Jornal GGN, 01/11/16
Xadrez de um Supremo que se apequenou - II
Por Luis Nassif
Um livro
pequeno, do jurista italiano Luigi Ferrajoli explica bem porque os Ministros do
STF (Supremo Tribunal Federal) abdicaram de sua posição de defensores da
Constituição e o Brasil caminha a passos largos para um modelo político próximo
ao do fascismo.
O livro é 'Poderes Selvagens - a crise da democracia italiana'. Analisa a
Itália pós Mãos Limpas e sob Berlusconi. A descrição do processo italiano, sob
Berlusconi, é em tudo semelhante ao brasileiro, sob Michel Temer.
Ferrajoli
é um dos ideólogos na formação de toda uma geração de juristas garantistas
brasileiros – os que consideram que a garantia prevista na Constituição deve
prevalecer sobre as leis ordinárias. É uma linha à qual se filiavam, em tempos
idos, de Carmen Lúcia a Luís Roberto Barroso, de Ricardo Lewandowski e Luiz
Edson Fachin.
Mais do
que descrever a Itália de Berlusconi, o livro é quase um réquiem do que está se
tornando o Estado de Direito por aqui. Embora não se refira ao Brasil, realça
de maneira ampla as contradições do Supremo e o processo de abandono de seu
papel constitucional para se curvar ao clamor das turbas que invadiu o país
através dos grupos de mídia.
A parte
central do livro é explicar o contraste entre o poder político e o poder constitucional,
e de como as Constituições foram sendo reelaboradas para permitir a
consolidação democrática – isto é, a expressão de todos os setores, das
maiorias às minorias -, definindo freios às maiorias políticas ocasionais, que
poderiam interromper as garantias civis.
Para os
que saúdam o golpe brasileiro como uma demonstração de vitalidade democrática,
um trecho de Ferrajoli:
"O
fascismo afundou a democracia e as liberdades fundamentais sem um formal golpe
de Estado: tratou-se, de fato, de um golpe na substância, mas não em suas
formas, pois as leis fascistas, que fizeram em pedaços o Estado de direito e a
representação parlamentar, eram consideradas formalmente válidas, pois votadas
pela maioria dos deputados segundo os cânones da democracia política ou
formal"
Foi só
após a catástrofe do fascismo que houve uma completa revisão dos instrumentos
democráticos. E o caminho encontrado foi a Constituição detalhada, ficando
acima da legislação ordinária, como forma de garantir a separação dos poderes,
a paz, a igualdade e a garantia dos direitos fundamentais, impedindo que
maiorias ocasionais colocassem em risco as liberdades democráticas.
"Foi
propriamente por causa dessas trágicas experiências (nazismo, integralismo) que
se produziu na Europa, logo após a Segunda Guerra Mundial, uma mudança de
paradigma tanto do direito quanto da democracia, por intermédio da
constitucionalização daquele e deste. Essa mudança consistiu na sujeição da
inteira produção do do direito, incluída a legislação, a normas constitucionais
rigidamente sobrepostas a todos os poderes normativos".
Houve uma
mudança na relação da política e do direito. Diz ele:
“O
direito não ficou mais subordinado à política como instrumento desta, mas é a
política que se torna instrumento de atuação do direito, submetidos a vínculos
por ela impostos por princípios constitucionais: vínculos negativos como são
aqueles gerados pelos direitos de liberdade que não podem ser violados; e
vínculos positivos, como são aqueles gerados pelos direitos sociais que devem
ser satisfeitos”.
O papel
da Constituição, portanto, é garantir os direitos fundamentais. Justamente por
isso ela está acima das leis - que necessitam se subordinar aos seus
princípios. O país não fica mais à mercê das maiorias ocasionais que, com seu
poder de voto, podem desconstruir todos os avanços democráticos.
Ferrajoli
separa a dimensão constitucional da dimensão política, criando duas esferas de
decisão.
Há a
chamada esfera do indecidível, daquilo que não pode ser objeto de
deliberação porque incluído nos direitos fundamentais; e a esfera daquilo
que não pode não ser decidido, que deve ser objeto de deliberação a partir
dos direitos sociais previstos na Constituição.
Se o
Congresso não aprova leis que deveriam dar substância aos direitos previstos na
Constituição, caberá ao Judiciário – através do Supremo – atuar, preenchendo os
vazios.
“As
democracias passam a se caracterizar não apenas pela sua dimensão política ou
formal, mas também pela dimensão substancial, relativa aos conteúdos das
decisões”.
É aqui –
e só aqui – que se admite o ativismo do Supremo. É para dar consistência legal
aos direitos previstos na Constituição: jamais para revogá-los.
Compare-se
esse princípio com a decisão do Supremo de não analisar a substância do
impeachment, mas só a forma, para se conferir como os Ministros abdicaram de
serem os defensores da Constituição. Não apenas isso, mas permitindo que as
leis se sobreponham aos direitos (caso do direito de greve).
