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13 de junho de 2011
Não acredito no coronel
Antônio Pinheiro Salles*
Comandante ou comandado, o torturador é uma espécie de gente que amesquinha e avilta a existência do ser humano. Por isso, jamais poderíamos admitir alguma forma de diálogo com ele, exceto quando especiais circunstâncias transformam a nossa palavra num instrumento de legítima defesa, ainda que excessivamente ineficaz. É o caso, por exemplo, do agonizante momento em que estamos amarrados e pendurados no pau-de-arara, vitimados por torturas complementares como choque elétrico, espancamento, afogamento e outros métodos que retiram de nós a possibilidade do exercício da dignidade.
A propósito, li o artigo “O delírio de Persio Arida” (Folha de S. Paulo, 27/05), do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI/Codi de São Paulo, tentando desmentir acusações que lhe foram formuladas numa entrevista. Também, na Folha do último dia 2, li “O coronel e a tortura”, do economista Persio Arida. E, diante dessa leitura, não poderia aceitar a minha omissão e me contentar com mais algumas poucas manifestações a respeito do assunto, como a do articulista Fernando de Barros e Silva (“Ustra e as unhas de Lobão”), no mesmo jornal.
Entrando no mérito, preciso esclarecer que não conheço Persio Arida, a não ser por meio de informações transmitidas pela grande imprensa. Então, sou levado a acreditar em todas as suas afirmações: 1º) porque acredito nas pessoas até quando elas comprovem o meu equívoco; e 2º) por tudo o que conheci no centro de horror do sanguinário regime militar, não vacilaria em garantir que ali foram praticadas atrocidades que o próprio economista não teve oportunidade de observar.
Quanto ao que escreve o coronel, sou obrigado a rejeitar tudo, em bloco, considerando o tétrico papel desempenhado por ele durante a ditadura e agora, quando os verdugos do Brasil desfrutam de um privilégio que seria inimaginável na Alemanha depois do nazismo ou na Argentina, no Chile e Uruguai, por exemplo, após as ditaduras dos generais. Aliás, nem poderia falar muito do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, porque, ao longo do período em que estive submetido à sua ferocidade, ele se apresentava como o “Doutor Tibiriçá”.
Preso há cerca de um ano no Rio Grande do Sul, quando comecei a me recuperar dos maus-tratos sofridos no Dops, em Porto Alegre, fui removido para o DOI/Codi (Oban) da rua Tutoia (SP), no começo de outubro de 1971. E caí diretamente na sala de tortura, que ficava ao pé da escada, equipada com cadeira do dragão, sinistras peças do pau-de-arara e toda a parafernália utilizada durante as macabras sessões que levaram à morte um grande número de brasileiros.
Ali, padeci nas garras dos carcereiros “Muniz” (Altair Casadei), “Lunga” (agente da Polícia Federal Maurício José de Freitas) e “Marechal”. Mais: seviciadores “Major Hermenegildo” (capitão Dalmo Luiz Cirilo), “Otavinho” (delegado Otávio Gonçalves), “Mangabeira”, “Doutor José”, “Jacó”, “JC”, “Oberdan” , “Doutor Tomé” e outros cujos nomes, falsos ou verdadeiros, não descobri ou não guardei na memória, todos comandados pelo “Doutor Tibiriçá” (coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra).
Em 16 de novembro, entregaram-me ao Dops do capitão Sérgio Fernando Paranhos Fleury e sua famigerada equipe do Esquadrão da Morte. Mas lá passei apenas 15 dias, o tempo de experimentar novos horrores da tortura e “fazer cartório” (inquérito policial) com os delegados Alcides Singillo e Edsel Magnotti. De volta ao DOI/Codi, permaneci naquele inferno até o final do mês de dezembro, em péssimo estado físico. O que sofri e o que testemunhei, naquela ocasião, deixaram em mim a certeza de que tudo devemos fazer para o povo brasileiro nunca viver sob a ameaça da repetição de algo semelhante.
Em meus nove anos de cárcere (1970-1979), no Rio Grande do Sul e em São Paulo, mais umas três vezes estive na máquina de terror onde o “Doutor Tibiriçá”, em nome do general Médici, tinha poderes para decidir sobre a vida e a morte das pessoas. Mas quase nada disso se pode compreender sem uma análise mínima do que representou a ditadura para o Brasil, especialmente durante o plantão Médici-Geisel (1969-1979), quando a concepção identificada com o nacional-socialismo alemão (nazismo) orientava as ações do Estado militar.
No curso desses anos, o combate a qualquer forma de oposição era feito, sistematicamente, por meio de prisões ilegais, torturas, genocídio, mortes e desaparecimentos, utilizando-se, sempre, os métodos mais cruéis e desumanos. A administração do governo, como lembra Agassiz Almeida, ficou em segundo plano, priorizando-se o aniquilamento dos opositores. Se nas demais fases do regime autoritário ocorreram violências indescritíveis e assassinatos, ainda não havia a institucionalização do terrorismo de Estado.Sabe-se que no Brasil o número de mortes foi infinitamente menor que na Alemanha de Hitler e em outros países da América Latina. Entretanto, adotou-se aqui uma estratégia que superou o próprio nazismo: desmoralizar e desestruturar a personalidade do adversário, recorrendo-se à crueldade do suplício físico e psicológico da maneira mais degradante, com alternativas que na maioria das vezes não produziam marcas visíveis.
Destacaram-se como defensores da ideologia importada da Alemanha e adaptada à realidade do regime militar, dentre outros, os artífices da doutrina da “segurança nacional”, que levou a monstruosos crimes: Golbery do Couto e Silva, Orlando Geisel, Meira Matos, Ernesto Geisel e Emílio Garrastazu Médici, numa estreita aliança com o governo dos Estados Unidos.
Dos mais de 120 centros de tortura em funcionamento no país, o da rua Tutoia, nos porões do II Exército, em São Paulo, foi o que mais comprovou competência para defender os objetivos do Estado totalitário. Sem dúvida, não foi desprezível a atuação, nesse processo ignominioso, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ele comandou o DOI/Codi (Oban) entre 1970 e 1974. Repito: não conheci o economista Persio Arida, mas estou certo de que o coronel Ustra é o “Doutor Tibiriçá”, de quem espero ainda poder dizer tudo o que sei à Comissão da Verdade a ser aprovada pelo Congresso Nacional. Não posso acreditar em uma única palavra dita ou escrita por ele, que há muito deveria estar pagando pelos crimes que cometeu contra a humanidade.
*Antônio Pinheiro Salles é jornalista profissional e bacharel em Direito. Abordando o tema da ditadura militar, tem quatro livros publicados. Passou nove anos nos cárceres do Rio Grande do Sul e de São Paulo.
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