a mídia exprime as mais diversas tendências, conforme o largo espectro ideológico definido desde a Revolução Francesa. Sobrevivem os direitos trabalhistas em medida jamais sonhada no Brasil e os juros são negativos, ao menos na União Europeia.

Não faltam cidadãos nativos, entre titulares da casa-grande e seus aspirantes, dispostos a sustentar, em boa ou má-fé, mas em tom peremptório, que o mundo todo vive uma crise política, econômica e social, e o Brasil não é exceção. Não é a verdade factual. As razões do grande tormento global são conhecidas, a começar pelo fato de que 80 corporações planetárias mandam mais que os Estados Nacionais e determinam impunemente o destino da nossa bola de argila a girar em torno do Sol. 

As razões do desastre brasileiro transcendem estas: são, de intermináveis pontos de vista, específicas, próprias, tipicamente verde-amarelas. De resto, onde seria possível um golpe nascido do conluio entre Judiciário, Legislativo, polícia e mídia, para criar um Executivo a serviço da minoria privilegiada?

A maioria dos brasileiros ignora que país o Brasil é. A porção majoritária da população não está a negar a política, nunca se aproximou dela, isto sim, nunca foi capaz de entendê-la como um meio de expressão indispensável, passível de lhe oferecer a chance de manifestar suas vontades e defender os seus interesses, a não ser quando escolheu Luiz Inácio Lula da Silva e quem mais apoiasse. 

Escolheu o líder, não o partido. A maioria dos brasileiros mora na senzala, física ou moral, não tem consciência da cidadania e desconhece caminho oposto àquele da resignação. Pior, da submissão. Difícil medir o tamanho desta maioria, não há como duvidar, contudo, que passa da metade do total. As eleições municipais desfraldam a vitória do coronel: desta vez não foi preciso recorrer ao voto de cabresto. O povo sabe votar, ou deixar de votar, sentenciaria o próprio.

Algo que em um país civilizado e democrático poderia instigar cabeças pensantes é a contradição entre o favoritismo de Lula em uma eleição presidencial e a monumental derrota sofrida pelo Partido dos Trabalhadores. Pois aí está a peculiaridade de um país-continente, onde casa-grande e senzala continuam de pé, e uma não subsiste sem a outra. 

O regime de exceção que sofremos nesta quadra maligna, único nas suas características na face do mundo contemporâneo, explica-se com absoluta naturalidade à luz das condições que a dita elite soube agudizar, quando a ocasião se ofereceu, graças inclusive à tibieza, ou à falta de fé, dos adversários.

Quem pensa e se indigna deve meditar a respeito da inevitabilidade dos eventos, neste Brasil humilhado e ofendido sem a percepção do vexame. Cada qual não escapa ao seu papel e o desempenha com eficácia paradoxal. Sem exclusão de quem se apresentou como defensor da Igualdade e não passou das promessas. Aqui a ausência de coragem e de coerência estava no script. Vem à baila a nossa esquerda, incapaz de alcançar o povo. 

Lula empossado pouco antes para seu primeiro mandato, o então governador do Paraná, hoje senador, Roberto Requião, perguntou a José Dirceu, chefe da Casa Civil, como o governo pretendia agir em relação à mídia nativa, perfilada contra o presidente-operário, e se aventasse a hipótese da criação de uma tevê estatal. Dirceu sorriu e disse: “Mas já a temos, é a Globo”. Não era piada. 

Diante da PEC e das suas consequências, com duração prevista em 20 anos, não seria razoável supor que, se o Brasil não fosse o Brasil, o povo reagisse? Rasga-se não somente a Constituição, mas também a CLT, pune-se ferozmente o trabalho, demolem-se os resquícios de avanços sociais, loteia-se o País em proveito do capital estrangeiro, detona-se a política exterior do governo Lula para cair nos braços do império de Washington. E quem protesta?

Eis o Brasil que a casa-grande sempre almejou, e nunca o desenho foi tão nítido. Na afirmação do Estado mínimo, marcha na contramão da própria razão e pratica outra negação, a do investimento público que nos Estados Unidos se chamou New Deal e fez reemergir a nação norte-americana do craque de 1929 mais forte do que antes.

A prosseguir na rota já traçada, a casa-grande condena o País a uma crise cada vez mais avassaladora, na certeza de que o povo é incapaz de se perceber como vítima única e inescapável.

Trata-se da costumeira aposta na ignorância da senzala, no seu temor visceral diante do poder, este a se valer da ausência secular de lideranças capazes de levar os desvalidos a conscientizar sua situação e a vislumbrar na política, entregue a líderes dignos, sua necessidade urgente.

Mesmo assim, cabe perguntar até quando será possível ir adiante neste plano insano? Como estaremos dentro de um ano, menos talvez, em meio à maior crise de todos os tempos?

No país genuflexo aos pés do deus mercado, perdão, demônio, a sofrer desemprego em alta inexorável enquanto o trabalhador é despido dos seus direitos fundamentais e a indústria se dedica basicamente à fabricação de dinheiro em espécie, educação e saúde públicas fatalmente golpeadas, algo haverá de acontecer para mudar o rumo. 

Nós, de CartaCapital, somos céticos no pensamento, até admitir que, se mudança houver, poderá ser para pior. Somos, também e porém, otimistas na ação, e resistiremos até o derradeiro alento. Temos a certeza de que em tempo algum o Brasil precisou tanto da política, conduzida por quem, destemido, bate-se a favor da igualdade.

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