Sob o
comando da Constituição, articulam-se as diversas formas de democracia: a
democracia política, assegurada pelas garantias dos direitos políticos; a democracia
civil, assegurada pelas garantias dos direitos civis; a democracia liberal,
assegurada pelas garantias dos direitos de liberdade e a democracia social,
assegurada pelas garantias dos direitos sociais.
"A
violação das garantias primárias positivas - mais graves porque estruturais
consistindo na falta de instituição, por exemplo, da escola pública ou da
assistência à saúde gratuita como garantias dos respectivos direitos sociais -
dá lugar a lacunas, isto é, à ausência indevida de leis de atuação, igualmente
em contraste com a Constituição e, contudo, não reparável pela via judiciária,
mas só pela via legislativa".
O
ativismo do Supremo só se justifica, portanto, na defesa dos direitos
fundamentais previstos na Constituição. Daí o erro de imaginar que o ativismo
em defesa dos direitos fundamentais abriria espaço para o ativismo político
contra determinações da Constituição.
A inação
do Supremo no episódio do golpe foi uma deformação do seu papel.
Depois
que se abriram as comportas da desconstitucionalização, a Itália mergulhou em
uma orgia política sustentada pela mídia de Berlusconi e pela maioria política.
Ferrajoli
descreve leis que deram anistia ao primeiro ministro; leis que negaram aos
imigrantes os direitos elementares à saúde, à moradia e à reunião familiar; as
medidas demagógicas relativas à segurança, que militarizaram o território,
legitimaram as rondas, previram o registro dos sem-tetos e agravaram as penas
para a pequena criminalidade de rua; a redução das garantias jurisdicionais dos
direitos dos trabalhadores; controle político da informação e da mídia,
sobretudo o da televisão.
Completa
ele:
“E ainda
os cortes na despesa pública relativamente à saúde e educação, a agressão aos
sindicatos, precarização do trabalho e, portanto, das condições de vida de
milhões de pessoas. Enfim, o projeto de desconstituição, manifestou-se nas
propostas de lei destinadas a reduzir a liberdade de imprensa em matéria de
interceptações e de direito de greve”.
Alguma
semelhança com o Supremo e com o Brasil de Temer?
Nos
antecedentes, os mesmos fatores brasileiros.
A
desmoralização da política pelos conflitos de interesse, as formas de
corrupção, dos tráficos de influência da política com o mundo das finanças, os
lobbies corporativos e - sobretudo - com a grande mídia são fenômenos endêmicos
em todos os ordenamentos democráticos, nos quais se torna cada vez mais
estreita a relação entre dinheiro, informação e política: dinheiro para fazer
política e informação; informação para fazer dinheiro e política; política para
fazer dinheiro e informação.
Os
partidos se transformaram em entidades feudais, com leis entregando aos seus
chefes a indicação de candidatos. Se tornaram instituições paraestatais,
gerenciando informalmente a distribuição e o exercício das funções públicas.
Outro
fator de crise foi a dissolução da representação com o fim da separação entre
partidos e instituições e do papel daqueles como instrumento de mediação representativas
das instituições com a sociedade. Os partidos se tornaram “oligarquias
custosas estavelmente colocadas nas instituições representativas e expostas ao
máximo à corrupção”.
Esse
processo desaguou na operação Mãos Limpas.
A parte
mais substanciosa do livro é sobre o papel da mídia, a liberdade de imprensa e
o direito à informação.
Diz ele:
“Não são
mais a informação e a opinião pública que controlam o poder político, mas é o
poder político, e ao mesmo tempo econômico, que controla a informação e a
formação da opinião pública”.
Nesse
ponto, Ferrajoli define uma diferença fundamental entre liberdade de imprensa e
liberdade de informação.
“Completamente
ignorada e removida, inclusive pelo pensamento liberal, da subordinação da
liberdade de informação à propriedade dos meios de comunicação. Mesmo os
pronunciamentos mais avançados da Corte constitucional e as posições mais
críticas do atual aparato informativo restringem-se a reivindicar limites mais
rígidos à concentração dos meios de comunicação, em favor da garantia do
pluralismo e da concorrência. Mas a questão é muito mais radical: a liberdade
de imprensa e de informação é uma variável dependendo do mercado, ou é um
direito fundamental constitucionalmente estabelecido?”
Ferrajoli
enxerga dois direitos radicalmente distintos.
Um, é o
direito fundamental de todos à informação correta. O outro é um direito
patrimonial pertencente somente aos proprietários dos meios de comunicação.
“O que é
um poder patrimonial, o poder empreendedor da propriedade, vem a se sobrepor a
um direito de liberdade de nível constitucional, a liberdade de imprensa e de
informação, diz ele, e, portanto, a englobá-lo e a eliminá-lo”.
A
Constituição italiana garante apenas o primeiro, mas não o segundo. O artigo 21
diz que "todos têm o direito de manifestar o livre pensamento". Diz
Fajoli que se refere “evidentemente” ao pensamento dos jornalistas, não dos
proprietários. Por isso mesmo, liberdade de expressão é um direito para
garantir a independência das redações em relação aos proprietários, diz ele.
Mas a
relação entre os dois direitos se inverteu: os direitos de liberdades, antes de
operarem como limites ao poder, são por este limitados.
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